Pantera Negra e a Wakanda que existe em cada periferia
Uma reflexão sobre como Wakanda, nação fictícia africana do filme Pantera Negra, pode se assemelhar às periferias brasileiras
Por Jéssica Moreira
23|02|2018
Alterado em 23|02|2018
Lançado na última sexta-feira (16) o filme Pantera Negra (da Marvel) permite uma série de reflexões. Afinal, é a primeira vez que um super-herói negro do universo Marvel ocupa as telonas de cinema. E mesmo o protagonista, T-Challa ( interpretado por Chadwick Boseman) sendo um homem, é na figura das mulheres que estão os sinônimos de força e inteligência para combater qualquer mal que venha contra a nação futurista africana Wakanda.
Mulheres no filme Pantera Negra, da Marvel, lançado no Brasil no dia 15 de fevereiro
©Reprodução Marvel
As cores, a tecnologia e a potência empregada nessa nação são um verdadeiro tapa na cara daqueles que ainda atribuem os problemas do mundo ao continente africano. A criatividade, ali, é maior do que em qualquer outro lugar por onde as personagens passam. Os trens correm por ondas magnéticas, as pessoas se curam por meio de um elemento da natureza em abundância e o pôr-do-sol é o sonho de um menino do subúrbio dos EUA: “Você pode imaginar nisso? Uma criança de Oakland acreditando em contos de fadas”.
Nós sabemos que, de fato, o continente africano poderia mesmo ser tudo isso, caso não tivesse passado por processos cruéis de colonização, que não apenas retiraram deste lado do mundo riquezas materiais, mas também tentou usurpar e extinguir com a identidade de povos inteiros que o formam.
Foi isso, inclusive, que disse a atriz Lupita Nyong’o, intérprete da heroína Nakia no filme, em entrevista ao programa The View, do Metro UK. “A África é um continente que foi violado e abusado sistematicamente. O que o colonialismo fez foi reescrever a nossa história como uma narrativa de pobreza e sofrimento. Wakanda é especial por nunca ter sido colonizada, o que vemos nela é um cenário de como a África poderia ser caso tivesse construído a sua própria história”.
Para mim, este fato também tem muito a ver com periferia. Historicamente, dada a forma como as periferias surgiram, diante de um”fim falseado” da escravidão e a tentativa esdrúxula de higienizar os centros da cidade, colocando negros e pobres para morar em espaços que até hoje, muitas vezes, são negligenciados pelo Estado ou vistos como “carentes” pela mídia e demais ONGs.
Mas Wakanda também é, simbolicamente, a periferia e fez vibrar em mim o sentimento de fazer parte de uma “comunidade”. Pois Wakanda é quase aquela casa onde você construiu suas raízes e sabe que pode encontrar o acolhimento que precisa, mesmo depois de algum voo longo. Wakanda é onde seus ancestrais construíram as histórias e memórias que podem te fortalecer para continuar vivendo e enfrentar as adversidades que ainda é ser uma pessoa periférica, ou “wakandeiro”, neste caso.
Assim como no filme, onde norte-americanos desconfiam da potência do país, por aqui todos os dias alguém teima em minimizar a importância que tem cada bairro que fica longe do centro. Depois de assistir Pantera Negra, em um shopping no centro, inclusive, eu voltei de novo pra minha Wakanda. Não foi em um trem todo moderno como o do filme, mas a criatividade pulsava no caminho, com a estratégia de marketing-rua dos marreteiros, com a solidariedade do motorista do ônibus dando carona à moça sem bilhete único e uma série de fatores que fazem a periferia ser incrível, mas ninguém reconhecendo isso.
Poucos atravessam a ponte pra chegar até aqui. Às vezes, como no filme, somos um pouco resistentes, já que por muitos anos os contatos bondosos também eram travestidos do real interesse de se apropriar de nossas “preciosidades” ou até mesmo das mazelas.
Tivemos que voltar muitas casas para resgatar na memória coletiva os valores, a identidade e o sentimento de pertencimento, para só assim nos dizermos periféricos. Para conseguirem enxergar as Shuris ( interpretada por Letitia Wright) – a princesa do filme responsável pela tecnologia que rege o país – nossas mulheres tiveram que ser muito criativas e inteligentes para atravessar as pontes, reais e invisíveis, e se virar dos avessos para fazer duplas e triplas jornadas e, ainda assim, não serem olhadas como heroínas.
Aliás, cada mulher do filme traz um arquétipo interessante de como eu vejo as mulheres negras, principalmente nas periferias, lembrando o quanto nossas periferias são pretas.
A general da nação Wakanda é uma mulher, Okoye, interpretada por Danai Gurira, que me lembra muito o modo como as mulheres das periferias lutam por mais direitos em suas comunidades. Não é à toa que as lideranças dos movimentos sociais que reivindicam por mais educação, moradia e saúde têm na energia das mulheres o fio que conduz seus embates.
Ramonda, a matriarca da família dos Panteras, interpretada por Angela Basset, me lembra a generosidade da minha mãe e de tantas outras em ver suas crias evoluindo, chegando a lugares que, por outros e inúmeros fatores, elas não puderam chegar. Aqui, lembro de cada vez que minha mãe me acompanhou em provas ou vestibulares durante quatro, seis horas, para me fortalecer. Assim como Ramonda fez nas batalhas de seu filho com outros inimigos.
Talvez, Nakia e Shuri são a mistura daquilo que eu, ainda, quero ser. O amor nada romanceado de Nakia por T-Challa é transferido para as causas que ela defende. E só quando ele aceita suas paixões, ela realmente topa iniciar uma relação ao seu lado.
Quantas vezes você não ouviu a frase dita pelo T-Challa a ela: “se você não fosse tão teimosa, você seria uma ótima rainha”. Mas Nakia rebate lindamente com um “eu seria uma grande rainha exatamente por ser teimosa – mas só se isso fosse minha vontade”. Ah! Quase dei um pulo de corda nessa hora, é exatamente o que os homens precisam entender, caso queriam mesmo estar ao nosso lado e a gente entender que não devemos mudar para agradar nenhum deles.
Mas foi na imagem de Shuri que eu, particularmente, mais me identifiquei. Menina meio moleca, curiosa de seu entorno, desconfiada e cheia de crítica com bom humor. Talvez, muitas vezes, o mundo não nos permite ser Shuri, já que meninas não podem fazer coisas consideradas de menino. E, então, você se sente um peixe fora d’água, porque quer, sim, empinar pipa, jogar bola na rua e, por que não, inventar um robô? Shuri é a síntese de que, sim, podemos ser tudo, mas tudo mesmo que a gente quiser.
Para finalizar, quero dizer que Wakanda é periferia, e cada periferia é também um quilombo e, portanto, a África que existe em nós. Cada pessoa negra é também um corpo-território e, independentemente do lugar onde estejamos, somos, em diferentes e complexos níveis, um tanto de uma mulher africana. Wakanda forever!
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