Time da Amizade: ‘o futebol é nosso remédio’
Conheça a história do Time da Amizade Feminino. Ele foi criado em 2012, pelo então metalúrgico e hoje aposentado Waldomiro, na Parada de Taipas, zona norte da periferia da capital paulista.
Por Jéssica Moreira
03|06|2019
Alterado em 03|06|2019
Este conteúdo faz parte do especial #Deixaameninajogar produzido em parceria com o Portal Lunetas e o Think Olga
Amizade Futebol Clube
©Divulgação
São 16h de uma quinta-feira. O dia cinza anuncia a chegada do frio em São Paulo. Dentro do Centro Esportivo Brigadeiro Eduardo Gomes, o movimentar da bola esquenta não só o corpo, mas também o coração das mais de vinte meninas, entre 9 e 28 anos, que pouco a pouco chegam para o treino de futebol do Time da Amizade, na Parada de Taipas, zona norte da periferia da capital paulista.
Nas duas próximas horas, os vinte e cinco metros de comprimento por dezessete de largura da quadra plastificada e coberta serão o lugar do riso, do abraço e até das pequenas desavenças que nunca ultrapassam a rede que separa o jogo da arquibancada.
É aqui que as meninas da periferia encontram o refúgio e o remédio para esquecer, pelo menos por um tempo, os problemas que persistem do lado de fora. O Time da Amizade Feminino foi criado em 2012, pelo então metalúrgico e hoje aposentado Waldomiro Jorge, 54, que desde 1999 já treinava os meninos da região, diante da tentativa de ampliar os espaços de lazer para os próprios filhos e demais crianças do entorno.
A ideia do time surgiu dentro da própria Cohab de Taipas, quando Waldomiro integrava a equipe organizadora das Olimpíadas da Cohab e convidou garotas que já jogavam aos fins de semana em uma escola pública local para integrar o time que se iniciava. Naquele ano, levaram a medalha de ouro, o que serviu como inspiração para continuarem jogando.
A brincadeira foi ficando séria. Miro fez uma parceria com o centro esportivo onde hoje se encontram e os treinos que antes eram cancelados em dias de chuva, por conta da falta de estrutura da antiga quadra, agora poderiam acontecer até mesmo no meio da semana, ampliando o número de meninas interessadas. “Todas as meninas que vêm aqui são bem vindas, se tem interesse de jogar futebol a gente vai tentar passar o máximo pra elas aprenderem a fazer isso”, salienta o treinador.
Hoje, elas colecionam diversos troféus, medalhas e até tiveram fotos expostas no Museu do Futebol, em 2014, além de terem colegas de time que se tornaram jogadoras profissionais. Mas o mais importante, como o próprio grupo diz, é a amizade que nesses sete anos foi construída entre as integrantes. “A nossa intenção nossa nunca foi de formar jogadores ou jogadoras de futebol, mas sim formar um cidadão ou cidadã, para que sejam bem sucedidos na vida”, diz Miro.
Treino externo no início do projeto
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Paixão desde criancinha
Quando Caroline Santana, hoje com 18 anos, botou os pés numa bola de futebol pela primeira vez, ela tinha apenas 8. A rua era o campo improvisado de chinelos havaianas, cone ou qualquer coisa que apontasse que ali havia crianças brincando. Mas os vizinhos não gostavam, furavam a bola, jogavam água na meninada e o medo dos carros sempre esteve presente.
Foi assim que Caroline começou a jogar na quadra da escola e encontrou outras integrantes do Time da Amizade, colocando em prática — e de maneira segura — o sonho de jogar futebol.
Agora, ela tem um filho de cinco anos e um de quase dois. Mesmo tendo que se dividir entre a criação das crianças e demais afazeres domésticos, a jovem segue persistindo sua vontade de jogar e também incentivando outras garotas mais novas.
“Não dá para explicar o amor que eu sinto por futebol, porque eu tenho dois filhos já e eu não deixei de jogar futebol. Quando não dá pra mim, eu levo ele [ o filho], eu arrumo alguém pra olhar, mas eu vou. Quando eu venho pra cá, eu esqueço de tudo. Às vezes, a gente briga, a gente se xinga. Mas a gente desconta a raiva na bola e quando uma precisa da outra sempre estamos aí, não é à toa que o nome é amizade”, conta emocionada.
Futebol é coisa de menina, sim
Quando criança, todo mundo dizia a Mariana Albuquerque, agora com 17, que ela era agressiva. O não gosto por bonecas a fez buscar as brincadeiras de bola com os meninos, até que, aos 10 anos, conheceu o Time da Amizade e descobriu que aquilo que chamavam de agressividade, na verdade, era o talento que tinha para jogar.
“Além de ser um hobby, é bom pra distrair, você faz amizades e melhora em tudo. Eu ja tive [interesse de ser profissional], mas, pra mim, o futebol é como se fosse um remédio. Tô mal, aí eu vou jogar bola, e aí tira o stress”.
Assim como Mariana, Bianca Matos, 18, começou a jogar ainda na primeira infância. Como passava bom tempo na casa de sua avó, o primo mais velho era a única criança com quem podia brincar. “Como eu era menina, ele me colocava no gol, tapa buraco, né? Aí chegou uma época que eu falei ‘eu não quero mais ficar no gol, eu quero aprender a jogar’, aí ele foi me ensinando”.
Há pelo menos cinco anos ela treina no Time da Amizade. Seu sonho? Ser a “cuidadora” do coletivo, já que agora cursa Fisioterapia e é uma das que pega no pé das outras colegas para se aquecerem antes do treino, para evitar qualquer contusão, mostrando como o futebol influenciou nas escolhas de muitas delas, que seguiram na área de Biológicas ou Educação Física.
Times fazem oração antes de início do amistoso
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Quando o apoio vem de casa
Sentada no banco de madeira, os olhos de Brenda Vidal acompanham vidrados o quicar da bola que segue ligeiro entre os pés das colegas. Aos nove anos, ela é a caçula do time. Mas as meninas grandes não a intimidam. “Já entrou”, pergunta Miro, o treinador, e ela, então, coloca o jaleco laranja e a criança que existe ali se agiganta toda na quadra.
De longe, a mãe, Cláudia Vidal, 39, a observa orgulhosa. Ao menos duas vezes na semana, ela deixa sua loja e acompanha a filha naquilo que é sua maior paixão. Assim que acaba, ela sai correndo para voltar ao trabalho, mas com o sorriso da filha segurando suas mãos.
Assim como Brenda, Rayssa dos Santos, de 15 anos, conta com o apoio da família quando o assunto é futebol. Cheia de marra na quadra, o gosto pelo esporte foi transferido de pai para filha, já que ele chegou até mesmo a ser jogador profissional. “Ele sempre me incentivou, eu sempre ia nos jogos com ele quando eu era pequena, aí eu aprendi a gostar bastante por causa dele. Eu gosto do que eu faço, treino forte pra isso, pra, se Deus quiser, um dia conseguir realizar o meu sonho”.
Preconceito de gênero e dificuldades
Mas de todas ali, talvez Brenda Vidal e Raýssa sejam algumas das poucas que contam com o apoio da família na realização de seu sonho.
Um pouco tímida, mas encorajada pela fala das outras companheiras de time, Sofia Almeida, 14, pede o microfone e desabafa. Suas chuteiras são do seu irmão, assim como a camisa de time. O preconceito da mãe, que diz que futebol é coisa de menino, não permite que ela tenha sua própria vestimenta para treinar.
“Minha mãe me discrimina muito em relação ao futebol. Até hoje não tenho uma chuteira, não tenho um meião, não tenho um calção, não tenho uma camisa minha comprada pra mim. A chuteira é do meu irmão, eu tenho que pegar dele. E não tenho minha porque minha mãe não compra essas coisas. Ela é muito machista, aí falo que vou jogar futebol, ela não deixa. Ela me proíbe de tudo, eu que tenho que correr atrás pra mim mesma. Tô tentando meu máximo, mas de vez em quando rola umas recaídas, sonhar além, todo mundo já sonhou em ir além no futebol, mas agora tô nessa recaída, acho que tenho medo por causa da família”, conta Sofia.
Enquanto ela fala, a colega ao lado, Brenda Almeida, 14, também se pronuncia. Para ela, muito do sentimento de incapacidade que atravessa algumas das meninas vem da opinião preconceituosa de algumas pessoas que pensam que meninas não jogam bem por serem meninas.
“Não é fácil, às vezes, cai nessa visão dos outros, porque eles dizem ‘você não é capaz, porque é menina, você não joga bem’. Difícil é, mas se você tem o sonho, se você gosta, se é muito importante e é o que faz bem, não deixa o menino ou alguém falar que você não é capaz, porque todas nós somos”, enfatiza, reanimando também a amiga do lado.
O preconceito de gênero é uma constante na fala das meninas. Apelidos como maria-macho e a pré-determinação da opção sexual por conta do esporte as afetam diretamente. “Todos têm preconceito, se vê você jogando bola, você é menino. Se vai lutar também é menino… É como se você não pudesse ser forte”, reforça Mariana Albuquerque.
Para Bianca, muitas meninas cresceram em famílias machistas, onde “menino pode e menina não” e, com o futebol, essas mesmas meninas mudam suas mentalidades e começam a entender que também podem. “Na minha opinião, o medo deles não é nem você jogar e se machucar o medo, o preconceito, é com a opção sexual, mas na minha opinião, não tem nada a ver, não quer dizer que é lésbica, mas, se for o problema é de cada uma, é opção de cada uma, a gente tem que respeitar e acabou”.
Time da Amizade em campo
©Juh na Várzea
Muito além do futebol, esporte para a vida
O respeito dito por Bianca também é um dos vários valores elencados pelas outras jogadoras ao explicar como o futebol mudou suas vidas. Foi na quadra, que muitas delas aprenderam a ter solidariedade uma com a outra, assim como ter o espírito de companheirismo, ganhando ou perdendo.
“Muitas meninas passam por dificuldades, muitas têm depressão. O futebol é como se fosse um remédio. A gente vem e sai como se fosse transformado, isso faz com que a gente esqueça um pouco os nossos problemas, tanto em casa, quanto fora. mas é impossível chegar aqui e ir embora do mesmo jeito”, enfatiza Brenda.
Para ela, o dia a dia nos treinos te encoraja a ir mais longe e a lidar melhor com seus erros. “A cada dia a gente tá aprendendo, é bom, porque hoje a gente aprende algo e amanhã aprende mais ainda e isso nos motiva, porque vem aquela força de vontade, de cada vez fazer melhor, isso se a gente errar, a gente tentar fazer melhor”.
Representatividade e Copa Feminina de Futebol
Daqui a alguns dias, elas terão mais alguns motivos para se reunir. No dia 7 de junho tem início o Mundial de Futebol Feminino. A novidade é que desta vez o torneio será televisionado, e muitas meninas como elas poderão sonhar em serem também as Martas do campo.
Entre elas, o plano é apenas um: se divertir muito e fazer “churrasco todo dia”. Elas têm total consciência da importância da transmissão desta copa para tantos lares. Para muitas, é a chance da mãe ou do pai finalmente entender a paixão que corre em seus pés.
“A gente vê essa copa como uma oportunidade para muitas meninas. Tem que mostrar que a gente gosta disso e mostrar pra todo mundo que a gente é capaz de chegar onde a gente quer. Pensa, sua mãe lá no sofazão, e você lá jogando, copa do mundo, pensa o orgulho que ela , por mais que quando a gente chega em casa ela fala ai mãe me machuquei, vc se machucou de novo, vc não vai mais jogar mais bola, não, não vai, eu vou lá falar com o miro, não deixar mais você jogar, aí vc passa por tudo isso aí sua mãe tem a oportunidade de te ver jogando”, conta animada Caroline.
“A gente não tem a valorização que deveria como os homens, mas acho que isso vai ser um passo muito grande, vai virar uma moda, será algo muito bom, mas que permaneça assim, não adianta ser só esse período e depois as pessoas esquecerem das mulheres”, reforça Bianca.