Nem sempre sexo tem pênis: a saúde sexual de mulheres que transam com mulheres

Jornalista Larissa Darc, autora do livro "Vem Cá: vamos conversar sobre a saúde sexual de lésbicas e bissexuais"e a ginecologista Ligia Santos conversam sobre desafios e avanços no atendimento de mulheres que transam com mulheres.

Por Redação

29|08|2020

Alterado em 29|08|2020

Por Jéssica Moreira e Mayara Penina

Cris Cavalcante sempre se relacionou apenas com mulheres. Diante do fato, ginecologistas diziam a ela que não havia a necessidade de realizar exames mais específicos, pois o sexo que ela fazia não transmite doenças. Seguiu esta orientação e, passou a sentir dores abdominais. 

Procurou outro ginecologista, que constatou uma gravidez. Ela sabia que não era possível. Realizou um ultrassom que apontou um cisto do tamanho de uma bola de golfe. 

“Como o tumor já estava com 10 centímetros, o médico avisou que eu precisaria ser internada e que a cicatriz não ficaria esteticamente bonita. Após a cirurgia, a minha barriga ficou bem torta, mas faz parte. São feridas de uma guerra”, conta Cris, quem sonhava em ser mãe, mas teve seu desejo anulado por uma negligência médica baseada em sua sexualidade.

O relato é apenas um entre os 9 que foram ouvidos pela jornalista Larissa Darc na produção do livro Vem Cá: vamos conversar sobre a saúde sexual de lésbicas e bissexuais”, publicado pela Editora Dita Livros em 2019, denunciando a falta dos direitos sexuais e reprodutivos de mulheres lésbicas, bissexuais e homens trans.

A obra é uma fonte valiosa de informações, com dados, pesquisas históricas e explicação dos mais diferentes termos, e mostra como a ginecologia baseada na heteronormatividade coloca a vida de muitas mulheres em risco.

O desejo de escrever o livro veio no fim da graduação, no Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Foi aí então, que Larissa — que é uma mulher bissexual — se lembrou da primeira vez que foi ao ginecologista e o médico não quis examiná-la porque ela só tinha tido relação sexual com mulheres e a considerou virgem. 

“Descobri que isso era uma coisa muito comum e acontecia com mulheres de classes sociais muito diferentes, do sistema público ou no sistema privado, era um problema muito grande e as pessoas não falavam sobre ele”, conta.

Falta de dados e subnotificação

A jornalista explica que hoje não existe sequer dados que apontem para a realidade dessas mulheres. Diante disso, ela realizou um levantamento próprio. Divulgou um levantamento online nas redes sociais que, dentro de uma semana, já havia recebido 91 respostas de mulheres e homens trans de diversas regiões, entre 16 e 43 anos, sendo a maioria de mulheres lésbicas.

Das 91 pessoas que responderam ao formulário, apenas 4 afirmaram utilizar algum meio de proteção e 19% das entrevistadas e entrevistados nunca haviam realizado os chamados “exames invasivos”, como papanicolau e ultrasom pélvico.

Do total, 94% já haviam realizado pelo menos uma consulta ginecológica, mas, dentre as mulheres, apenas 58% se sentiram acolhidas pelo profissional. 

A relação de bissexuais satisfeitas com o atendimento foi maior, com 72%. Metade dos homens trans afirmaram ser bem recebidos, enquanto 55% das lésbicas relataram algum desconforto. 

“Ele ficou querendo saber se eu já tinha dormido com mulheres, dizendo que era uma fase e que, quando eu descobrisse os homens, ia desistir daquilo”, contou uma jovem bissexual de 16 anos, referindo-se ao profissional que a atendeu”. (Trecho extraído do Livro ‘Vem Cá: vamos conversar sobre a saúde sexual de lésbicas e bissexuais”) 

Quando a microempresária Thayna Alonso, 27, moradora de Itaquera, começou a frequentar a mesma ginecologista de sua minha mãe, ela logo sentiu essa diferenciação no atendimento. 

“Quando era minha vez, em vez de me acolher e dar liberdade para me abrir, ela insistia para minha mãe ficar na sala, sendo que minha mãe mesmo, havia se disposto a nos deixar conversar sem eu me sentir insegura. Eu queria tirar várias dúvidas, havia perdido minha virgindade com minha primeira namorada aos 14 anos na época, não sabia nada e, pra mim, esse foi o constrangimento, de não me dar liberdade de me abrir de forma segura”.

Para ela, que realizou seu primeiro papanicolau apenas aos 20 anos, é preciso disseminar mais as informações.

“Não há informações na parede do posto ou uma orientadora sexual na escola que fale sobre essas questoēs. Não nos ensinam sobre nossos corpos e as formas de prevenção que devemos buscar”, lamenta. 

“Gostaria que houvesse um serviço de ginecologia confiável e seguro, onde fosse gratuito e acolhedor a todos os públicos, não só um cesto de camisinha, mas com diversos outros conteúdos ou medicamentos gratuitos, como camisinha feminina e absorventes gratuitos”, sugere.

Crianças e adolescentes com informações serão adultos menos vulneráveis

A educação sexual nas escolas, assim como a reflexões em torno da questão de gênero, têm sido um dos maiores temas de debate político no Brasil nos últimos anos. Exemplo disso foi o projeto Escola Sem Partido, que impedia, entre outros assuntos, que a discussão chegasse às salas de aula.

“Uma criança ou adolescente que tenha educação sexual na escola será uma pessoa menos vulnerável, vai crescer bem com sua sexualidade, lidar com o sexo de uma forma responsável, ter acesso à informação, contracepção e prevenção de infecções”, aponta  Larissa.

Ela alerta, no entanto, sobre a importância de um processo educativo que seja também inclusiva, sem excluir as crianças e adolescentes que não são heterossexuais. “As pessoas não-hétero vão crescer sem essa referência, sem informações, e vão ficar mais suscetíveis a doenças e infecções”.

Para Lígia Santos, 40, ginecologista há 15, e que atua na Casa Ser, uma unidade de Saúde que fica na Cidade Tiradentes, zona leste de SP, com foco no atendimento às mulheres, cis e trans e população LGBT, o movimento feminista e as discussões de gênero são fundamentais.

“As discussões de gênero nos ajudam a rever nossos protocolos, nossa postura, não na questão biológica — a gente age como cientista — mas a enxergar a particularidade do indivíduo”, diz. “Sem as discussões feministas e de gênero, nós estaríamos num poço, ainda enxergando a mulher como recipiente que guarda um útero para procriar e trazer alegria e prazer ao homem e qualquer outra manifestação fora disso como algo anormal ou patológico e isso mudou”.

Uma sociedade heteronormativa

Outra constatação que Larissa traz ao livro diz sobre a deslegitimação da relação sexual entre as pessoas com vulva (lésbicas, bissexuais e homens trans), entendendo como sexo apenas as relações que envolvam pênis.

“Nossa sociedade entende como relação sexual a penetração do pênis em algum lugar. É por isso que muita gente não duvida que o que fazem dois homens fazem é sexo, mas a partir do momento que a gente está falando de duas pessoas com vulva, a sociedade desconsidera isso como uma relação sexual”, explica. 

A questão social, no entanto, passa a ser de saúde pública, uma vez que é desconsiderada também por ginecologistas, que são os profissionais que deveriam olhar para a saúde de cada pessoa levando em conta suas especificidades, já que o Sistema Único de Saúde (SUS) é regido pela noção de equidade.

A ginecologista Lígia explica, porém, que o problema é anterior ao consultório, pois está ligado à formação médica, que fica aquém do esperado por não ter discussões mais específicas sobre esses grupos.

“A questão da saúde LGBT, não só na minha época de faculdade, mas atualmente também, não é colocada no currículo de maneira específica. Não existe uma atenção voltada a falar de saúde LGBT como um bloco, assim como não existe para outros grupos ditos minoritários.  Embora o SUS tenha a questão da equidade como uma diretriz, isso não é levado em consideração quando pensamos na formação acadêmica independente da área, tudo é muito global e há particularidades que devem ser levados em conta “.

Larissa afirma que, para serem tratadas com igualdade, algumas mulheres chegam até a omitir sua sexualidade. “Há particularidades [nesse atendimento], algumas questões devem ser levadas em consideração e, por isso, é muito importante não omitir a sexualidade e mostrar que todas as sexualidades são válidas”, diz.

Sobre isso, a ginecologista Lígia Santos, 40, explica que a relação entre duas mulheres pode deixar consequências como qualquer outra, exigindo cuidado, discussões e conhecimento para que haja segurança.

“As mesmas infecções sexualmente transmitidas no sexo entre duas mulheres são as mesmas que são transmitidas no sexo bissexual, heterossexual, pois diz sobre o contato com as secreções”, esclarece. 

Exemplos disso são as doenças ligadas ao HPV ( papilomavírus humano) e que pode ser transmitida de uma pessoa para a outra. “São casos também as infecções das secreções tipo clamídia, cândida. São as doenças mais prevalentes entre as mulheres que fazem sexo entre mulheres”, diz a ginecologista.

Especificidades de cada grupo

Lígia alerta, no entanto, para os diferentes casos de não-héteros, uma vez que, ao não discutir sexualidade, médicos não levam em conta a diversidade. 

“Existem algumas diferenças no atendimento de uma mulher lésbica e de um homem trans. São dois tipos de pessoas muito diferentes. Mesmo eu levando em consideração que é um homem trans que não fez cirurgia ou que não está em hormonização, é um homem”, pontua.

A primeira diferença que se deve atentar, para ela, é a questão do tratamento. “Eu não posso forçar ‘ela’ como se fosse uma mulher, então entender essa identidade sexual é uma das principais diferenças que tem que ser levada em conta em todo atendimento”.

Na parte física, é importante entender se a pessoa está ou não fazendo uso de hormônio, se tem ou não parceria fixa, como é a questão de higiene, entre outras coisas.

“Eu posso estar diante de uma mulher lésbica que encara a menstruação como uma forma normal e de repente para um homem trans é inadmissível, a forma como a gente vai abordar isso tem que ser diferenciada. A base é lembrar que estou falando de pessoas de identidades diferentes’. 

O que falta na lesgislação

Segundo levantamento realizado por Larissa, desde 1996, o movimento lésbico vem chamando atenção para o tema. Exemplo disso foi a publicação ‘Chegou a hora de cuidar da saúde: um livreto especial para lésbicas e mulheres bissexuais’, lançado em 2007 pelo Ministério da Saúde e tinha o intuito de colaborar com a formação de profissionais de saúde para essas mulheres.

A vereadora Marielle Franco, assassinada em março de 2018, teve uma importante atuação na luta pelos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres lésbicas, mas com sua morte a construção do Projeto de Lei que previa o Dia da Visibilidade Lésbica e também protocolos médicos visando a melhoria do atendimento.

Neste mês, que se celebra a visibilidade lésbica, a mandatada da deputada Isa Penna (PSOL) elaborou um projeto de lei voltado à saúde sexual de lésbicas, bis e homens trans, com foco no combate ao HPV, o qual é uma das infecções mais comuns do ponto de vista de doença do útero e alguns tipos pode propulsionar o câncer de colo de útero, a 4ª maior causa de morte entre as mulheres.

“Se diagnosticado no começo, o câncer é super tratado, eu vi uma pesquisa que 90% do diagnóstico precoce resulta em cura, então, é uma coisa muito importante e as ações são muito simples”, aponta Larissa. 

Ela acredita que para que os desafios sejam sanados, é preciso haver três principais ações: treinamento para profissionais de saúde; disponibilização de espéculos menores (utensílio para coleta de papanicolau), que sejam menos invasivos às mulheres que não estão acostumadas à penetração com pênis, mas ainda assim garantindo a realização de exame; e uma terceira é garantir a vacina contra o HPV de forma gratuita. 

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