Feminicídio: mulher decapitada na periferia da zona sul de São Paulo poderia ser uma de nós

Jardim Selma, bairro da zona sul de São Paulo que fica colado no Jardim Miriam, onde eu moro. E foi lá no Selma que moradores encontraram – em uma das vielas – o corpo da jovem Shirley Souza, 16 anos, vítima de feminicídio (assassinato de mulheres)  praticado no último sábado por José Ramos dos Santos, 23. Shirley perdeu […]

Por Semayat S. Oliveira

01|04|2015

Alterado em 01|04|2015

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Shirley Souza poderia ser uma de nós.


Jardim Selma, bairro da zona sul de São Paulo que fica colado no Jardim Miriam, onde eu moro. E foi lá no Selma que moradores encontraram – em uma das vielas – o corpo da jovem Shirley Souza, 16 anos, vítima de feminicídio (assassinato de mulheres)  praticado no último sábado por José Ramos dos Santos, 23.
Shirley perdeu sua própria vida, a vida do filho que crescia em sua barriga há sete meses.
Ela podia ser minha vizinha, podia ser amiga de uma vizinha. Posso ter cruzado com ela pela avenida principal em algum momento. Posso ter embarcado em algum ônibus com ela.
Depois que vi a notícia, engoli seco o sofrimento que a mãe de Shirley transmitiu durante sua declaração a um jornal sensacionalista. Os olhos desconsolados, perdidos, incrédulos.
É impossível imaginar o sentimento que essa mãe sentiu e a tortura de ver o corpo de sua filha exposto, nu, decapitado, na rua, em uma das vielas do bairro onde mora. Como se fosse uma bandeira da “virilidade” e da “dignidade” de um sujeito convencido pela mentirosa, maldosa, torta e desumana definição do que é “ser homem”.
Engoli seco o rosto frio do feminicida, que disse não se arrepender e não ter se contido ao descobrir que a jovem o “traiu”. “Traição dá nisso”, ele publicou em sua página do Facebook.
Em todas as matérias publicadas sobre o caso, José Ramos dos Santos aparece reforçando o fato de ter sido traído, como um atenuante. E a mãe e uma amiga de Shirley deram declarações afirmando que a jovem não o traiu. Lamento o fato que elas ainda tenham que se preocupar em “defende-la”, em desmentir essa acusação.
A abordagem não deveria ser essa. O que nos interessa se Shirley o “traiu” ou não? Shirley e nós todas temos a liberdade de escolha e, independente de qual seja, não há motivo algum nem para um xingamento, julgamento ou morte.
Para essa e outras histórias: mais respeito pela escolha de mulheres que são mortas todos os dias pelo machismo. Pela falta de capacidade dos homens em lidarem com suas inseguranças, seus sentimentos e com a ilusão de deterem o controle sobre a vida de uma mulher.
Falamos de uma morte – e de outras tantas – causada por uma nociva e tradicional relação de poder, de posse, de abuso, de banalização da violência e da vida: no Brasil, no período de 2001 a 2011, estima-se que ocorreram mais de 50 mil de mortes contra as mulheres, o que equivale a aproximadamente 5 mil assassinatos por ano, de acordo com o IPEA. No caso de Shirley, a intersecção do gênero com a negritude e condição social a inclui em grupo ainda mais vulnerável e com o maior número de vítimas.
Nossa condolência à família de Shirley Souza. Nossa saudação às mulheres que, para além dessa história, são sucumbidas pela busca de fazerem de seus corpos e vidas o que bem entendem e pela falta de proteção e efetividade de leis e instituições governamentais.