Frente de Mobilização da Maré em distribuição de auxílios

Complexo da Maré (RJ): o dia a dia de ativistas contra a Covid-19

A comunicadora Gizele Martins, 34, do Complexo da Maré (RJ), conta as estratégias adotadas pela Frente da Maré no combate aos efeitos da Covid-19 e do genocídio local.

Por Jéssica Moreira

09|06|2020

Alterado em 09|06|2020

Complexo da Maré, Rio de Janeiro (RJ). Ruas, becos e avenidas pintam a paisagem do território da zona norte carioca, surgido em meados da década de 1940. Morro do Timbau, Baixa do Sapateiro, Nova Holanda e Parque União são algumas das 16 favelas que formam o conjunto onde vivem cerca de 140 mil pessoas.  

Quem conta essa história ao Nós, mulheres da periferia é Gizele Martins, 34, que integra a linha de frente do combate à Covid-19, junto a outros 100 voluntários de 15 diferentes organizações reunidas na Frente de Mobilização da Maré.

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Gizele Martins, 34, é cria da Maré, jornalista comunitária e articuladora

©Arquivo pessoal

Dados da Secretaria de Estado do Rio de Janeiro informam que o estado registrou 6.781 mortes e aproximadamente 70 mil casos de Covid-19 no dia 8 de junho. A capital tem o maior número, com 36.893. O Complexo da Maré é a comunidade com maior número de óbitos, com 65 mortes e 241 casos confirmados, aponta painel da prefeitura.

Mobilização Comunitária

Jornalista e articuladora comunitária, Gizele conhece bem o chão onde pisa há mais de três décadas. Caminhar com ela é entender que a Maré é costurada por diferentes disputas territoriais, mas também por um potencial criativo e de mobilização de quem se esforça diariamente para mudar a realidade dos cidadãos mareenses — como orgulhosamente se autodenominam. 

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Ação com grafite da Frente de Mobilização da Maré

©Frente de Mobilização da Maré

Isso não tem sido diferente nesse momento de pandemia. Pensando na contenção dos efeitos da crise sanitária e social, ela e os demais militantes atuam de maneira autônoma, divididos em grupos que trabalham tanto na disseminação de informações junto à população, quanto na entrega de cestas básicas a quem precisa.  

Semanalmente, um carro de som com mensagens de conscientização circula pelas ruas. Nos becos, onde o carro não passa, é uma bicicleta que realiza o mesmo trabalho. Os áudios ficam disponíveis no site para uso público.

“É importante que a favela crie auto-identificação. Não basta eu falar sobre o isolamento social. Tem que ter a assistente social da favela, a médica da favela, as referências da favela”

Até agora, já foram distribuídas mais de 30 faixas com dados e informações sobre cuidados com a Covid-19 e em relação à violência doméstica. Cartazes estão em todos os comércios, associações de moradores, igrejas e demais locais públicos, em um esforço conjunto de informar a todos.

“Temos um podcast que é distribuído por meio do WhatsApp, um manual em artes gráficas, e vídeos com profissionais da saúde e também com os artistas. É importante que a favela crie auto-identificação. Não basta eu falar sobre o isolamento social. Tem que ter a assistente social da favela, a médica da favela, as referências da favela”, explica. 

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Voluntários da Frente de Mobilização da Maré em dia de entrega

©Frente de Mobilização da Maré

Muito além de uma jornalista comunitária

Ser jornalista na Maré vai além de saber escrever ou produzir um vídeo. “A gente sabe fazer rádio, escrever um texto ou produzir um vídeo. Agora, o desafio da favela é lidar com a vulnerabilidade financeira do povo. Muita gente está com fome, sem emprego. Temos que lidar com as mortes em decorrência da Covid-19 e também aquelas causadas por operações  policiais.”

Segundo a comunicadora, há muita gente morrendo dentro de casa por conta do vírus, já que, habitualmente, a Defesa Civil não entra na favela para buscar os corpos, tampouco o Corpo de Bombeiros em casos de incêndio, exigindo ainda mais atenção dos ativistas. 

“A gente sabe fazer rádio, escrever um texto ou produzir um vídeo. Agora, o desafio da favela é lidar com a vulnerabilidade financeira do povo”

A gente precisa ligar para os órgãos públicos responsáveis, reclamar e chamar a mídia para conseguir dizer que há um corpo dentro da favela há três dias e a Defesa Civil não entrou aqui, porque não entra na favela ou, então, porque tem poucos carros para atender todo o Rio de Janeiro”. 

Segundo o Portal da Transparência do Registro Civil, o número de pessoas que morreram em casa cresceu no Rio de Janeiro, quando comparado ao mesmo período de 2019. De 16 de março a 4 de junho, 6.281 pessoas morreram em casa, sendo 119  diagnosticadas com coronavírus. Na capital carioca, foram no total 2.463 óbitos domiciliares, sendo 67 por Covid-19. Em 2019, foram 1.773.

Como as mulheres dos territórios têm receio da presença da polícia no local, em casos de violência doméstica também procuram os militantes da Frente, que estão disponíveis por meio do WhatsApp e realizam a ponte entre quem precisa e as redes de assistentes sociais, advogados e psicólogos populares. Outros casos quem geram procura são aluguel em atraso, viabilização de enterros, remédios e cadastros em cestas básicas.

“Quem só é jornalista não entende. Nós somos jornalistas, mas também precisamos ser assistentes sociais. A gente é tudo. Ser comunicadora e moradora da favela significa que as pessoas te  conhecem, sabem onde você mora e têm seu telefone. É uma demanda que chega diretamente até você. É um trabalho gigantesco”. 

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Voluntários já distribuíram mais de 30 faixas conscientizando a população

©Frente de Mobilização da Maré

Desigualdade Histórica

Para além dos riscos de contaminação, a população sofre também a histórica desigualdade social. Segundo a Frente da Maré, boa parte dos moradores é composta por trabalhadores informais, tendo suas vidas altamente impactadas pela crise. 

“Nós conseguimos 2 mil cestas básicas para distribuição mensalmente. Mas não tem para todo mundo. É cruel ter que fazer essa escolha, a partir de um levantamento de quem está em uma situação de maior vulnerabilidade. O governo nos coloca em uma situação difícil”, diz a ativista, que acredita que o direito básico à alimentação deveria ser garantido pelo Estado a todos os moradores das favelas

Só no primeiro trimestre de 2020 o Brasil contabilizava 12,8 milhões de desempregados, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e 34,6 milhões de trabalhadores na informalidade

“Em um momento como esse, onde a principal recomendação é o isolamento social,  [O Governo] não se dá conta de que não há dinheiro para pagar o aluguel. Não tem água, não tem comida, não tem gás, não tem sabonete, não tem desinfetante para limpar a casa, quando a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) é a de limpar a casa toda hora”.

Operações policiais em plena quarentena

Para complicar ainda mais o cenário, as operações policiais continuam nas favelas do Rio de Janeiro, mesmo em meio à quarentena. Alguns dos resultados, entre tantos outros, foi o assassinato de João Pedro Mattos, 14, atingido por um tiro na barriga em São Gonçalo, e também de João Vitor Gomes, 19.

Victor foi morto durante operação ocorrida na Cidade de Deus, região em que morava. Na mesma hora, voluntários do Movimento Frente CDD distribuíam cestas básicas para moradores da região do Pantanal. 

Apenas no último dia 5 de junho o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, deferiu liminar proibindo as operações no Rio durante a pandemia. As operações só estão autorizadas em casos excepcionais e justificadas por escrito ao Ministério Público do RJ.

Mesmo assim, já houveram relatos de novas operações. Raull Santiago, ativista do Complexo do Alemão, utilizou as redes sociais para relatar que a medida jurídica não impediu a continuidade das invasões policiais.

https://www.instagram.com/p/CBHNmexjxGS/

Em março, ocorreram 446 tiroteios/disparos de armas de fogo no RJ. Em abril, esse número subiu 12%, totalizando 501 tiroteios/disparos, segundo a organização Fogo Cruzado.

“A polícia tem atirado inclusive em quem tem feito um trabalho de mobilização interna. O Estado não quer a gente vivo, tampouco se auto-organizando para se ajudar. O histórico do povo negro, da favela, do campo, indígena, é o da coletividade e da solidariedade mútua. Quando a gente vê a polícia atirando em quem está distribuindo cestas básicas, virando um alvo também, aí a gente vê que a prioridade deles é que a gente não se mantenha vivo.”

“A violência estatal sabe muito bem onde acerta: em cima da gente, sempre”

A associação de Gizele não é à toa. O Portal G1 publicou uma matéria mostrando que 78% dos mortos por intervenção policial no Rio de Janeiro em 2019 eram pretos e pardos. Das 1.814 pessoas assassinadas, 1.423 eram pretas ou pardas, sendo 43% entre 14 e 30 anos de idade. Ao menos 54% da população do estado é negra.

A antiga guerra ao tráfico

O Movimento de Favelas do Rio tem realizado a reflexão de que o tráfico não está nas comunidades, mas nas regiões centrais e de classe média. “O tráfico está lá no asfalto: transportando as drogas para a favela. Entrar na favela é uma desculpa do Estado para nos matar. Eles têm ódio da população e querem controlar nossos corpos, porque sabem que se a gente se mexe as coisas mudam de lugar na cidade, na sociedade”, diz Gizele. 

Para a comunicadora, a ameaça sobre os corpos de moradores das favelas acontecem todos os dias. Seja no helicóptero ou fala do governador, que comemora assassinato. “O helicóptero quando chega na Maré sabe muito bem onde ele atira. Um tiro nunca acertou a Av. Brasil, mas acerta a Favela da Maré. A violência estatal sabe muito bem onde acerta: em cima da gente, sempre”.

https://nosmulheresdaperiferia.com.br/noticias/joao-pedro-presente-a-sua-policia-matou-uma-familia-completa/