Da ditadura à pandemia de covid-19: a necropolítica brasileira

Em artigo, a ativista Amanda Vitorino reflete sobre a política de morte adotada pelo governo brasileiro e compara o período atual ao período da Ditadura Militar nos anos 1970, quando houve também surto de meningite.

Por Redação

04|09|2020

Alterado em 04|09|2020

Perplexa observo as medidas adotadas pelo Governo Federal no combate ao coronavírus: a incitação ao uso de medicamentos com eficácia não comprovada, a divulgação de informações desencontradas e a omissão de dados.

Ainda que reconhecidamente estejamos sob o domínio de um desgoverno, ao contrário do que muitos imaginam, as práticas adotadas diante da crise do coronavírus não são despreparo, nem sequer inabilidade em conduzir a crise de saúde do país.

A adoção de medidas autoritárias e populistas têm encontrado justificativa na Covid- 19. Podemos observar isso na forma de implantação da quarentena ou nas informações dadas à população. Três semelhanças podemos identificar no tratamento dado ao coronavírus e a pandemia da meningite que aconteceu no Brasil da ditadura, na década de 1970. Não é coincidência, é uma estratégia.

É, por outro lado, subterfúgio para o descarte de corpos que incomodam, a mesma postura adotada diante da meningite em tempos de Ditadura Militar. Liana da Silva e Oriel Moraes, no artigo  “Racismo Ambiental , Colonialismos e nrcropolítica”, explicam sobre a política de morte: “o  sistema pós-colonial modernizou os meios de produção, mas segue ditando as regras, de quem merece ou não viver, de quais vidas poderiam ser descartadas.” 

A primeira delas é a omissão de dados oficiais, fazendo com que as pessoas não saibam a real dimensão do problema que nos atinge. Durante a ditadura militar, informações foram escondidas na intenção de preservar o suposto “milagre econômico”. 

O desconhecimento em relação à doença, mesmo passado seis meses, faz com que muitas pessoas não adotem as medidas recomendadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) ou que até mesmo duvidem de sua existência, fazendo com que o diagnóstico também seja tardio, aumentando sua letalidade. 

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Cemitério da Vila Formosa em tempos de pandemia/Leu Brito

©Léu Britto/Agência Mural

Apesar do alto número de óbitos naquele período, os militares negavam a existência da epidemia, assim como faz o atual governo, que naturaliza a morte. Os militares só admitiram a epidemia da meningite, por exemplo, quando a doença começou a alcançar os bairros nobres, os mais ricos.

Sobrecarga do sistema público

O segundo ponto que nos conecta à ditadura é a sobrecarga do sistema público. Ritas Barradas Barata, autora do livro “Meningite: Uma doença sob censura? (1988)”, relatou a sua experiência no combate à doença dizendo:

“O Hospital Emílio Ribas, na capital paulistana, tinha cerca de 400 leitos, mas chegou a ter mais de mil pacientes internados. A gente trabalhava num ritmo parecido com o que está ocorrendo com a Covid-19. Eram 14 horas diárias de trabalho intenso, num hospital funcionando com mais que o dobro de sua capacidade.”

Ela trabalhou na linha de frente do combate à epidemia de meningite e, mais tarde, escreveu o livro citado.

Assim como no passado, profissionais de saúde são os principais atingidos no combate das doenças e na luta pela vida, com jornadas exaustivas de trabalho e a tentativa de conscientização da população. O setor médico foi o principal responsável pela produção de dados sobre a época, com produção e organização de dados, apesar da divulgação ser proibida.

Incitação ao uso de automedicação

Na época da ditadura, havia um medicamento utilizado para o tratamento da meningite chamado sulfa. Temeroso pelo  avanço da epidemia, muitas pessoas tomaram o antibiótico por conta própria, o que gerou o fim do estoque e aumentou a resistência da bactéria. Qualquer semelhança com os dias atuais não é mera coincidência.

Na tentativa de conter o novo coronavírus, o governo estimulou o uso do Hidróxido de Cloroquina, ocasionando, no início da crise sanitária, o fim do estoque e causando transtornos para quem faz o uso do medicamento para outros tratamentos.

Maior risco aos negros e aos mais pobres

A falta de divulgação de informação na época, impede que saibamos o real número de óbitos por meningite naquele período. Essa questão é, inclusive, reivindicada por grupos que solicitam a identificação dos corpos da Vala Clandestina do bairro de Perus, na região norte de São Paulo, que completa 30 anos de sua abertura em 4 de setembro.

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Cemitério São Luís/Menino do Drone

©Menino do Drone

Estudos do Grupo de Trabalho de Perus (GTP) apontam que, das 1.049 ossadas encontradas na vala ilegal, muitas eram de indigentes, e cerca de 450 eram de crianças menores de 10 anos, que teriam sido vítimas da epidemia de meningite nos anos 1970, cuja existência os militares ocultaram.

Além disso, não podemos esquecer dos corpos periféricos mortos pelo esquadrão da morte que também estão entre os mortos da vala clandestina. 

A tentativa de se livrar de corpos que atrapalham a “supremacia branca” encontrou novas formas de acontecer em nossos dias.

Hoje, ocorre por meio da omissão do Poder Público na criação de políticas públicas. Inicialmente, falavam sobre a suposta “democracia” do vírus que não escolhia os corpos contaminados pela doença, que atingia mais os ricos. Mas se esqueceram que a diferença no tratamento traria aos mais pobres consequências devastadoras.

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Cemitério-Jardim-São-Luis-5/Léu Brito/Agência Mural

©Léu Britto/Agência Mural

Podemos afirmar que a população negra e os mais pobres deste país não lutam apenas contra o vírus, mas contra uma força que, sutilmente, instala em nosso cotidiano a política de morte. Os nossos morrem pelas forças letais da polícia militar, pelas desigualdades geradas pelo racismo estrutural e também pela manifestação do “necropoder”, que impede que obtenham as informações necessárias para adotar medidas preventivas, que são forçados a trabalhar para sustentar suas famílias e manter uma economia que somente alimenta a concentração de renda.

Amanda Vitorino, 28, é bacharel em Direito,especialista em impacto social e moradora da zona leste de SP. É membro do CDDH Carlos Alberto Pazzini  (CCDH –CAP), no bairro de Perus (região noroeste de SP) e é  coordenadora temática de Graduação na Comissão de Graduação, Pós- Graduação e Pesquisa da OAB/SP.