Nordeste: estratégias e tratamentos desumanos rondam o aborto legal

Negativas de médicos, desinformação e falta de acolhimento são algumas das barreiras para acessar um direito previsto na legislação brasileira

Por Redação

09|10|2025

Alterado em 27|10|2025

Em 2023, Telma* era assistente social da Rede de Acolhimento na região metropolitana de João Pessoa (PB) quando chegou à sua equipe o caso de uma adolescente de 15 anos com deficiência intelectual. “Fomos procuradas pela mãe. A adolescente tinha limitações até com o autocuidado e ela percebeu que a filha não estava menstruando.” Questionada, a menina contou que o cunhado, marido da irmã, ‘fazia coisas com ela’.

A equipe então explicou as possibilidades que existiam dali em diante. A mãe era a única cuidadora da menina e de outra pessoa com deficiência, mas a família era contrária ao aborto. Mesmo assim, a mãe da adolescente autorizou o procedimento e elas foram encaminhadas para o serviço hospitalar, em João Pessoa.

Segundo Telma, o que se seguiu depois foi um show de horrores. “A psicóloga disse à menina que ela poderia cuidar do bebê do jeito que cuidava das bonecas”, lembra Telma. A situação foi um caos, a ponto de o hospital ligar para o Ministério Público acusando a equipe (da Rede de Proteção) de querer forçar um aborto. Diante da pressão, mãe e filha desistiram de fazer o procedimento legal.

“Acompanhei também uma menina de 11 anos grávida de um homem de 37.” Após anos atuando em casos parecidos com esse, Telma pediu exoneração da prefeitura de João Pessoa. “São meninas muito pobres, que enxergam a gravidez como a única forma de escapar de uma vida de pobreza. E com a conivência da própria família”, desabafou a assistente social.

>> Esta reportagem faz parte do projeto Aborto e Democracia, da Artigo 19 e AzMina, que investiga as barreiras de acesso aos direitos reprodutivos em cada região do país. A série de cinco reportagens (uma por semana) se soma ao novo Mapa do Aborto Legal, atualizado pela Artigo 19, como ferramenta para garantir o aborto legal no Brasil. As matérias foram produzidas em parceria com os veículos feministas: Paraíba Feminina, Portal Catarinas e Nós, Mulheres da Periferia.

No Brasil, qualquer relação sexual com meninas menores de 14 anos é tipificada legalmente como estupro presumido, pois não há possibilidade de consentimento nesta faixa etária, como estabelece o Código Penal. Embora essas meninas tenham direito ao aborto, essa opção raramente é considerada. Dados do Ministério da Saúde apontam que, entre 2020 e maio de 2025, foram realizados 3.680 abortamentos legais em todas as faixas etárias no Nordeste, enquanto mais de 24 mil meninas tiveram filhos antes dos 14 anos no mesmo período.

Esses dados se devem, em parte, a uma cultura conservadora machista, reforça Catarina Matos, que atua na Coordenação Nacional do Movimento de Mulheres Olga Benário. “Por entender que é uma responsabilidade individual (da pessoa que gesta), por estereotipar essa menina como ‘promíscua’. E quando vamos para o interior do estado, isso é ainda mais forte.”

Fazem a gestação avançar para tentar convencer as vítimas

A rede de atendimento ao aborto legal envolve, em geral, uma equipe de recepcionistas, psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros, técnicos e médicos. Essa estrutura deve oferecer um cuidado integral, humanizado e dentro da legalidade, respeitando os direitos individuais e a dignidade das pacientes.

No entanto, muitos desses serviços acabam criando barreiras com um atendimento precário, sem uma porta de entrada clara e negando a existência do serviço. Fazer a gestação avançar para tentar convencer as vítimas a mantê-la tem sido uma estratégia constante.

Para Elvira Barretto, professora e pesquisadora nas áreas de gênero, violência, juventude e comunicação da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), o poder público se torna cúmplice e conivente com isso tudo. “Quando o Estado obriga mulheres a levar adiante uma gravidez resultante de violência, ele as reduz a hospedeiras de uma experiência marcada pela dor, prolongando o trauma e, em alguns casos, levando ao suicídio.”

Em 2024, o Ministério da Saúde lançou o guia 10 Passos no cuidado obstétrico para redução da mortalidade materna, organizado pelo Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira, ligado à Fundação Oswaldo Cruz. Porém, o documento não cita o acesso ao aborto legal e seguro como forma de diminuir essas mortes.

O Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) aponta que o aborto é a segunda causa principal de mortalidade materna quando associado a hemorragias e infecções; em primeiro lugar está a hipertensão.

O obstetra e ginecologista Antônio Leonardo, coordenador da Unidade de Obstetrícia do Hospital da Universidade Federal do Maranhão (HU/UFMA), reflete que razões morais impedem que o tema seja debatido. “Até por medo do debate não ser aceito pela sociedade, como se aborto inseguro não fosse uma das causas de mortalidade materna. É uma pena.”

Um aborto legal feito com muito custo e sofrimento

Em 2018, Silvana*, à época com 22 anos, voltava de uma festa, em João Pessoa, quando foi violentada por um motorista de aplicativo. Acompanhada da mãe, procurou a delegacia e fez um boletim de ocorrência. Silvana estava alcoolizada e, portanto, vulnerável. “Fui encaminhada ao IML (Instituto Médico Legal), onde fiz o exame de corpo de delito. Em nenhum momento me falaram que eu deveria procurar um hospital (para medidas preventivas contra doenças e gravidez).”

Passado algum tempo, Silvana começou a se sentir enjoada e sem energia. Ela estava terminando o curso de direito e achou que era estresse por conta do TCC e da colação de grau. “Simplesmente tentei seguir minha vida.” Silvana nunca havia se relacionado com um homem (ela é homossexual), mas um exame de sangue comprovou a gravidez resultante do estupro. Novamente acompanhada de sua mãe, ela procurou a Delegacia da Mulher.

Dessa vez, já grávida, Silvana foi encaminhada para a Maternidade Cândida Vargas, unidade referência para aborto legal no estado da Paraíba, que conta com mais oito unidades habilitadas para realizar o procedimento, segundo a Secretaria Estadual de Saúde. Além das três na capital, João Pessoa, o estado conta com dois hospitais em Campina Grande; uma unidade em Guarabira; e duas Maternidades Estaduais nos municípios de Monteiro e Patos.

Em uma sala minúscula, ela precisou recontar a história e reviver em detalhes a violência daquele dia no carro para a assistente social e a médica. “Elas fazem meio que uma entrevista para autorizar o procedimento (do aborto).” Descobriram a sexualidade de Silvana e perguntaram se ela tinha uma companheira e se não seria interesse criarem a criança (o fruto de um estupro). “Tentaram me fazer desistir (da interrupção legal).”

“Me sentia como um bichinho de zoológico”

O aborto legal foi enfim autorizado e introduziram o misoprostol em Silvana, medicamento recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para a interrupção de gestação. Orientaram que ela permanecesse deitada, num quarto com outras gestantes ou que tinham sofrido abortos. Quando ela foi questionada sobre exames de DSTs (doenças sexualmente transmissíveis), levou um susto porque não tinha se preocupado com isso antes, só com a gravidez. “Fiz os exames e deu tudo certo. Foi meu único alívio naquele dia.”

Enquanto aguardava os efeitos do medicamento, várias mulheres vinham saber o que tinha acontecido. “Foi horrível. Me sentia como um bichinho de zoológico.” Silvana teve que assistir, do hospital, pelo celular, à cerimônia de colação de grau da sua turma. “Foi uma das coisas que toda essa violência me tirou.”

No meio do processo, precisou encontrar, por conta própria, uma médica ou médico que realizasse a curetagem, pois a plantonista do dia se recusou a fazer. “Ela falou que tinha pesadelos depois de fazer esses procedimentos.” Nesses casos, é obrigação do hospital designar outro profissional para realizar o aborto, mas Silvana precisou acionar a Ouvidoria do hospital. O diretor se encarregou do caso. “Lembro que eu só chorava e pedia para ele não me deixar morrer.”

Curetagem mal feita quase leva paciente à morte

Embora Silvana tenha conseguido realizar o aborto legal, a falta de informação adequada e o estigma permeiam toda a sua história com o procedimento. Ela não teve direito à acompanhante. “Quando voltei para o quarto, liguei para minha mãe ir buscar os restos que foram retirados (do útero) para que ela levasse à polícia.” Era a maior prova de que ela havia sido violentada pelo motorista.

Silvana conseguiu 15 dias de atestado médico e no 16º dia, quando deveria voltar ao estágio, acordou com a cama cheia de sangue. “Achei que era a menstruação voltando. Coloquei um absorvente noturno e fui para o trabalho.” O sangue não parava de descer. Voltou ao hospital e foi submetida ao ‘exame de toque’, o que só fez jorrar mais sangue. “Me mandaram fazer um ultrassom transvaginal. Eu chorava de dor e de medo.”

Restos de feto e placenta foram detectados no útero de Silvana. “Aquilo estava apodrecendo. Poderia ter morrido de uma hemorragia ou infecção.” À noite, ela fez a (segunda) curetagem e quando acordou da anestesia: “me mandaram ir andando para enfermaria.” Voltou para casa e só queria esquecer tudo o que passou.

O julgamento do acusado de estuprar Silvana só aconteceu em 2024, seis anos depois da violência. Ele foi condenado a 8 anos de prisão, mas aguarda um recurso em liberdade.

O fantasma da objeção de consciência

Em João Pessoa, ao buscar o aborto legal, Silvana se deparou com esse obstáculo que assombra muitas usuárias, ativistas e profissionais: a objeção de consciência — quando o profissional se recusa a realizar o procedimento por motivos de consciência ou crença religiosa.

Maria José de Oliveira Araújo, médica e psicanalista com atuação em Saúde da Mulher e ativista em Salvador (BA), considera que a objeção de consciência é um dos principais gargalos nos serviços de aborto legal. “Muitas clínicas da rede privada de ginecologia e obstetrícia fazem aborto, mas no serviço público, às vezes, esse mesmo profissional usa a questão da objeção para não realizar.” E o motivo por muitas vezes não é claro. “Todos os impedimentos possíveis e imagináveis são usados disfarçados de objeção de consciência”, afirma Maria José.

Alegar a objeção de consciência é um direito garantido ao profissional, mas não deve se sobrepor à obrigação do atendimento à paciente. Essa justificativa não pode ser utilizada para impedir ou atrasar o aborto legal.

“O próprio Código de Ética Médica exclui a objeção na ausência de outro médico, em situações de urgência e emergência ou quando a recusa de fazer o procedimento pode comprometer a saúde da paciente”, explica o advogado Agassiz Almeida Filho.

Para contornar dificuldades de acesso em decorrência de objeções de consciência, o coordenador da Unidade de Obstetrícia do HU do Maranhão, Antônio Leonardo, organizou o fluxo de forma que apenas profissionais concordantes atuem no serviço. “Sabemos quais profissionais vão dar uma assistência mais qualificada, porque são pessoas que entendem a causa, compreendem e aderiram ao processo que montamos aqui.”

Ausência de informação confiável é a principal barreira

Mesmo com fluxo de atendimento estabelecido e serviço especializado em muitos lugares, o aborto legal nos estados do Nordeste ainda conta com três principais entraves: a ausência de informação – das usuárias e das equipes de saúde; a falta de humanização e acolhimento; e a objeção de consciência dos médicos.

Antônio Leonardo, do Hospital Universitário da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), aponta que algumas pacientes chegam tardiamente ao serviço porque não sabem que têm esse direito. O estado tem extensão de 332 mil km² e apenas doze serviços de aborto legal, segundo levantamento atualizado do Mapa do Aborto Legal. Das doze unidades cadastradas na base de dados do DataSUS, apenas o Hospital da UFMA confirmou o atendimento em ligação telefônica.

O Mapa do Aborto Legal, iniciativa da organização ARTIGO 19, é a única fonte de informação pública sobre os serviços e unidades disponíveis no estado para aborto legal. O site da Secretaria Estadual de Saúde do Maranhão, atualmente, informa as hipóteses nas quais o procedimento pode ser realizado legalmente, mas não apresenta a lista de serviços.

No outro extremo da região Nordeste, Sergipe também carece de informações. Foi a partir desse vácuo que a Defensoria Pública lançou uma cartilha com orientações para vítimas de violência sexual sobre acesso a direitos. Ela foi idealizada pelas defensoras Betina Schreiner e Ingrid Ribeiro Rodrigues, que também integram o Núcleo Especializado de Direito em Saúde de Sergipe.

“Era uma angústia saber qual o caminho para ter acesso ao direito. A falta de informação era tamanha que mesmo com o Núcleo de Saúde da Defensoria Pública, que é referência no Brasil, ninguém conseguia nos responder (sobre os serviços)”, afirma Betina Schreiner.

Salas especiais para garantir atendimento humanizado

Sala Lilás do Núcleo de Medicina e Odontologia Legal em João Pessoa – crédito Secom/PB

Qualquer serviço de saúde deveria ser uma porta de entrada para pessoas que gestam, mulheres e meninas vítimas de violência sexual, como explica Fátima Moraes, gerente operacional da Rede Materna Infantil e coordenadora da Gerência de Saúde da Mulher da Secretaria de Saúde da Paraíba.

“Os CRAS e as UPAS, por exemplo, devem fazer esse primeiro atendimento e encaminhar para o hospital de referência, onde ela vai ter o acesso à profilaxia de emergência e, caso ela tenha interesse, procurar a Delegacia da Mulher e realizar o boletim de ocorrência.” Fátima sugere também acesso facilitado a contraceptivos e educação sexual nas escolas. “É preciso deixar a pílula do dia seguinte mais acessível para quem precisa, sem julgamentos.”

Vale ressaltar que não há necessidade de boletim de ocorrência para ter acesso aos serviços de atendimento de profilaxia e aborto legal. Na Paraíba, a Rede de Atenção às Mulheres em Situação de Violência – Reamcav, envolve várias secretarias estaduais, como a de Saúde, Segurança, Assistência Social e das Mulheres e Diversidade Humana, além do Tribunal de Justiça e do Ministério Público.

Já no Ceará, a Rede Pontos de Luz realiza, desde 2019, o trabalho de fortalecimento e estruturação da rede com a capacitação dos profissionais. O projeto também inclui o Manual para os Profissionais de Saúde, com os procedimentos a serem adotados no cuidado às crianças, adolescentes e mulheres em situação de violência.

Sala de Acolhimento Rede Pontos de Luz – crédito Secom/CE

Faltam propagandas sobre os serviços e compromisso político

Apesar dessa rede bem estruturada, no Ceará existe uma lacuna no que diz respeito à atenção primária nos casos de gravidez de meninas e adolescentes. “Falta propaganda. É importante que mulheres e meninas saibam que o serviço existe, que é um direito, e que é disponibilizado no hospital X, que podem fazê-lo sem constrangimento”, avalia Catarina Matos, ativista em direitos reprodutivos em Fortaleza (CE).

Em Pernambuco, a escassez de informações também é uma questão. “É uma luta difícil porque não existe orientação ou fluxograma, nem todos os profissionais da atenção primária sabem que o serviço existe”, disse Talita Rodrigues. Ela é integrante da organização SOS Corpo, que atua em Recife há 43 anos na luta pelos direitos reprodutivos.

O acesso ao aborto legal no Nordeste revela um abismo entre o que está garantido em lei e o que se realiza na prática. Casos como o de Silvana e de meninas vítimas de violência mostram que o problema não está na falta de norma, mas no baixo compromisso político, estrutural e humano.

*Nomes fictícios para preservar a identidade e privacidade das entrevistadas

** Texto por Taty Valéria, Paraíba Feminina