Neusa Santos Souza e as marcas do racismo na psique brasileira
Autora de Tornar-se Negro estudou psicanálise e questões raciais; também se dedicou à pesquisa da psicose e atuou como analista em consultório
Por Beatriz de Oliveira
24|10|2025
Alterado em 24|10|2025
Sorridente, elegante, inteligente, generosa. Adjetivos como esses são usados para descrever Neusa Santos Souza por pessoas que conviveram com ela. A baiana que viveu entre 1951 e 2008, marcou o campo da psicanálise ao mostrar os efeitos psíquicos do racismo na identidade de pessoas negras, através do livro Tornar-se Negro. Também dedicou grande parte de sua trajetória profissional ao atendimento como psicanalista e à pesquisa sobre a psicose.
“Neusa Santos Souza produziu contribuições fundamentais ao articular psicanálise e relações raciais, argumentando que a autonomia do sujeito negro está intrinsecamente ligada à posse de um discurso sobre si mesmo, fundamentado no conhecimento concreto de sua realidade”, afirma Clélia Prestes, coordenadora de formação no AMMA Psique e Negritude, doutora em Psicologia Social e pós-doutora pela Universidade de São Paulo (USP).
Neusa nasceu em Cachoeira (BA), vivia em uma casa amarela, era uma menina inteligente, costumava estudar na mesa que ficava na varanda, gostava de debater sobre vários assuntos e expressar suas opiniões. Já adulta e morando no Rio de Janeiro, costumava oferecer jantares para os amigos em seu apartamento, servindo pratos como moqueca e farofa de dendê. Nessas ocasiões, as conversas eram acaloradas, passando por tópicos como política, intelectualidade, arte, cinema e psicanálise. Neusa também era uma colecionadora de artes plásticas e adorava viajar; visitou países como Senegal, Estados Unidos e Argentina.
GALERIA 1/3
Essas e outras informações sobre a baiana estão na tese de doutorado “Tornar-se Neusa: Raça, memória e subjetividade a partir da trajetória e obra de Neusa Santos Souza”, escrita pela cientista social Luíza Nasciutti.
Luíza foi afilhada de Neusa, que, aliás, tinha vários afilhados, por ser uma pessoa muito querida e cheia de amigos. Quando a psicanalista faleceu, Luíza tinha apenas 15 anos. Até então ela conhecia a “Neusinha” que era carinhosa e se interessava por seus gostos e opiniões. A afilhada só teve conhecimento da atuação de Neusa na psicanálise e relações raciais quando entrou na graduação. Desde então, passou a investigar sobre as várias faces de Neusa.
Neusa e Luíza
©arquivo pessoal
Essa pesquisa resultou numa tese de doutorado, que, em breve, vai virar livro. “Eu faço um estudo da biografia da Neusa a partir das vozes de múltiplos entrevistados que conviveram com ela ou que foram impactados pelo seu trabalho na psicanálise ou por sua vida política e intelectual”, afirma. E acrescenta que o trabalho buscou mostrar a relevância do pensamento de Neusa para a psicanálise e, sobretudo, para os campos político, social e das relações raciais.
“Ela tem traços importantes para a história política, tanto do movimento negro, quanto do movimento da reforma psiquiátrica, quanto do movimento democrático, na época da ditadura militar. São histórias que estavam soterradas”, diz.
O pioneirismo de Tornar-se Negro
Na década de 1970, aos 18 anos de idade, Neusa é aprovada em primeiro lugar – segundo alguns relatos – para o curso de medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Lá, aproximou-se do estudo da psiquiatria, algo que já almejava aprender ao entrar na universidade.
Após se formar, a baiana migrou para o Rio de Janeiro (RJ) a fim de dar continuidade à sua formação. Fez um mestrado no Instituto de Psiquiatria da UFRJ (IPUB), que resultou na tese e no livro “Tornar-se negro: ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social” (1983).
O livro foi lançado no Instituto de Pesquisas das Culturas Negras, no centro da capital carioca. O espaço era conhecido pela formação na luta antirracista e a ocasião do lançamento contou com a presença de intelectuais do movimento negro, como Lélia Gonzalez.
Apesar de não se definir como ativista, Neusa teve atuação no Movimento Negro Unificado (MNU), onde participava da célula dos médicos negros, junto a nomes como Pedro Silva e Marilma Barbosa, de quem se tornou amiga.
“O livro Tornar-se Negro é um marco por aplicar com profundidade a teoria psicanalítica para compreender os profundos efeitos do racismo na subjetividade da população negra, e principalmente por conceituar o processo de tornar-se negro a partir da superação desses efeitos e da realidade social e histórica, com a afirmação da dignidade, da autonomia, com um discurso próprio e com a ressignificação da negritude”, afirma a pesquisadora Clélia Prestes.
Na obra, Neusa conversa com dez pessoas negras em ascensão social sobre situações de negação e apagamento de suas identidades, consequências do racismo. A partir disso, a escritora fala sobre os efeitos negativos do padrão branco como o único caminho de mobilidade social e aborda a necessidade do negro criar um discurso sobre si mesmo.
Em um trecho, ela escreve “o negro que elege o branco como ideal do ego engendra em si mesmo uma ferida narcísica, grave e dilacerante, que, como condição de cura, demanda ao negro a construção de um outro ideal do ego. Um novo ideal do ego que lhe configure um rosto próprio, que encarne seus valores e interesses, que tenha como referência e perspectiva a história. Um ideal construído através da militância política, lugar privilegiado de construção transformadora da história”.
Ser negro não é uma condição dada, a priori. É um vir a ser. Ser negro é tornar-se negro
Neusa Santos Souza, em Tornar-se Negro
Clélia Prestes pontua que Neusa mostra ser necessário um processo de tomada de consciência e de libertação dos discursos e do ideal de branqueamento que aprisionam. “É preciso superar a experiência de ter sido massacrado em sua identidade. Tornar-se negro envolve ressignificar a negritude, negar a dominação e engajar-se em uma elaboração psíquica que resgata a história pessoal e coletiva, reafirmando a dignidade e recriando-se em suas potencialidades”, explica.
A psicanalista e pósdoutora com estudo sobre saúde mental e populações negras Regina Oliveira define Neusa como a “Deusa Mãe da psicanálise brasileira”, por introjetar uma grafia negra feminista nesse debate.
“Neusa vai ser a pessoa negra e mulher que vai conseguir falar de problemas que afetam diretamente a população negra do ponto de vista da saúde mental, mas que ao mesmo tempo produz ressonâncias nas implicações sociais e políticas que o mundo vive, que não passam apenas pela dimensão do Brasil, mas pela dimensão do colonialismo e as formas como o colonialismo foi organizado”, pontua.
Neusa analista e pesquisadora da psicose
Entre 1990 e 2008, Neusa ministrou seminários voltados a psicanalistas, psiquiatras e estudantes. Os encontros aconteciam às sextas-feiras pela manhã quinzenalmente na Casa Verde, fundação criada no contexto da reforma psiquiátrica da década de 1990 que cuidava de pacientes psicóticos.
Os seminários eram principalmente sobre a psicose, a partir do ponto de vista de Jacques Lacan, psicanalista francês que afirmou que o inconsciente se estrutura como linguagem e que reinterpretou Freud.
“Ouvir a Neusa falar sobre a teoria lacaniana nos dava a impressão de que estávamos entendendo tudo do Lacan, mas era só uma impressão, porque Lacan não é tão fácil de entender”, afirma o psicanalista Paulo Ritter, que trabalhou na Casa Verde e ajudou a coordenar os seminários por alguns anos. Ele salienta que Neusa era uma profissional reservada, mas muito generosa no que se refere a transmissão de seus aprendizados, principalmente sobre psicose e psicanálise.
Grande parte da trajetória profissional de Neusa foi dedicada ao estudo da loucura e da psicose. Dentro desse tema, publicou o livro “A psicose: um estudo lacaniano”, de 1991. “(…) Neusa vai tecer considerações sobre a estrutura clínica da psicose. Para isso, ela nos trará inúmeros testemunhos de seus casos clínicos”, escreve Maria Isabel Lins na edição da obra publicada em 2023.
Além disso, Neusa se dedicou também ao trabalho como analista. Atendia seus pacientes em um consultório dentro de seu apartamento, no bairro das Laranjeiras. Entre as pessoas atendidas estava Ana Paula Lucena Cordeiro, que define que sua vida pode se dividir entre antes e depois de Neusa.
Ana Paula fez psicanálise com Neusa por cerca de três anos, até 2008. Passou por um sofrimento agudo e encontrou nela um acolhimento profissional. A define como uma psicanalista “humana”, que não era tão fria quanto os psicanalistas lacanianos eram conhecidos, mas sem perder o rigor dessa teoria.
Conta que certa vez teve uma crise e ligou para Neusa, que estava de mudança e a recebeu prontamente, em meio a caixas no apartamento novo. Outra vez, Ana Paula sentiu a necessidade de abraçá-la, como forma de agradecimento, e Neusa retribuiu o abraço – algo incomum para psicanalistas lacanianos conhecidos pela neutralidade.
A partir da análise, Ana Paula passou a lidar melhor com seus medos e sofrimentos. “Fiz três anos de análise com Neusa, foi um processo radical que mudou a minha vida”, resume.
Enigmas
No que parecia ser mais uma quinta-feira qualquer do ano de 2008, Ana Paula foi até o apartamento de Neusa para mais uma sessão de análise. Como sempre, a psicanalista estava concentrada e fazendo intervenções. Mas, três dias depois, em 20 de dezembro, ela e outros amigos e conhecidos de Neusa receberam a notícia de que a psicanalista havia morrido. Neusa cometeu suicídio.
Para muitos, tal ato não fazia sentido vindo de uma mulher sorridente e que amava o seu trabalho. “Com a sua morte, ela nos deixou muitos enigmas. De modo geral, Neusa era uma pessoa enigmática e escolheu também uma forma de morrer que gera enigmas”, reflete Luíza Nasciutti, cientista social e afilhada da psicanalista.
No velório de Neusa, Ana Paula conversou com Cleide, que atuava como trabalhadora doméstica para a psicanalista. Ela lhe disse que a gatinha de Neusa, a Zizi, estava precisando de um novo lar. Ana Paula prontamente se dispôs a cuidar do animal, e levou também um álbum de fotografias que Neusa fez dedicado à felina.
Gata Zizi no apartamento de Neusa
©arquivo pessoal
Uma das últimas aparições públicas de Neusa é uma entrevista para o programa Espelho, do Canal Brasil, apresentado por Lázaro Ramos e Sandra Almada. A edição com Neusa foi ao ar no ano seguinte ao de seu falecimento.
A entrevista é, de certa forma, enigmática. Neusa conta que se afastou dos estudos entre psicanalise e questões raciais e afirma que não republicaria Tornar-se Negro. Num outro momento, pontua que o que escreveu no livro está “dito e bem dito”.
Para Luíza, as falas de Neusa na entrevista podem ser interpretadas de diferentes maneiras. Uma delas é que a psicanalista estaria buscando ser vista como alguém que pesquisa outros temas além das questões raciais. Afinal, uma das armadilhas do racismo é restringir intelectuais negros a falar apenas sobre racismo.
Outra hipótese é que Neusa tenha sofrido pressão para se afastar daquilo que escreveu em Tornar-se Negro, porque a obra, apesar de ter sido aclamada pelo movimento negro, não foi bem recebida pelos seus pares psicanalistas, por não se alinhar ao pensamento hegemônico da época.
Legados de Neusa Santos Souza
Ao longo dos últimos anos, a trajetória e legado de Neusa vêm sendo resgatados e sua memória preservada. Exemplo disso é a republicação da obra Tornar-se Negro em 2018, pela editora Zahar/Cia das Letras.
Capa do livro Tornar-se Negro
©reprodução
Luiza recorda que quando começou a pesquisar sobre a autora, não haviam nem ao menos fotos disponíveis dela na internet. Atualmente, sempre que comenta sobre sua pesquisa, as pessoas sabem da existência de Neusa. “São transformações concretas que fazem parte dessa esteira de retomadas de visibilidade de autores negros, da história da memória afro-diaspórica, que sofreu epistemicídio”, afirma. A cientista social pontua que isso também é resultado dos esforços do movimento negro de trazer o debate antiracista e sobre epistemicídio para a esfera pública.
Para a psicanalista Regina Oliveira, o legado deixado por Neusa passa pelo empoderamento de profissionais negros na psicanálise na psicologia brasileira, que ainda é um espaço embranquecido. “Tradicionalmente, nós não temos em nossos currículos literaturas que falem pelas nossas próprias vozes. E isso é fundamental para poder pensar a saúde mental, o psiquismo, os processos de construção de subjetividade”, diz.
Já a psicanalista Clélia Prestes afirma que a obra de Neusa se mantém profundamente atual, servindo de referência para psicanalistas e pesquisadoras “que atuam na interface entre saúde mental e relações raciais, estudam suas obras e dedicam-se a disseminar o valor de seu legado, com releituras contemporâneas que confirmam a vitalidade de seu pensamento, posicionando-a como uma das vozes mais importantes e perenes para se pensar a sociedade brasileira”.