Nem heroínas, nem mártires: a romantização da maternidade atípica

Pesquisa revela que mães de filhos com deficiência intelectual, como TEA e TDAH, enfrentam desgaste emocional 22% maior que as outras mães

07|08|2025

- Alterado em 07|08|2025

Por Jo Melo

Falar sobre maternidade é sempre um caminho difícil, porque, geralmente, as pessoas associam os conteúdos  somente a  quem convive com crianças, mas a realidade deveria ser outra. Se a gente for seguir aquele provérbio africano “É preciso uma aldeia inteira para criar uma criança”, com certeza teríamos mais empatia. Por isso, siga essa leitura, ela é importante para todos nós, seres sociais.

Há dores que não cabem nas palavras, mas que, mesmo assim, precisam ser ditas. Vivemos em uma sociedade que insiste em “pintar” a maternidade como um destino natural, pleno de amor e doação. Quando falamos de mães de crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA), essa idealização ganha contornos ainda mais cruéis. A imagem da “mãe guerreira”, incansável, resiliente e forte o tempo todo, não acolhe.

A romantização da maternidade, neste caso da maternidade atípica, silencia. Quando se espera de uma mãe autista ou de uma mãe de criança autista força, paciência, otimismo, colocando-a muitas vezes como uma pessoa imaculada, acaba-se jogando  sua humanidade às traças: não há espaço para a dor, cansaço e medo. E quando essas mulheres, com toda razão, “surtam” (no sentido coloquial da palavra) essas emoções passam a ser percebidas como fraqueza, culpa, ou até falha moral.

A mulher que ousa dizer que está cansada, que tem medo, sente raiva, e quer ajuda é rapidamente censurada ou ignorada. A frase “você é muito forte” vira, na prática, uma ordem para seguir em silêncio.

O que dizem os dados

O Censo 2022 do IBGE revelou que mais de 2,4 milhões de pessoas vivem com diagnóstico de autismo no Brasil.

A maior parte dos cuidados recai sobre as mães: 86% das cuidadoras primárias de crianças com TEA são mulheres.

Uma *pesquisa realizada entre a B2Mamy e KIddle Pass mostrou que mães de filhos com deficiência intelectual, como TEA e TDAH, enfrentam desgaste emocional 22% maior do que as outras mães.

Segundo a plataforma Genial Care, mulheres-mães acumulam uma jornada exaustiva, com duas a três horas a mais de cuidados por dia e níveis de estresse semelhantes ao de soldados em guerra.

De acordo com dados do Instituto Baresi, divulgados em 2012, aproximadamente 78% dos pais se afastaram das mães de crianças com deficiências ou doenças raras antes que os filhos completassem cinco anos de idade.

Ainda assim, o Estado pouco as vê. Os serviços públicos de saúde e educação não acompanham essa realidade. E quando essas mães se queixam, ainda são julgadas como ingratas e até mesmo duvidam do amor delas com seus filhos.

Solidão da mulher na maternidade atípica

Para muitas mulheres, a maternidade já representa um afastamento gradual dos espaços públicos, culturais e até políticos. Mas, para as mães atípicas, esse afastamento é ainda maior. Aos poucos, elas perdem o convívio com amigas, os encontros sociais, os espaços de lazer.

A rotina exaustiva, a falta de acessibilidade nos ambientes e o preconceito (inclusive entre familiares e educadores) vão isolando essas mulheres, que acabam não tendo mais lugar nem nas próprias comunidades.

Além disso, em muitos casos, suas vozes são apagadas em debates sobre maternidade, inclusão e políticas públicas, como se fossem uma exceção, e não a regra para milhares de brasileiras. Para ficar mais claro, vou criar uma situação hipotética.

Temos Ana, mulher-mãe solo do Miguel de 8 anos, autista e TOD (Transtorno Opositivo Desafiador). Ana não conseguiu acessar o BPC-Loas (Benefício Assistencial à Pessoas com Deficiência) porque o Sistema decidiu que o salário mínimo com que ela vive é suficiente para sustentar a si, seu filho, as terapias, os materiais, e os diversos tratamentos diários de Miguel. Quando a sociedade de alguma forma fala sobre maternidade, ela esquece de Ana que tem seus direitos sugados pelo Estado. Quando Ana desabafa sobre o seu cansaço, recebe comentários que demonizam e apagam as suas dores, como se ela devesse estar sempre sorrindo. Ana, como uma mulher-mãe que vive a maternidade atípica, se sente solitária com um Sistema e uma sociedade que só acolhe no papel.

Esse é só um exemplo criado, mas que acontece diariamente na nossa sociedade. 

O recorte social da maternidade invisível

Falar de maternidade atípica sem considerar o recorte social é correr o risco de universalizar uma vivência profundamente marcada por desigualdades. Mães atípicas da periferia enfrentam camadas ainda mais duras de invisibilidade, precariedade e abandono.

O acesso ao diagnóstico já é uma batalha. Faltam profissionais qualificados, laudos demoram meses ou anos, e o atendimento especializado quase nunca está próximo. A mãe precisa faltar ao trabalho, pegar transporte público com a criança no colo, enfrentar filas e, muitas vezes, sair de mãos vazias.

Quando finalmente há um diagnóstico, começa outra questão: onde conseguir tratamento acessível? Como pagar por terapia ocupacional, psicólogos, fonoaudiólogos e mediadores escolares com salário mínimo? (quando há salário). Como cuidar sozinha, sem rede, sem estrutura, e ainda ser chamada de “forte”?

Na periferia, a romantização também machuca porque não há nenhum privilégio que amorteça a queda. Essas mães, em sua grande maioria racializadas (Levando em consideração o dado do IBGE sobre população negra), solo e chefes de família, se desdobram entre sobreviver e cuidar sem tempo, sem apoio, sem descanso.

A luta por visibilidade e cuidado das mães atípicas da periferia é também uma luta de classe, de gênero e de raça. 

A urgência da rede de apoio materna

Rede de apoio não é luxo. É necessidade. É política de cuidado. E precisa ir muito além da ajuda pontual de parentes. Estamos falando de:

Políticas públicas estruturadas: creches inclusivas, terapias gratuitas, atendimentos em saúde mental.

Acesso ao trabalho com flexibilidade real.

Grupos de acolhimento e escuta, presenciais e virtuais, com mediação qualificada e sem julgamentos.

Respeito dentro dos movimentos de mães, onde as experiências atípicas precisam ter espaço de fala e escuta legítima.

A rede de apoio é o que impede que o cuidado se transforme em solidão. É ela que sustenta emocionalmente e simbolicamente essas mulheres que, muitas vezes, cuidam de tudo e de todos, menos de si mesmas. Já parou para pensar sobre isso?

Importante saber

Romantizar não é elogiar. É apagar. É fazer com que mulheres adoecidas sejam vistas como inspirações, quando, na verdade, só queriam poder dizer: “hoje eu não dou conta”.

Escrever sobre isso é uma forma de estender a mão. De afirmar que essas mães existem, resistem, e não estão sozinhas. De cobrar que sejam vistas pelo que são: mulheres complexas, que não precisam ser heroínas para merecer cuidado. Como fundadora da revista Mães que Escrevem, já publicamos centenas de relatos de mães que vivem diariamente essa solidão, mulheres julgadas por simplesmente falarem sobre seu cansaço, mas a nossa voz é importante e deve, sim, ecoar.

É hora de romper com o mito da supermãe. De abrir espaço para uma escuta verdadeira. De construir uma maternidade onde caibam todas. Quem tá comigo?

Jo Melo É mãe, jornalista, escritora e fundadora da revista Mães que Escrevem. Especialista em Comunicação/Marketing e Jornalismo Digital, é também mestranda em Estudos Linguísticos pela UNIFESP. Diagnosticada como autista na idade adulta, possui hiperfoco em escrita e linguagens. É Imortal pela Academia Mundial de Letras e autora premiada na Suíça, com os livros Os Cinco Sentidos e Hipérboles. — @jomelo.escritora

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.