‘Negar à mulher a presença da doula no parto é uma infração sanitária’
Conversamos com Bruna Thayse, advogada especializada no ciclo gravídico puerperal e em direito médico, sobre violência obstétrica e o direito à presença da doula durante todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato
Por Amanda Stabile
08|03|2023
Alterado em 13|07|2023
Esse texto compõe a série Doulas Denunciam, que relata situações de violência ocorridas no hospital Amparo Maternal, em São Paulo (SP)
Dar assistência para os bebês virem ao mundo é uma tarefa antiga e ancestralmente desempenhada por mulheres. No Brasil, as gestantes apenas começaram a adentrar os hospitais para dar à luz no século 19. E, com a evolução da medicina e das tecnologias sanitárias, a lógica do parto foi transformada em um fenômeno hospitalar.
É o que aponta Talita Melgaço Fernandes, doula, mestre em Ciência Política e doutoranda em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Ela também explica que, nesse ambiente, a assistência prestada às parturientes foi modificada.
Por muito tempo, elas sequer eram autorizadas a manter as figuras que representavam conforto, segurança e cuidado junto a elas no momento de parir. Somando-se a isso, a autonomia da mulher no momento do parto foi sendo cada vez mais podada, enquanto as intervenções médicas – muitas vezes realizadas de forma hostil e violenta – foram ganhando espaço.
No Brasil, desde 2005, os serviços de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS), são obrigados a permitir à gestante o direito a acompanhante durante todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto. A Lei 11.108/2005, conhecida como Lei do Acompanhante, determina que este acompanhante será indicado pela gestante, podendo ser o pai do bebê, o parceiro atual, a mãe, um(a) amigo(a), ou outra pessoa de sua escolha. Se ela preferir, pode decidir não ter acompanhante.
Em 2021, por exemplo, o número de cesarianas superou o de partos vaginais (55%), apesar da recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS), desde 1985, seja de manter essa taxa entre 10% e 15%. “Quando realizadas por motivos médicos, as cesáreas podem efetivamente reduzir a mortalidade e a morbidade materna e perinatal. Porém não existem evidências de que fazer cesáreas em mulheres ou bebês que não necessitem dessa cirurgia traga benefícios”, apontou a organização em comunicado.
Nesse cenário, muitas gestantes passam da posição de pacientes para vítimas de violências. Assim, as doulas, além de nutri-las de informação ainda durante o período pré-natal, atuam para evitar que aquelas que gestam sejam submetidas a negligências ou a violências físicas, psicológicas ou sexuais e para que o parto seja realizado sem intervenções desnecessárias e da forma mais humanizada e natural possível. Afinal, bebês sabem nascer e mulheres sabem parir desde o princípio da humanidade.
O vínculo entre doulas e gestantes
Para dar assistência aos partos, as doulas precisam fazer um cadastramento na unidade hospitalar. “Isso é necessário para o hospital saber quem entra e quem sai do estabelecimento e quando. Mas isso virou uma manobra para dificultar o acesso da doula à mulher”, alerta Bruna Thayse, advogada especializada no ciclo gravídico puerperal e em direito médico.
São poucas as maternidades que disponibilizam doulas para dar assistência no trabalho de parto. Na maioria dos casos, o vínculo da profissional é direto com a gestante, que a contrata previamente. Para a eficiência do suporte emocional, é preciso que as duas estreitem os laços, o que pode ser mais difícil com uma profissional que a paciente acabou de conhecer.
“É uma boa iniciativa para mulheres que não tem acesso, mas é um pouco mais difícil dessa mulher doular de forma adequada. E, às vezes, a doula que é da equipe daquele hospital não vai ter muita liberdade”, explica a advogada. “Ela até conseguiria recomendar algo diferente do procedimento, mas para não criar um atrito prefere fazer o que dá”.
Na letra da Lei
No Brasil, não há uma lei federal que garanta a entrada e permanência da doula nos hospitais. Porém, alguns estados sancionaram legislações para permitir o acompanhamento das gestantes e parturientes durante todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato.
A nível municipal, há também cidades que aprovaram normativas prevendo as mesmas disposições. Em São Paulo (SP), por exemplo, a regra é vigente desde 2016, quando o então prefeito Fernando Haddad sancionou a Lei Orgânica 16.602.
“Quando não há o amparo dessas leis, para a questão geral a gente usa muito RDC 36/2008, que é uma recomendação do Ministério da Saúde que fala sobre o que o serviço de atendimento obstétrico e neonatal precisa ter para fornecer o atendimento a essa mulher”, explica Bruna.
A advogada aponta que o papel das doulas é abordado de forma indireta na recomendação e que é possível fazer uma interpretação jurídica a partir disso. O item 9 da RDC dispõe que o serviço precisa oferecer um ambiente acolhedor com base na humanização e acesso a itens não farmacológicos de dor – ou seja, métodos sem o uso de medicamentos.
“E o que é a doula senão esse item não farmacológico de dor?”, questiona Bruna. “Então não oferecer à mulher a possibilidade de gozar desse direito é também uma infração sanitária”.
Os médicos podem impedir a entrada da doula no hospital?
Em texto publicado recentemente no Nós, mulheres da Periferia, a reportagem ouviu o relato de uma doula que acredita estar sofrendo perseguição dentro do Amparo Maternal, em São Paulo (SP). Ela teve sua entrada bloqueada no hospital e foi escoltada até a saída após dar assistência a um parto em que a gestante discordou dos procedimentos indicados pelo obstetra.
Mas, se está na letra da lei, o médico tem o poder de barrar a presença dessa profissional? A advogada aponta que tanto na área do direito quanto da medicina não há respostas absolutas, mas sempre um “depende”. “Qual é o motivo? Qual a justificativa para impedir essa entrada? Por isso, quando há uma negativa é sempre importante pedir para anotar o motivo no prontuário médico”, explica. O registro é importante caso a doula ou a gestante desejem ingressar com uma ação.
Bruna também cita a questão da hierarquia de poder nos hospitais e que a presença das doulas muitas vezes pode ser lida pelos médicos como uma vigilância, tanto na sala de parto quanto no centro cirúrgico.
“Por vezes, a doula se sente coagida a não falar algo para mulher porque ela sabe que pode perder o credenciamento no hospital. E como ela vai atender essas mulheres?”, questiona.
Como denunciar a violência obstétrica?
Para mudar o cenário de violações de direito, a advogada alerta para a necessidade das denúncias. “Isso não significa necessariamente um maior número de ações judiciais, porque o processo vai revitimizar essa mulher. Dá para denunciar administrativamente. A gente precisa fazer nascer esses dados públicos”, pontua.
O primeiro passo para a gestante denunciar é entender se está sendo atendida de forma adequada. A doula pode auxiliar nessa identificação. Também é importante solicitar uma cópia do prontuário médico e fazer uma denúncia para a ouvidoria do SUS, para o Disque 100 ou para o Disque 180.
Em caso de planos de saúde ou de atendimentos particulares, é possível fazer uma denúncia ao Procon, órgão que realiza a defesa e proteção do consumidor no país. “A outra via é a ação judicial, que deve ser feita por uma advogada especializada para não ocorrer confrontos”, conclui Bruna.