Foto mostra várias mulheres gestantes, representando a ocorrência de episiotomia

“Não existem relatórios de fiscalização específicos sobre a realização de episiotomias”, alega Ministério da Saúde

Falta de código no sistema do SUS impede registro, fiscalização e transparência sobre o procedimento e outras práticas de violência obstétrica

Por Amanda Stabile

23|07|2025

Alterado em 23|07|2025

O Ministério da Saúde afirmou, por meio de resposta obtida via Lei de Acesso à Informação (LAI), que não sabe quantas episiotomias são realizadas no Brasil, nem em quais estados, municípios ou hospitais. Isso porque o procedimento não tem um código específico na tabela do Sistema Único de Saúde (SUS) que registra os procedimentos médicos.

A episiotomia é um corte cirúrgico realizado no períneo, região entre a vagina e o ânus, durante os partos vaginais.

Esse sistema, chamado SIGTAP (Sistema de Gerenciamento da Tabela de Procedimentos, Medicamentos e Órteses, Próteses e Materiais Especiais do Sistema Único de Saúde), é uma espécie de catálogo oficial que organiza tudo o que pode ser feito nos serviços públicos de saúde. Nele estão listados códigos específicos para consultas, exames, cirurgias, aplicação de medicamentos, uso de materiais, entre outros. Esses códigos são essenciais para padronizar os atendimentos e controlar as ações realizadas, pois cada um traz uma descrição detalhada do procedimento, regras para sua execução, valores pagos pelo SUS e outras informações técnicas.

Em relação à episiotomia, o Ministério da Saúde respondeu, via LAI, em 19 de março de 2025: “Este procedimento não possui código específico no Sistema de Gerenciamento da Tabela de Procedimentos, Medicamentos e OPM do SUS (SIGTAP), dificultando a obtenção de um número exato de registros discriminados por estado e município”.

A ausência de codificação também foi apontada como motivo para a falta de dados sobre a porcentagem de episiotomias realizadas em relação ao total de partos normais, bem como sobre variáveis como região do país, faixa etária, raça/etnia, nível de escolaridade e renda média familiar das pacientes entre 2015 e 2025.

Considerada uma forma de violência obstétrica — desrespeito, abusos ou intervenções sem necessidade durante o parto — a episiotomia foi, por muito tempo, feita de forma rotineira sob a justificativa de facilitar o nascimento do bebê. Hoje, sabe-se que essa prática pode causar mais malefícios do que benefícios para a mulher. Em 2018, a Organização Mundial da Saúde (OMS) afirmou que não há qualquer evidência científica que apoie a realização de episiotomias.

Em nota enviada por e-mail em 13 de junho, o Ministério também reconheceu os riscos do procedimento: “A episiotomia tem sido desestimulada por não melhorar os resultados do parto, não proteger o assoalho pélvico e aumentar a perda sanguínea (…) O procedimento pode causar dor e desconforto após o parto e aumentar os riscos de infecção e lacerações graves”.

No entanto, a última pesquisa nacional disponível sobre o tema é antiga e foi realizada por instituições que não fazem parte do governo. O estudo “Nascer no Brasil”, da Fundação Oswaldo Cruz, com dados coletados entre 2011 e outubro de 2012 , revelou que 53,5% dos partos vaginais no país envolvem a realização da episiotomia — um número alarmante, considerando que a OMS recomenda que essa taxa seja inferior a 10%.

Via LAI, o Ministério ainda informou que não há “mecanismo padronizado de registro que diferencie os casos em que o procedimento foi realizado com consentimento expresso da paciente”, o que é um direito fundamental. A realização de procedimentos sem consentimento é proibida pelo Código de Ética Médica (artigo 22).

Também “não existem relatórios de fiscalização específicos sobre a realização de episiotomias em unidades de saúde públicas e privadas, especialmente aqueles que abordam casos em que o procedimento foi realizado sem justificativa médica comprovada”.

O órgão listou alguns procedimentos obstétricos atualmente cadastrados no SIGTAP, como:

04.11.01.001-8 – Descolamento manual de placenta;

04.11.01.002-6 – Parto cesáreo em gestação de alto risco;

04.11.01.003-4 – Parto cesáreo;

04.11.01.004-2 – Parto cesáreo com laqueadura tubária;

04.11.01.005-0 – Redução manual de inversão uterina aguda pós-parto;

04.11.01.006-9 – Ressutura de episiorrafia pós-parto;

04.11.01.007-7 – Sutura de lacerações de trajeto pélvico;

04.11.01.008-5 – Tratamento cirúrgico de inversão uterina aguda pós-parto.

Nenhum desses procedimentos, porém, se refere diretamente à episiotomia ou à violência obstétrica. Os únicos que poderiam servir como indicadores indiretos são a ressutura de episiorrafia (realizadas quando os pontos dados no períneo, após uma episiotomia, precisam ser refeitos por causa de alguma complicação) e a sutura de lacerações pélvicas (costura de cortes naturais que podem acontecer na vagina durante o parto normal).

Porém, o primeiro código só é usado quando há algum problema após o corte, como infecção ou abertura dos pontos, e não representa todos os casos em que a episiotomia foi feita. Já em relação ao segundo, o próprio SIGTAP informa que esse código “não deve ser usado para a sutura da episiotomia”, ou seja, não serve para registrar os cortes feitos intencionalmente por profissionais de saúde.

Outros procedimentos frequentemente associados à violência obstétrica também não têm códigos específicos no sistema. É o caso, por exemplo, da Manobra de Kristeller, que consiste em fazer pressão com as mãos ou com o antebraço sobre a barriga da gestante para tentar empurrar o bebê.

Outro exemplo é o chamado “ponto do marido”, uma sutura exagerada na região vaginal com o objetivo de deixá-la mais “apertada” e aumentar o prazer masculino durante o sexo. Também não há código específico para a administração de ocitocina sintética, um hormônio administrado para induzir contrações, que, quando usado sem necessidade ou sem o consentimento da mulher, pode ser caracterizado como intervenção obstétrica violenta.

A falha não é só da episiotomia

Essa invisibilidade de procedimentos não é exclusividade daqueles relacionados à violência obstétrica. O estudo “A Remuneração de Internações e a Tabela de Procedimentos do SUS: uma Análise a Partir do SIH e do SIGTAP”, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), publicado em setembro de 2023, mostra que menos de 5% dos procedimentos principais disponíveis na Tabela são usados com frequência.

Isso significa que muitos procedimentos feitos no dia a dia dos hospitais não estão bem representados ou codificados. Isso dificulta o registro, o pagamento e a fiscalização do que é feito.

O Ipea também revelou que o mesmo procedimento pode ser remunerado com valores diferentes, dependendo do hospital ou da região, e que os chamados “procedimentos especiais” — como uso de materiais, exames e diárias de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) — são difíceis de controlar e auditar.

A dissertação de mestrado “Diagnóstico situacional da implementação da política de incorporação de tecnologias no SUS” (2024), de Marcela Simões, reforça esse diagnóstico. Ao estudar como o SUS passa a oferecer oficialmente um novo remédio ou procedimento, a pesquisadora mostrou que a inserção no SIGTAP é uma das últimas etapas para que essa tecnologia de saúde “entre no sistema” e possa ser usada na prática.

Ou seja, se o procedimento não tem um código nesse sistema, não é possível acompanhar o uso, nem garantir que o procedimento chegue de fato à população. “A presença no SIGTAP possibilita o monitoramento do uso e da dispensação […] sendo possível obter dados precisos sobre a distribuição, utilização e impacto dessas tecnologias na prática clínica”, explica.

Simões também descobriu que o Ministério da Saúde costuma descumprir o prazo legal de 180 dias para disponibilizar essas tecnologias no SUS. Entre os 90 remédios que ela analisou, só seis foram liberados no prazo. Na prática, o tempo médio de liberação variou entre 399 e 760 dias dependendo da categoria.

Ela chama a atenção para o que define como “vitórias simbólicas” — políticas públicas que parecem resolvidas no papel, mas que não se concretizam na prática. No caso da episiotomia, apesar de o Ministério da Saúde desestimular o procedimento, a ausência de um código no sistema impede o registro, monitoramento e fiscalização, mantendo o problema invisibilizado.

Leia aqui a resposta completa do Ministério da Saúde via Lei de Acesso à Informação (LAI)