Foto mostra gestante acariciando a barriga. Foto representa o perfil das mulheres afetada pela episiotomia

“Na época em que estava me formando, era normal fazer episiotomia em todo mundo”, conta ginecologista

Conversamos com a ginecologista Lígia Mascarenhas sobre essa prática, suas controvérsias e contraindicações e os impactos das intervenções médicas no parto

Por Amanda Stabile

16|04|2025

Alterado em 18|04|2025

No Brasil, o parto muitas vezes é palco de práticas médicas que, apesar de não terem embasamento científico, continuam a ser realizadas com frequência. A episiotomia, um corte cirúrgico realizado no períneo, região entre a vagina e o ânus, é um exemplo disso.

Não termos dados recentes que revelem a totalidade da prática no país – o último levantamento nacional, a pesquisa “Nascer no Brasil”, foi publicada em 2014 e revelou que 53,5% dos partos vaginais no país envolviam a realização do procedimento.

Esse é um número alarmante, especialmente considerando que a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que essa taxa seja inferior a 10%. Em 2018, a OMS também reconheceu que não há qualquer evidência científica que apoie a realização de episiotomias.

O “ponto do marido” é outro exemplo: uma sutura exagerada na região vaginal após a episiotomia ou laceração natural com o objetivo de deixá-la mais “apertada” e aumentar o prazer masculino. Essas práticas não só violam os direitos das mulheres, mas também revelam um histórico de controle sobre seus corpos, especialmente em um sistema de saúde que muitas vezes desconsidera suas vontades e necessidades.

Em entrevista com a ginecologista Lígia Mascarenhas, discutimos os impactos dessas intervenções desnecessárias e como a medicina tem, aos poucos, repensado os cuidados durante o nascimento, desafiando uma tradição médica que ainda privilegia métodos sem evidências científicas que os justifiquem. Confira:

Nós, mulheres da periferia: Existe algum caso em que a episiotomia é realmente necessária?

Lígia Mascarenhas: Praticamente nunca. A episiotomia pode eventualmente ser utilizada quando há alguma dificuldade na retirada do feto, mas isso é muito raro, especialmente porque, nesses casos, o diagnóstico é feito antes da mulher entrar em trabalho de parto, muitas vezes por meio do ultrassom ou até do exame obstétrico, quando o médico avalia que a barriga está muito grande e que não seria possível fazer um parto vaginal. Então, hoje em dia, considera-se a episiotomia praticamente proscrita [considerada uma prática inadequada] em todos os casos.

Nós: Existe algum protocolo oficial que orienta a decisão de realizar uma episiotomia em casos específicos?

Lígia: Não. A episiotomia não é recomendada em locais com boas práticas médicas. Praticamente não se usa episiotomia na realização do parto vaginal. Pode acontecer que, durante o parto, na passagem do bebê, no período expulsivo, ocorram lacerações. Nesse caso, os pontos podem ser necessários devido à laceração no canal de parto, mas não porque necessariamente foi feita uma episiotomia.

O período expulsivo é a fase do trabalho de parto que ocorre após a dilatação completa do colo do útero. Durante esse período, a pessoa gestante começa a fazer força para ajudar a expulsar o bebê através do canal vaginal.

Nós: Quais critérios os profissionais são utilizados para decidir entre realizar uma episiotomia ou permitir a laceração natural?

Lígia: Um parto vaginal bem conduzido e que ocorra de uma forma mais natural, praticamente não vai ter laceração. Isso porque, à medida que as contrações ocorrem e os puxos (contrações que ajudam a expelir o bebê durante o parto) acontecem, a própria cabeça do bebê vai ajudando a musculatura a afrouxar, e o tecido vaginal, a mucosa, é muito elástica.

Assim, essas lacerações acabam não ocorrendo. Em geral, quando se conduz um parto natural… Aliás, “conduzir” é até uma palavra ruim. Na verdade, o que o obstetra, a obstetriz ou a enfermeira obstetra fazem é observar. A gente vai observando, evitando fazer intervenções e só fazendo quando realmente necessário, ou seja, no último caso, quando você realmente precisa que algo seja feito. Isso acontece, por exemplo, quando há uma demora excessiva no período expulsivo e o bebê não está progredindo, ficando “preso” no canal. Aí não posso ficar esperando indefinidamente que o parto aconteça de forma natural.

Se o parto não tem ocitocina (hormônio que induz as contrações uterinas durante o parto) e é o de uma primigesta (primeira gestação), por exemplo, podemos até esperar para que o bebê consiga nascer de forma natural, com o desprendimento e a conclusão do parto.

A recuperação de lacerações de primeiro ou, no máximo, segundo grau, que são mais superficiais, é bem tranquila. O desconforto dura alguns dias, uma semana no máximo. Porém, lacerações mais profundas, de terceiro ou quarto grau, podem ser até mais graves que a episiotomia, pois exigem muito mais pontos e têm um grau de profundidade maior.

Resumindo, a episiotomia só é realizada no último dos últimos casos, quando realmente não há condições de continuar o parto, seja porque o bebê já está muito tempo no canal, entrando em sofrimento, ou porque a mãe não está bem e é preciso uma ação mais rápida para concluir o parto.

Nós: Como a prática do “ponto do marido” é vista pela ginecologia?

Lígia: Bom, eu tenho 20 anos de formada, né?

Quando fiz residência, a gente achava que tinha que fazer o ‘ponto do marido’. Existia esse olhar machista de que a mulher precisava estar mais apertada, porque o parto de alguma forma causava laceração.

Então, fazia-se episiotomia praticamente em todas as mulheres e, consequentemente, na hora de fazer a sutura, fazia-se o “ponto do marido”.

Hoje, não há mais esse costume. O que se faz agora é simplesmente corrigir o que foi lacerado. A prática de episiotomia está proscrita, como já disse antes. Se houver algum tipo de laceração, a gente faz essa correção com os pontos e só. Não se faz mais o “ponto do marido”, porque ele acaba sendo muito agressivo para a mulher e pode trazer sequelas, como dor e desconforto, tanto no ato sexual, que é o mais comum, quanto em relação a outras atividades, porque a cicatrização pode não ser satisfatória.

Nós: Durante a sua formação, como o procedimento da episiotomia lhe foi apresentado?

Lígia: Na época que eu estava me formando, era normal você fazer episiotomia em todo mundo. Você acreditava que fazer um corte controlado era melhor do que deixar ocorrer uma laceração muito profunda ou uma laceração que atingisse diversos planos do assoalho pélvico. Assim, entendia-se que a melhor opção para a mulher era fazer episiotomia em todas as situações.

Até porque as práticas eram muito diferentes. Não havia essa questão da humanização tão presente, como a necessidade do acompanhante, permitir que a mulher caminhe ou se alimente durante o trabalho de parto, utilizar técnicas não farmacológicas, permitir que o parto evolua de uma forma mais natural, sem uso de ocitocina e outras formas de aceleração, como o rompimento da bolsa amniótica.

As técnicas não farmacológicas são métodos utilizados durante o trabalho de parto para aliviar a dor e promover o bem-estar da gestante, sem o uso de medicamentos. Alguns exemplos incluem: posições alternativas, massagem e toques terapêuticos, banho de água quente ou chuveiro, técnicas de respiração, aromaterapia, travesseiros e bolas de parto.

Essa questão de intervir muito no processo era muito comum e a gente acreditava que era o melhor. Isso não era feito porque o médico era ruim, porque a enfermeira queria acabar logo o serviço para dormir, é porque realmente na época se acreditava que era a melhor forma de se fazer. Hoje a gente sabe que não é. Mas na época a gente acreditava que valia muito a pena.

A ciência vai caminhando, evoluindo e hoje a gente já sabe que existem formas muito mais tranquilas e mais respeitosas, tanto em relação à mãe quanto ao bebê. De fazer com que ele chegue ao mundo sendo bem recepcionado, sem que o profissional saúde atrapalhe esse processo.