Na Amazônia também se pensa imagens e se organiza memórias

Conviver dentro dessas Amazônias tem sido também estreitar alguma forma de relação com limites e urgências, instalados a todo tempo - pelo lado de fora - para dentro desses territórios

30|06|2022

- Alterado em 17|05|2024

Por Marcela Bonfim

Conhecer a Amazônia pelo lado de fora é, muitas vezes, se deparar com as diversas narrativas ou confabulações de um corpo-lugar sem cabeça. Como se nesses espaços não se pensasse soluções, tecnologias, formas, imagens, futuro. Como se não fossemos capazes de perceber tudo o que gira em torno da visualidade desses lugares, que tange, inclusive, a invisibilidade de riquezas e de interesses que estes territórios possuem. 

Foi no decorrer da criação de uma “Amazônia” que as estruturas políticas e econômicas do centro acabaram por invisibilizar as inúmeras representações locais, a originalidade interna de organização e concepção dessas diversas culturas margeadas por rios, histórias e identidades.

No entanto, homogeneizadas tanto pela educação que é distribuída nessas localidades, quanto na produção artística que também se propaga como comunicação para o centro; traduzindo em sequelas internas e contínuas de um não direito de participação desses próprios ocupantes (sobretudo os povos originários), das produções que dão rumo ao próprio espaço onde residem as inúmeras identidades de um lado que ainda não conhecemos.

Conviver dentro dessas Amazônias tem sido também estreitar alguma forma de relação com limites e urgências, instalados a todo tempo – pelo lado de fora – para dentro desses territórios, a partir de intervenções como a própria política e economia, bem como os apoios, ajudas, salvação, críticas, e desenvolvimento – que na grande maioria das vezes não alcançam e nem contribuem com o lugar, e muito menos com a história das pessoas e dos legados que existem dentro das muitas culturas interiores.

Estar por dentro e enraizados às margens é diferente que passar – por vezes, bem longe – pelas águas e florestas concebendo-as como reserva; que gera valor pela escassez, e miséria por sua riqueza. Pensamentos utilitários sobre uma floresta que brota pela vida e para a vida, e não pelo desenvolvimento ou para o desenvolvimento.

Assim, os fluxos e refluxos visuais têm se tornado o principal meio de acesso do centro a esses territórios, onde, daí, perguntamos de que forma é feito este acesso? Isto é, por quais narrativas o imaginário brasileiro tem associado a sua comunicação com essas margens ? 

Mostra Cujuba de Artes Integradas apresenta “Encontro de Águas”

Pensando nessas questões e também nas possibilidades que envolvem estes os muitos fluxos e refluxos visuais, ainda mais vivendo numa região essencialmente hídrica como Rondônia, abrimos a oportunidade para a realização de uma mostra de artes, pensada e organizada do lado de dentro de nossas relações com essas margens, na disponibilização do acervo de memórias que Mestre Dom Lauro, um fluxo migratório vindo do Ceará, e enraizado neste espaço-tempo, recebeu nos mais diversos suportes; inclusive marcando um grande “encontro de águas” entre artistas residentes em Rondônia, e em outras margens do Brasil, como Pernambuco, Maranhão e Pará, com o anfitrião da casa, Mestre e Poeta Dom Lauro. Para acessar a mostra, clique aqui.

Desta integração de margens, o surgimento de uma forte recomposição apontado formas importantes de perceber por onde as linhas destes tantos cursos internos que provém destas Amazônias trafegam, descansam, entrelaçam, repelem, estranham, transbordam, se juntam, separam abraçam, inclusive, umidificando na dança do fazer encontrado, experienciado conscientemente por Iara Campos (PE), artista do teatro e da dança trazendo um solo úmido, no ato de seu corpo, em antologias geralmente caladas, mas encontradas aos pedaços por Dom Lauro em Espia Poesia, e Antologias poéticas ; bem como o atolar dos trilhos de um trem em pleno desenvolvimento, remontado pela artista visual, Ana Mendes (PA); em cor e outro tratamento ao dito desbravamento da Madeira Mamoré; um ato de genocídio, ressignificado em termos, comportamentos e imaginários da ainda e atual era colonial. “Colônia” que ao toque do arte ativista Lucas Mura (RO), pode nos remeter à Alfazema. Pela condição de ouvir sentindo o cheiro do toque do Vale do Guaporé, intercalado aos reclames de Dom e do BerimbauOssauro, nos levando também às andanças pelas beiras do Rio Madeira. O povo Mura vem de lá. Inclusive misturados aos povos chegados do Maranhão. Aqui o boi nunca deixa de cantar na beira, e salvar a todo o povo das andanças por essas águas dessas tantas regiões, que também nos leva à beira do Mar, ao encontro de Dj Nanny Ribeiro (MA), pesquisadora e e dramaturga sonora, ascendendo das triscadas da corda de aço do BerimbauOssauro, uma roda ancestral em plena onda sonora; nos remetendo às retomadas. Assim, como Margot Paiva (RO), artista plástica e arquiteta, realizando um marcante registro do BerimbauOssauro, ao retomar a importância de reconhecer o que nos preenche por dentro, tanto em simetria e formas, quanto em harmonias de uma corda só. 

A edição marca, sobretudo, a integração das múltiplas formas de se pensar e fazer a arte; principalmente celebrando este termo, a ARTE, internamente, como a própria cultura de resgate de nossos corpos-memória; notando a participação do jornalista André Oliveira (RO), dedicado a reconhecer a cultura de Rondônia, e divulgá-la em suas diferentes formas; percebendo no espaço as possibilidades surgidas da integração entre nós que estamos com quem sempre chega; como Yesha – Leão do Norte (RO), músico e ativista do reggae, que chegou no espaço das letras de Dom, deixando fluir Porto do Velho: um reclame dito pela própria natureza de Dom, sobre o desenvolvimento. 

Marcela Bonfim É economista e vive em Rondônia. Adquiriu uma câmera fotográfica e no lugar das ideias deu espaço a imagens de uma Amazônia afastada das mentes do lado de fora. Escreve sobre imaginários, imagem, negritude.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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