conta de energia

Mulheres negras pagam mais pela luz enquanto grandes empresas ficam de fora das tarifas

Moradoras de Heliópolis, favela de SP, relatam como a conta de energia impacta no orçamento e como fazem para economizar

Por Beatriz de Oliveira

12|11|2025

Alterado em 12|11|2025

Bandeiras tarifárias de energia elétrica pesam mais sobre famílias negras e de baixa renda, chefiadas por mulheres. É o que mostrou a pesquisa “Energia e interseccionalidade:o impacto das tarifas de energia elétrica no orçamento das famílias brasileiras”, do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), lançada em 20 de outubro.

Implementado em 2015 pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), o sistema de bandeiras tarifárias aplica uma sobretaxa nas contas dos consumidores de acordo com o nível de escassez hídrica, que dificulta o funcionamento das hidrelétricas.

O levantamento mostra que em cenários de maior encarecimento da conta de luz, as casas chefiadas por mulheres negras e pobres podem gastar o dobro, proporcionalmente à renda, em comparação com famílias brancas de maior poder aquisitivo.

Enquanto as mulheres negras de renda média têm seu gasto mensal com energia acrescido em 9,41% sob a bandeira vermelha patamar II, os homens brancos de renda alta têm aumento de apenas 6,24%.“O aumento das tarifas de energia compromete significativamente o orçamento doméstico, aprofundando desigualdades e tornando ainda mais vulnerabilizadas aquelas pessoas que já enfrentam desafios socioeconômicos”, lê-se no estudo.

Valor ‘absurdo’ da conta de luz 

Moradora de Heliópolis, zona sul de São Paulo (SP), Tamara Aparecida precisa fazer malabarismos financeiros para arcar com as altas na conta de luz. Em sua casa, moram sua mãe e seus cinco filhos. Uma das filhas, Daniela, tem visão monocular e necessita de acompanhamento médico contínuo.

Tamara precisa acompanhá-la nas consultas e no tempo que sobra em meio a outras demandas, faz bicos de faxineira e cuidadora de idosos. Num mês em que não faz bico nenhum, sobrevive apenas com um salário mínimo (R$ 1.518) que recebe a partir do Benefício de Prestação Continuada (BPC).

Com esse dinheiro precisa pagar aluguel, alimentação, água e a conta de luz, que vem numa média de R$ 150, o que representa 10,12% de sua renda mensal. Com a alta da conta de energia, devido às bandeiras tarifárias, sua cota já chegou a R$ 300. “O salário mínimo já é pouco e a conta de luz vem um absurdo”, diz.

Diante desse contexto, ela e a família fazem o que podem para economizar. Há semanas em que tomam banho dia sim, dia não, em outros momentos tiram a geladeira da tomada por algumas horas. Às vezes, há a necessidade de diminuir as compras do mercado, para sobrar dinheiro suficiente para a conta de luz.

Tamara Aparecida é moradora de Heliópolis

©arquivo pessoal

Segundo Cássio Carvalho, assessor político do Inesc, o impacto das bandeiras tarifárias sobre o orçamento das famílias é desigual. “Famílias com maior elasticidade-preço, isto é, com maior capacidade de ajustar o consumo diante de variações tarifárias, adaptam-se mais rapidamente aos aumentos. Já aquelas com menor elasticidade, como as chefiadas por mulheres negras de renda média, permanecem mais expostas ao crescimento das despesas, pois já operam em um nível de consumo essencial e pouco flexível”, explica.

Dinheiro que faz falta 

As bandeiras tarifárias são acionadas para garantir o atendimento à demanda em períodos de baixa disponibilidade hídrica, quando é necessário acionar as termelétricas, que são mais caras, devido ao uso de combustíveis fósseis. São cinco bandeiras:

Bandeira verde: condições favoráveis de geração de energia. A tarifa não sofre acréscimo.

Bandeira amarela: condições de geração menos favoráveis. Acréscimo de R$ 0,01885 por kWh.

Bandeira vermelha = patamar 1: condições mais custosas de geração. Acréscimo de R$ 0,04463 por kWh.

Bandeira vermelha = patamar 2: condições ainda mais custosas de geração. Acréscimo de R$ 0,07877 por kWh.

Bandeira de escassez hídrica: bandeira acionada em 2021, pela primeira vez, devido à pior escassez hídrica da história do sistema elétrico brasileiro. Acréscimo de R$ 0,142 por kWh

O estudo mostrou que famílias de mulheres negras de renda média arcaram juntas, em 2024, com R$ 230,8 milhões em custos adicionais provocados pelas bandeiras tarifárias. Entre os homens brancos de renda alta, esse gasto agregado foi menos da metade: R$ 106,7 milhões.

Valeska Santos, moradora de Heliópolis, sente receio ao receber a conta de luz nos meses em que a bandeira aumenta. Ela é chefe de família de uma casa em que vivem cinco pessoas: ela, as duas filhas, a mãe e o irmão. Sua renda média é de R$ 1.800, que recebe como trabalhadora autônoma fazendo obras e pequenos reparos.

No último mês, a conta de energia veio em R$ 205, o que representa 8,8% de sua renda mensal. “Para mim, é um dinheiro que faz falta, porque eu tenho que diminuir alguma coisa no mercado e na feira, não dá para levar todo tipo de fruta, a gente acaba diminuindo [as compras]”, relata. Para economizar, a família não liga ventilador e televisão à noite e busca tomar banhos mais rápidos.

Valeska Santos é moradora de Heliópolis

©arquivo pessoal

Grandes empresas não arcam com as bandeiras tarifárias 

O levantamento do Inesc mostrou mais uma desigualdade em relação à energia do país: consumidores livres, como, por exemplo, empresas, shopping centers, fábricas ou empreendimentos ligados ao agronegócio, não são acionados pelas bandeiras tarifárias, mesmo sendo os que mais gastam energia.

Isso acontece porque elas incidem apenas sobre o Ambiente de Contratação Regulado (ACR), como é o caso das nossas casas, e não sobre Ambiente de Contratação Livre (ACL), como os mencionados acima.

Os consumidores livres gastam muito mais energia. Segundo a Aneel, em 2024, o número de consumidores livres foi de 63.566, o que representa apenas 0,07% do total, mas corresponde a 42,23% da energia total consumida no ano.

Outro ponto trazido pelo levantamento foi que com as mudanças climáticas, os momentos de escassez hídrica e consequente aumento da conta de energia devem ficar mais frequentes, ainda mais as famílias de baixa renda.

Diante disso, os pesquisadores apontam alguns caminhos, como o enquadramento automático e imediato na Tarifa Social de Energia Elétrica para famílias inseridas no CadÚnico, políticas públicas que promovam a distribuição gratuita ou a custo reduzido de geladeiras, chuveiros e lâmpadas para famílias de baixa renda e a incorporação de uma política de ampliação da geração distribuída no Programa Minha Casa Minha Vida.

“É fundamental avaliarmos se as políticas públicas existentes, como a Tarifa Social, têm sido realmente eficazes. Para isso, é indispensável garantir transparência, com dados desagregados por raça, gênero e renda. Além disso, nosso estudo recomenda que as bandeiras tarifárias sejam cobradas de todos os consumidores de energia elétrica, inclusive do Ambiente de Contratação Livre, que hoje não arca com esses custos”, afirma Cássio Carvalho.