Minha jornada até o diagnóstico de autismo

A chegada ao laudo é mais difícil para pretas e periféricas

24|04|2025

- Alterado em 24|04|2025

Por Jo Melo

Tudo começou no meu nascimento, em 1988, mas foi somente em 2019 que eu me dei conta de que algo não estava bem. Eu sabia que algo não estava “certo”. Tinha inúmeras crises e não entendia o motivo. Comecei a fazer terapia, o que me ajudou a controlar essas crises. Diante de muito estresse por causa do trabalho, por ser mãe solo e chefe de família, além de estar envolvida em inúmeros projetos, me vi sobrecarregada. Eu não sabia, mas estava passando por inúmeros ¹shutdowns e ²meltdowns.

Um dia, no Facebook, li um relato de um amigo que havia recebido o diagnóstico de autismo. Eu me identifiquei totalmente com o que ele havia escrito. Passei a ler muito sobre o tema e me identifiquei ainda mais. Resolvi buscar ajuda. Paguei uma avaliação neuropsicológica, mesmo não tendo condições na época, mas eu precisava entender o que estava acontecendo comigo — basicamente desde sempre.

Com a neuropsicóloga, passei por inúmeros testes em muitas semanas de acompanhamento. A profissional só aplicou o “teste de autismo” porque eu insisti, já que ela disse que eu “não parecia autista”. A especialista em questão, inclusive, teve muita dúvida sobre qual diagnóstico me dar: considerou transtorno de personalidade histriônica, TOC, borderline e até pediu ajuda a psiquiatras. Mas acabou fechando o diagnóstico como transtorno bipolar porque, segundo ela, eu não aparentava ter stims (movimentos repetitivos), me mostrava uma pessoa empática e tinha sentimentos de solidão. Como se os autistas tivessem de ser basicamente robôs.

Os quatro psiquiatras

Depois do errático diagnóstico de TAB (Transtorno Afetivo Bipolar), passei por quatro psiquiatras. Todos apenas leram a conclusão da minha avaliação neuropsicológica e atestaram a bipolaridade — um deles também diagnosticou TDAH.

Passei, no máximo, 20 minutos com cada um. Nenhum investigou minha história ou me ouviu de verdade. Era um serviço preguiçoso, e isso é grave: um diagnóstico errado gera luto, tratamentos inadequados e a sensação de ser só um corpo sem valor.

Isso é ainda pior para mulheres negras. Quantas de nós, mulheres negras, somos medicalizadas sem qualquer questionamento, enquanto nosso sofrimento é ignorado?

Diante disso, comecei a tomar estabilizador de humor, antipsicótico, anticonvulsivante — enfim, uma infinidade de remédios. Minha dose máxima de Carbonato de Lítio chegou a 1200 mg por dia, isso porque a minha dose terapêutica do exame de ³litemia nunca chegava ao ideal. Pelo contrário: eu me sentia muito mal. Várias vezes fui ao hospital (não era pra menos), o remédio não fazia nenhum efeito e, mesmo assim, mesmo com as minhas falas, os médicos aumentavam mais ainda a dose. Como se a minha vivência em relação ao tratamento não valesse de nada.

As crises continuavam quase que iguais — e até mais aguçadas — por conta dos efeitos de medicações que acabavam com o meu psicológico e com o meu corpo. E a dúvida, enquanto isso acontecia, era: Eu sou mesmo bipolar? O que tem de errado comigo? Por que o tratamento não dá certo? Me culpava por um erro que nem era meu.

Esperança em meio ao caos

As crises quase fizeram parte do meu dia a dia. Teve uma vez que eu estava tão atordoada que precisei pedir ajuda no grupo de psicólogas parceiras da revista Mães que Escrevem. Foi um pedido de socorro de uma série de dias em que a minha cabeça parecia que ia explodir. Esse tipo de crise, em mim, se dá da seguinte forma: eu sinto minha cabeça pesada, minha mente meio que “borbulha”, e eu não consigo distinguir meus pensamentos. É como se o meu cérebro inchasse e, a partir daí, eu não consigo pensar mais em nada a não ser parar com aquela “dor” — que não chega a literalmente doer, mas que dá a sensação de que você vai perder os sentidos e enlouquecer de vez.

Quando finalmente pedi ajuda, a psicóloga Ana Cláudia me atendeu. Naquele dia, em 2023, foi como se minha cabeça se esvaziasse. Eu costumo dizer que uma crise de autismo é como uma pia cheia de água depois que você lavou a louça: tem alguma sujeira no ralo, e a água desce devagar, até esvaziar de vez. Se não tirar, aquela água transborda, molhando todo o chão da cozinha. É uma analogia um tanto diferente, mas que, pra mim, é uma das formas que encontrei para expressar como realmente é passar por uma crise sensorial.

Logo após aquela sessão, comecei a me consultar toda semana com a Ana. Eram sessões comuns de psicóloga e paciente. Após algumas semanas, a Ana, com toda a sua sensibilidade, me disse que via traços de autismo em mim. Aquilo me paralisou um pouco, e lembrei de tudo que passei em 2019: das negativas, dos remédios, das crises. Sem ao menos comentar com a Ana sobre a minha desconfiança de autismo e de tudo que passei, ela simplesmente viu algo em mim que estava mascarado.

Os dois outros psiquiatras

Lá fui eu novamente recomeçar a minha busca por um diagnóstico que era pra ter sido confirmado em 2019. Com muito custo (literalmente custo, já que a consulta com psiquiatra é muito cara), voltei à minha antiga psiquiatra. Falei do diagnóstico de autismo, mas ela disse que eu não me encaixava no espectro — que minhas características eram decorrentes da minha vivência, dos meus traumas, etc. Segundo ela, se eu realmente fosse autista, isso teria sido documentado na minha avaliação neuropsicológica. Mas não considerou que absurdos como “ter empatia” e “ter sentimentos de solidão” como negativos para um laudo de TEA eram totalmente improváveis. Então, parei de ir — uma por não ter dinheiro (já que eu havia sido demitida) e outra por não me sentir mais à vontade. E lá fui eu de novo.

Depois de procurar incansavelmente em grupos de autistas, encontrei alguns psiquiatras especialistas em TEA que poderiam me avaliar com conhecimento real de causa. Aliás, essa é uma das dicas que eu dou: procure um(a) especialista em autismo.

Muitos profissionais não acreditam que crianças autistas cresceram sem suporte e sem acesso ao diagnóstico e se tornaram adultos. Para eles, se você fala, trabalha, tem filhos — aliás, se você respira —, não pode ser autista. Mas o que eles não levam em consideração é o mascaramento, os traumas, o “fazer” quando ninguém vê, as sobrecargas sensoriais. Autistas adultos não se tornaram autistas, mas tiveram que, com muito custo — e muitas vezes sem suporte —, aprender jeitos de sobreviver. Embora alguns, infelizmente, não tenham chegado à fase adulta porque tiraram suas vidas.

Finalmente, passei com o primeiro psiquiatra. Falei de toda a minha desconfiança em relação ao diagnóstico e toda a minha trajetória de saúde mental. Ele me fez muitas perguntas — e muitas da infância. Como eu não tenho meus pais vivos (eles morreram quando eu tinha 6 anos), não havia como conversar com eles sobre a minha infância. Minha tutora? Eu não falo com ela até hoje por sofrer abusos físicos e psicológicos. Então, era eu por eu mesma, tentando lembrar atitudes da infância que justificassem o diagnóstico.  

Após muita conversa, ele me deu alguns dias para análise e, então, lá veio o laudo atestando: sim, o autismo! Confesso que, apesar de ter passado por tantas coisas, ver aquele laudo me deixou mais estranha, pensativa — ainda mais quando li que eu sou uma pessoa com deficiência. Pra quem não sabe: a Lei 12.764/12 instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, definindo que a pessoa autista seja considerada pessoa com deficiência para todos os efeitos legais. Eu não sabia daquilo, o que me deixou em luto em relação ao diagnóstico.

Mas, mesmo com um laudo na mão, eu queria confirmar de uma vez por todas. Afinal, eu tinha recebido um diagnóstico sério anteriormente — o de transtorno bipolar —, queria ter certeza de que era autismo mesmo e não outra coisa. Então, lá fui eu fazer mais dívidas para conseguir passar com outro profissional.

Desta vez, consegui uma consulta com mais uma mulher negra – e que também se chama Ana. E vou contar: é bom demais se ver representada numa pessoa e se sentir mais segura. A Drª Ana foi incrivelmente atenciosa comigo, explicou tudo sobre autismo e levantou pontos importantes sobre autismo em mulheres: mascaramento, stims, etc. Expliquei pra ela toda a minha situação, de 2019 até 2023. Conversamos muito naquele dia.

Além disso, a Ana me passou um formulário com algumas questões — de praxe — e, novamente, ela atestou: “Sim, Jo, você é autista!” Era como se eu tivesse redescoberto tudo. Mas eu ainda estava em dúvidas sobre ser ou não TAB ou ter o transtorno como comorbidade. Ela disse que não: eu sou autista com ansiedade.

Fizemos o desmame do lítio e outros medicamentos que eu estava tomando e comecei outro — antidepressivo para ansiedade. Começou a minha longa jornada de autoaceitação. Demorei alguns meses para falar sobre o meu diagnóstico nas redes sociais. Tinha medo das pessoas me julgarem: “Como assim você é autista? Você é tão ativa e independente, não parece” (e sim, eu já ouvi isso).

Desde então, me sinto bem melhor sem o lítio. Não passo mais mal como antes, não vivo em um nevoeiro de efeitos colaterais. Mas confesso: o desmame foi difícil. Aos poucos, me redescobri. Percebi que a Jo Melo autista sempre esteve ali, só precisou se esconder para sobreviver.

Mulheres como eu — negras, mães solo e autistas — têm caminhos mais longos e dolorosos até um diagnóstico. Se é que ele chega.

Para a sociedade, o autismo ainda “tem cara” de menino branco ou de mulher branca de classe média. Enquanto isso, nossas crises viram “drama”, nossos traços viram “falta de educação”, e nossa sobrecarga vira “incapacidade”’.

Quantas de nós são jogadas no rótulo de borderline ou bipolar antes de sequer serem ouvidas? Quantas desistem de buscar respostas porque o sistema as esgota?

Não estou dizendo que a maternidade atípica ou ser autista é fácil — de jeito nenhum. Cada um tem seu processo, que é muito demorado, cansativo, caro. Isso no recorte só do autismo. Mas, quando abrimos a discussão para questões raciais e maternas, esse caminho se torna difícil demais para continuar. De qualquer forma, aqui estou eu, diagnosticada há um pouco mais de um ano.

Na próxima coluna, vou contar o meu processo de redescoberta de mim mesma, sobre stims e o que aconteceu comigo após o diagnóstico. Espero você!

¹Shutdowns: Reação de “desligamento” diante de sobrecarga (isolamento, apatia, bloqueio).

²Meltdowns: Explosão emocional ou crise intensa por excesso de estímulos (gritos, choro, agitação).

Jo Melo É mãe, jornalista, escritora e fundadora da revista Mães que Escrevem. Especialista em Comunicação/Marketing e Jornalismo Digital, é também mestranda em Estudos Linguísticos pela UNIFESP. Diagnosticada como autista na idade adulta, possui hiperfoco em escrita e linguagens. É Imortal pela Academia Mundial de Letras e autora premiada na Suíça, com os livros Os Cinco Sentidos e Hipérboles. — @jomelo.escritora

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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