Meta: “Um ambiente sem moderação pode amplificar ataques a grupos vulnerabilizados”
A Procuradora Federal Manuellita Hermes alerta sobre os riscos da falta de regulação de conteúdo nas plataformas da Meta e a proteção dos direitos fundamentais
Por Amanda Stabile
29|01|2025
Alterado em 29|01|2025
Logo nos primeiros dias do ano, Mark Zuckerberg, fundador e diretor-executivo da Meta – dona do Facebook, Instagram, Threads e Whatsapp – anunciou mudanças significativas e preocupantes em relação às redes sociais geridas pela empresa.
Em 7 de janeiro, informou:
O encerramento dos programas de moderação e verificação de conteúdo nos Estados Unidos, substituindo-os por “notas da comunidade”. Nesse modelo (já implementado por plataformas como o X – antigo Twitter), os próprios usuários podem adicionar informações contextuais ou sinalizar conteúdos que consideram problemáticos, como desinformação, discursos de ódio ou violações de normas da comunidade;
O encerramento de programas de diversidade, igualdade e inclusão (DEI) dentro da empresa, extinguindo metas de representatividade e programas de contratação com foco em diversidade.
Em entrevista ao Nós, mulheres da Periferia, Manuellita Hermes – Procuradora Federal e coordenadora do Grupo de Trabalho sobre Igualdade Étnica e Racial do Comitê de Diversidade e Inclusão da Advocacia-Geral da União (AGU) – alerta que a ausência de moderação em plataformas digitais pode amplificar ataques a grupos vulneráveis, tornando essencial uma regulação que harmonize liberdade de expressão e proteção à dignidade humana.
Ela observa que a substituição de programas de checagem por “notas comunitárias” dificulta o trabalho jornalístico, ampliando a desinformação e enfraquecendo um elemento essencial para a democracia: o jornalismo responsável. Hermes também destaca que o fim de programas de diversidade demonstra a fragilidade de iniciativas privadas e a urgência de políticas inclusivas juridicamente sustentáveis.
Em entrevista ao podcast Joe Rogan Experience publicada em 10 de janeiro, Zuckerberg também demonstrou seu descontentamento com o que chamou de “neutralidade cultural” na sociedade e destacou a importância da “energia masculina”, associando-a à ”agressividade produtiva”.
Ao associar a “energia masculina” à agressividade, produtividade e eficácia em ambientes empresariais, Zuckerberg toca em questões sensíveis sobre como o gênero é percebido e valorizado, especialmente em espaços de poder e decisão. Para Manuellita Hermes, a ascensão feminina e a pluralidade incomodam certos grupos, e a verdadeira energia masculina deveria ser canalizada para apoiar os direitos das mulheres e promover equilíbrio de gênero.
Confira a entrevista completa com a especialista, que também é doutora em Direito e Tutela pela Università degli studi di Roma Tor Vergata (Itália) e em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB), professora da graduação e do programa de pós-graduação do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), docente da Escola Superior da AGU e coordenadora no Centro de Estudos Constitucionais Comparados da UnB:
Nós, mulheres da periferia: Como você interpreta a defesa de Mark Zuckerberg em relação à “energia masculina” e a ideia de “celebrar a agressão um pouco mais”?
Manuellita Hermes: Foi uma afirmação feita com incrível viés de retrocesso em relação à trajetória de luta e de conquista de espaços e de respeito em relação a mulheres em toda a sociedade e em ambientes corporativos. A luta por ele referida é outra, a que é associada à agressividade, à habilidade em lutas marciais como o MMA e a uma mentalidade matadora.
A alegação de que a cultura corporativa se inclinou para uma aventada neutralidade demonstra, em verdade, um incômodo com a ascensão de mulheres, com a pluralidade e a diversidade, elementos essenciais em uma democracia.
Precisamos, na realidade, da tal energia masculina canalizada em um movimento de solidariedade em relação às mulheres.
De defesa de nossos direitos por quem já detém o poder, de abertura de espaços, de compreensão, de consciência de privilégios históricos a fim de alterar a sociedade em prol de um equilíbrio de gênero.
Nós: Zuckerberg justificou as mudanças em relação à moderação de conteúdo na Meta como uma defesa da liberdade de expressão. É possível equilibrar a defesa da liberdade de expressão com a necessidade de proteger usuários vulneráveis, como mulheres e minorias, contra ataques que podem ser amplificados em um ambiente sem moderação?
Manuellita: Um ambiente sem moderação pode exatamente amplificar ataques a grupos vulnerabilizados. E isso demonstra a necessidade ainda mais premente de reconhecimento de que o ambiente virtual não é uma terra sem lei, não é esfera privada livre de interferência estatal e tampouco deve ser objeto unicamente de regras elaboradas unilateralmente por atores privados a seu livre alvedrio.
Defender a liberdade de expressão não é um problema. A sua defesa e, consequentemente, o seu exercício, porém, devem estar intimamente ligados ao uso adequado e responsável de redes sociais, por meio de procedimentos e conteúdos que não afrontem os demais direitos fundamentais e a dignidade humana.
Nós: Você acredita que a falta de regulação das plataformas da Meta pode aprofundar desigualdades de gênero e raça também fora dos ambientes digitais?
Manuellita: As práticas no âmbito da internet, em ambientes digitais, refletem e retroalimentam práticas da sociedade real, das comunidades, dos grupos, das pessoas que utilizam as ferramentas virtuais que lhes são postas à disposição.
Por isso, uma regulação frágil ou inexistente pode reforçar discriminações, discursos de ódio e isolamentos no cenário de uma sociedade desigual, notadamente no que concerne às assimetrias de gênero e raça.
Nós: Quais mecanismos poderiam ser implementados para criar um ecossistema digital que resguarde a dignidade humana e os direitos fundamentais?
Manuellita: A própria Meta já teve atuação em prol da construção de uma arquitetura de fiscalização, em parcerias com governos, a fim de viabilizar checagem, moderação, em suma, uma certa forma de regulação. Com a guinada dada pela empresa, percebe-se que não se pode deixar um tema tão sensível e fundamental ao sabor das oscilantes vontades empresariais, a depender do gênero da sua energia.
Já podem ser percebidos, então, riscos sistêmicos com contornos mais definidos, que exigem, por isso, um formato híbrido de governança, que concilie interesses privados, econômicos e estatais, sem desconsiderar a essencial proteção da democracia, dos direitos fundamentais e da dignidade humana.
Nós: O que o fim dos programas de diversidade, igualdade e inclusão (DEI) indica sobre o compromisso da Meta e das grandes plataformas com políticas de inclusão e responsabilidade social?
Manuellita: Indica, mais uma vez, a fragilidade de iniciativas de inclusão erigidas e mantidas apenas a depender da esfera privada, capaz de alterar sua condução em razão de novos interesses que surgem após mudanças político-governamentais do país. Essa liberdade para criar ou eliminar sem consequências jurídicas, mas com potencial de graves consequências fáticas (desemprego e marginalização de mulheres, pessoas negras e estrangeiras, por exemplo), reforça, mais uma vez, que estamos diante de uma exigência de construção de um modelo que propicie uma democracia real, que, a meu ver, pressupõe igualdade de gênero e racial.
Nós: De que maneira você acredita que a ampliação de “notas comunitárias” e a redução da moderação de conteúdo podem dificultar o trabalho jornalístico de apuração e contextualização de informações?
Manuellita: Não sou jornalista, mas posso imaginar o quão desafiador é o exercício da profissão em tempos atuais, com toda a gama de irresponsável criação e propagação de inverdades e desinformação.
O encerramento do programa de checagem pela Meta, seguido da substituição pelo modelo de notas de comunidade, que repassa aos usuários a função de eventual correção, gerará uma incrível pulverização que dificultará sobremaneira o trabalho jornalístico, tão valioso e imprescindível a qualquer democracia.