
Marisa abre o dia em Taboão da Serra com café e coragem
Conheça a história de Marisa Luana Alves Machado, mulher periférica que concilia dois trabalhos, cria os filhos e nos convida a enxergar as histórias por trás dos cafés servidos nas ruas
Por Alessandra Santos
11|07|2025
Alterado em 11|07|2025
Quando saí numa sexta-feira de manhã à procura de personagens para essa reportagem, a direção estava muito bem definida: bairros nobres de São Paulo (SP). O foco era fazer um paralelo entre vendedores ambulantes periféricos que se deslocavam diariamente para bairros nobres da capital para vender café.
Foi por isso que, quando vi a barraca da Marisa numa esquina de Taboão da Serra (SP), cidade periférica na Zona Oeste de São Paulo, eu hesitei em parar. Ainda que ela fosse uma boa personagem, não atenderia ao único requisito que a equipe pré definiu, então a entrevista com ela muito provavelmente não seria utilizada.
Olhando agora, chega até ser engraçado pensar que eu quase não parei na barraca da Marisa, quase não a conheci, quase não a convidei para uma conversa. Por muito pouco, nossos caminhos não se cruzaram. A boa notícia é que, por intuição ou um faro jornalístico, eu parei, eu a ouvi, eu a conheci. E, por causa disso, esta reportagem tomou outro rumo. Um rumo bem melhor.
“Esqueci de vocês!”, foi a primeira coisa que eu ouvi de Marisa, ainda do outro lado do portão, quando fui com uma colega até a casa dela pela primeira vez. Eu estava apreensiva porque, quase no horário da conversa, percebi que tinha esquecido de confirmar a entrevista com ela, ou seja, as chances da Marisa ter esquecido que marcou um papo com a gente eram bem altas. E foi exatamente o que aconteceu.
Com receio de incomodá-la, estava prestes a dizer que voltaríamos outro dia, até que ela abriu o portão e nos convidou para entrar, com um sorriso receptivo a ponto de eu nem me questionar se ela estava nos recebendo só por educação.
Marisa Luana Alves Machado nasceu em 27 de janeiro de 1980, na região de Santo Amaro, São Paulo. Ela tem 45 anos, dois filhos e uma jornada dupla de trabalho: vende café da manhã na rua todos os dias e é cozinheira particular na casa de uma família árabe.
Ela nos recebeu, desta primeira vez, vestindo um conjunto fitness de poliamida e um tênis de corrida, o que fazia todo sentido, pois havia acabado de chegar do seu segundo trabalho, do qual faz o trajeto de bicicleta todos os dias. Sobre a decisão de começar a ir e voltar do trabalho pedalando, conta:
Uma vez, quando trabalhava no Jardins, precisei usar meu dinheiro da condução pra outra coisa e fiquei sem dinheiro pra voltar. Tive que voltar andando de lá até em casa [Taboão da Serra]. Foi aí que eu pensei: quer saber? Vou comprar uma bicicleta!

Em menos de cinco minutos na enorme garagem da casa de Marisa – que mais tarde eu viria a descobrir que ela também aluga como salão de festas – já sabíamos ao menos dez coisas diferentes sobre ela, e todas eram interessantes. Inquieta, ela anda de um lado para o outro arrumando as coisas pela garagem, emenda vários assuntos de uma só vez e nos oferece copos d’água repetidamente.
Antes de enfim começarmos a entrevista, ela pede para esperarmos um minuto, não quer aparecer na câmera sem passar batom. Assim que ela desaparece nas escadas escuras de sua casa, olho para minha colega para ter certeza de que estamos igualmente inebriadas pela personalidade daquela mulher. E é claro que estamos.
A conversa com ela se encaminha quase naturalmente. Eu tenho quinze perguntas anotadas no meu bloquinho de notas e ela me responde todas nas duas primeiras. Por um momento, até esqueço que estou a entrevistando, me sinto numa mesa de bar conversando com uma velha amiga.
No fim da conversa, sinto que tenho todas as informações para construir um texto sobre ela, mas não consigo parar de saber detalhes. Então, antes de sair, proponho, como quem não quer nada “Ei, Marisa, você acha que faz sentido a gente vir aqui na sua casa qualquer dia acompanhar seu dia de trabalho?”.
Ela, surpreendente, aceita.
Madrugada de domingo

©Alessandra Santos
São 03h30 da madrugada de um domingo para segunda. A cidade ainda está praticamente toda adormecida. As pessoas aproveitam as últimas horas de sono antes de uma nova semana começar. Mas as luzes da casa de Marisa já estão acesas. E, nós, eu e outros dois colegas, estamos no seu portão outra vez. Vamos acompanhar a sua manhã de trabalho.
Como da primeira vez, Marisa nos recebe com muito carinho. Ao entrarmos, ela pede para que a gente não repare na bagunça e volta para seus afazeres cotidianos.
Logo de cara, é impossível não notar em Marisa uma fascinante habilidade de fazer várias atividades ao mesmo tempo. Na cozinha, ela passa café, esquenta leite, assa pães de queijo e organiza seus utensílios em sacolas reutilizáveis quase simultaneamente. Enquanto isso, ainda encontra concentração para embarcar conosco numa conversa profunda sobre sua percepção de mundo.
A característica mais evidente em Marisa, à princípio, é a sua crença inabalável na força do estudo. “A gente precisa estudar, o estudo é tudo na vida da gente”, Marisa repete várias vezes durante nossa conversa. Hoje, ela acredita fielmente que estudar é capaz de mudar vidas. Mas nem sempre foi assim.
Aos 15 anos, Marisa teve sua juventude interrompida por uma gravidez. Diante dessas circunstâncias, o estudo teve que ficar em segundo plano; a prioridade era o trabalho. O pai da criança era um namorado da época, que além de ter 12 anos a mais que Marisa, era “um homem de vícios”, como ela mesmo descreve.
Apesar da jovem Marisa acreditar que a relação era séria, acabou não indo para frente. No meio de um feriado de carnaval ensolarado, o pai de seu filho e até então namorado terminou o relacionamento depois de conhecer sua “alma gêmea” no centro espírita, uma mulher com a qual “seu santo tinha batido”. Marisa confessa que passou um bom tempo num desentendimento ferrenho com o feriado de carnaval e com a própria religião por causa disso.
Enquanto nos contava essa história, ela continuava sua organização quase performática. Nessa altura, todos os alimentos já estavam prontos, e ela começava a distribuí-los nas sacolas reutilizáveis.

©Alessandra Santos
Antes de sair, um ritual: ela deixa o café da manhã preparado para seu filho mais novo, um adolescente de 15 anos, o acorda para ir à escola, tira a touca de cetim, coloca uma blusa de manga comprida, veste um avental, pendura uma pochete na cintura e passa batom na frente do espelho.
Às 4h30 da manhã, enfim, estamos saindo rumo ao ponto de venda de Marisa. Temos, no total, três sacolas pesadas, uma mesa, uma cadeira, uma barraca e um carrinho vitrinado que carrega uma série de outras bolsas dentro. Excepcionalmente naquela manhã, nós a ajudamos a carregar todas as coisas para o ponto, mas não pude deixar de pensar que esse é um peso que ela carrega diariamente sozinha.
“Faço duas viagens se necessário”, responde Marisa ao ser questionada sobre o peso e a quantidade das coisas, “deixo lá e venho buscar o restante, ninguém mexe, não”. Seu ponto de venda não é muito distante da sua casa, ainda assim, essa não me parece uma atividade tão confortável de ser feita todos os dias às 04h da manhã.
Mas a Marisa parece imbatível.
Ela percebeu muito cedo que teria que batalhar para conquistar o que queria e que ninguém poderia enfrentar essa batalha em seu lugar. Talvez isso explique a sua fé inabalável na própria força de vontade.
Se você desanimar, ninguém vai te ajudar. É você mesmo com você. Então, a gente não pode desanimar, a gente tem que sempre ter força, né? Acreditar em algo, isso é importante na vida da gente.
Marisa largou os estudos para se dedicar a trabalhos pontuais, mais especificamente como empregada doméstica. Mas, naquela época, essa área ainda não era regularizada, e Marisa descobriu os pontos negativos dessa falta de regularização da pior maneira possível: na prática.
“Era uma coisa muito “explorativa”, define Marisa. E ela tem razão. A lei que assegura direitos aos trabalhadores da categoria de empregado doméstico só foi aprovada em junho de 2015, no governo da presidenta Dilma Rousseff. Marisa, em determinado momento, chega a dizer que o serviço de empregada doméstica naquela época se parecia com escravidão. “Quando mudou, muita coisa já tinha acontecido, muita gente já tinha sofrido, porque a gente não tinha direito, porque era um serviço que quem fazia era quase escravo”, comenta ela.
Mesmo com a lei assegurando os direitos dos empregados domésticos, desde 2017, 101 trabalhadores domésticos foram resgatados em condições análogas à escravidão no Brasil, de acordo com um levantamento feito pelo Brasil de Fato utilizando dados do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). O buraco se mostra bem mais profundo.
Ainda assim, Marisa fazia parte do grupo de pessoas que não tinham o privilégio de lutar, exigir ou esperar pelos seus direitos trabalhistas. E isso quer dizer que ela enfrentou muitas situações precárias nos seus primeiros anos de trabalho.
Uma de suas patroas, por exemplo, descontava do seu salário todas as ligações que ela fazia para Uberlândia, cidade natal de sua mãe. Essa mesma patroa exigia que ela dormisse no trabalho e a impedia de estudar. “Ela falava pra mim: se você quiser estudar, essa não é a profissão”, conta Marisa.
Além disso, durante muitos anos, ela também precisou engolir a seco o grande acúmulo de função e todas as responsabilidades acerca de cada uma das demandas.
Na época, a gente fazia tudo, né? Fazia comida, cuidava de criança, limpava a casa (…) e se o filho do patrão se machucasse, a culpa nunca ia ser do patrão, ia ser sua, que tinha que ficar de olho na criança e na panela.
Marisa continuou nessa luta até receber um chacoalhão da vida, ou melhor, de uma grande amiga. “Filha, você tem que acordar pra vida, seu filho precisa de você, seu pai precisa de você, você não é rica. Se você continuar nessa, não vai conseguir nada na vida”, foi o conselho que a Marisa recebeu de sua amiga e que, segundo ela, foi o que a fez mudar. Depois disso, ela começou o supletivo e terminou os estudos.
A migração da função de empregada doméstica para cozinheira, por sua vez, só aconteceu depois que ela começou a trabalhar numa agência. Lá, pela primeira vez, alguém perguntou o que Marisa gostava de fazer. “Olha, eu acho que eu tenho dom pra cozinha”, foi o que ela respondeu. E estava certa.
A agência a ouviu, e Marisa começou a se dedicar apenas ao ofício de cozinheira, trabalhando em casas de família e eventos. Mais tarde, formou-se cozinheira profissional pelo Instituto Gastronômico das Américas, além de fazer vários outros cursos na área. Marisa não descobriu só o seu dom, descobriu sua grande paixão.
A ideia de ter uma barraca de café da manhã surgiu na pandemia, quando os trabalhos começaram a diminuir por causa do isolamento social. Sem querer se desvincular da cozinha, ela pensou que vender café da manhã poderia ser uma boa opção. Nunca mais parou.
“Esse cantinho parece que foi feito pra mim, tá vendo?” Marisa comenta enquanto nos mostra que, para que sua tenda não balance, ela costuma amarrá-la num toco de árvore. É realmente mágico como tudo se encaixa.
A mesma tenda desmontável nos protege da garoa fina daquela segunda-feira. Agora, já estamos no ponto de venda de Marisa. Ela monta seu espaço com cuidado. Ao lado do carrinho vitrinado, encosta a mesa de plástico que, por sua vez, é milimetricamente organizada e decorada. Às 05h da manhã, tudo já está em seu devido lugar.
O dia ainda não amanheceu, mas já começou. Aos poucos, a cidade de Taboão da Serra começa a se movimentar. Jovens de terninho indo em direção ao metrô, ciclistas, mães indo levar seus filhos à escola. E há uma coisa em comum entre todas as pessoas que passam na frente da barraca de Marisa: todos a desejam um bom dia.
Mas, talvez, a interação mais marcante que a Marisa teve naquele dia tenha sido com o perueiro responsável por levar seu filho à escola. Isso porque foi ele quem passou avisando que o menino não apareceu para ir à aula.
Ela começa então a desabafar sobre os desafios de ter um filho adolescente: fica demais no celular, dorme muito tarde, quer faltar aula. Mas não demora muito para a conversa mudar de tom e Marisa começar a focar nos aspectos positivos do filho. Ela também fala sobre o orgulho que sente do filho mais velho, Victor, que se formou em enfermagem e já saiu de casa.
Ao contar do casamento de Victor, Marisa se emociona. “Eles tocaram uma música do Emicida, linda, eu não posso falar disso, não posso, vou começar a chorar”, dizia ela, limpando os olhos, já encharcados.
Orgulhosa, ela começa a nos mostrar algumas fotos pelo celular. E, então, enquanto o dia amanhece, nós estamos aninhados ao redor de Marisa para conseguir enxergar os registros na telinha que ela segura. Enquanto passa as fotos na galeria, nos conta a história por trás de cada uma delas: o casório do filho, um trabalho na praia, um churrasco em casa, uma encomenda que fez pra uma festa. De repente, estamos dentro de seu mundo particular. Os filhos e amigos, que até então estavam no campo da imaginação, passam a ter um rosto. E a história de Marisa começa a se completar.

São 07h da manhã quando desligamos o gravador de voz, guardamos o tripé e enfim, pedimos um café. Eu pego um chocolate quente e um pedaço de bolo, meus colegas escolhem lanches e sucos naturais. Ao elogiamos os alimentos, ela sorri e agradece quase timidamente. Nesse momento, eu me lembro de uma conversa que tive com ela na primeira vez que a vi.
“Marisa, quais são as vantagens de ter uma barraca de café da manhã na rua?”, eu pergunto. E ela me responde: “Olha, se você falar vantagens, vantagens, não são muitas (…) Não é uma coisa que você fala ‘Que daora!’. É cansativo, não é pra qualquer um. O meu corpo dói muito, não me dá tanta renda extra assim. Acho que a minha vantagem é, tipo, quando eu faço a minha torta e a pessoa come e fala ‘que torta gostosa’ ‘que lanche gostoso’ ‘que bolo bom’, essa é a minha satisfação”, Marisa me responde.
Eu, de imediato, questiono: então, você faz por amor?
Ela direciona o olhar pra mim, pensa um pouco, depois olha para o alto e sorri como se tivesse acabado de achar a definição perfeita para a sua relação com o ato de cozinhar.
É, é por amor, sim.
Trabalho universitário | Reportagem multimídia que conta a história de vendedores ambulantes de café da cidade de São Paulo. Fiquei responsável pelo segundo texto, denominado Marisa, sobre a história de uma mulher que me ensinou que nada é tão poderoso quanto o amor pelo que se faz. Link da reportagem completa aqui.