Maria Firmina dos Reis, a mulher que escreveu liberdade antes da abolição
Considerada a primeira romancista brasileira, Maria Firmina dos Reis escreveu também contos e poesias, além de fundar uma das primeiras escolas mistas do país
Por Beatriz de Oliveira
07|11|2025
Alterado em 07|11|2025
Primeira romancista brasileira, Maria Firmina dos Reis viveu entre 1825 e 1917 e trilhou uma trajetória singular. É autora do romance Úrsula, os contos Gupeva e A Escrava, além de uma série de poemas publicados em jornais maranhenses. Mais de um século após sua morte, seu legado se mantém vivo e inspira meninas e mulheres negras na atualidade.
“A Firmina é uma precursora porque está muito fincada no tempo dela, dialogando com as possibilidades de futuro. Ela vivia numa sociedade escravista, mas era uma mulher republicana”, afirma Luciana Diogo, doutora em Literatura Brasileira, pesquisadora da obra da maranhense há mais de 10 anos e criadora do site Memorial de Maria Firmina dos Reis.
Maria Firmina nasceu livre em São Luís (MA), é filha de Leonor Felipa dos Reis, negra alforriada, e provavelmente de João Pedro Estevão, homem branco de posses e sócio do ex-proprietário de sua mãe. Fazia parte de uma família de músicos e alfabetizados. A maranhense teve por volta de 15 “filhos afetivos”, vários deles escravizados, a quem ela alfabetizou.
Quando tinha 25 anos, foi a única aprovada no exame de professora de primeiras letras da Vila de Guimarães (MA). Atuou na área por mais de três décadas. Pouco antes de se aposentar, em 1880, fundou uma das primeiras escolas mistas (com meninas e meninos juntos nas salas de aula) do país na vila de Maçaricó. O local funcionou por três anos.
“Não era uma escola como a gente pensa hoje, era bem improvisada, num barracão. Ela ensinava tanto para as crianças que os pais podiam pagar, como também as crianças que os pais não poderiam pagar. Meninos e meninas filhos de fazendeiros, crianças pobres e possivelmente crianças escravizadas”, afirma Régia Agostinho, doutora em História e pesquisadora de Maria Firmina dos Reis há uma década.
Por muito tempo, o legado de Maria Firmina foi invisibilizado. O primeiro resgate de sua trajetória aconteceu em 1973, quando Nascimento de Morais Filho encontrou informações sobre o romance Úrsula em periódicos do século XIX. A partir daí, ele passou a investigar a vida da escritora e lançou em 1975 o livro “Maria Firmina dos Reis: fragmentos de uma vida”, que reúne poesias, contos, hinos e depoimentos de ex-alunos e alunas dela , já nonagenários na época.
Cem anos após a sua morte, em 2017, suas obras passaram a ser mais valorizadas. “Até 2017, tínhamos quatro ou cinco edições de Úrsula. De 2017 para cá, temos mais de 30 edições de Úrsula no mercado”, afirma Luciana Diogo.
A pesquisadora destaca a relevância de se manter vivo o legado da maranhense: “acho bem importante a gente pensar nessa autora como uma grande intelectual e pensadora da política e da organização social do Brasil”.
O pioneirismo de Úrsula
Publicado em 1859, o romance Úrsula – em que Firmina assina com o pseudônimo “Uma Maranhense – é considerado o primeiro livro de autoria de uma escritora negra no Brasil e primeiro romance feminino antiescravista. A obra narra a história de amor entre os jovens Tancredo e Úrsula, e tem como personagens importantes pessoas escravizadas, como Túlio e Preta Suzana.
Numa resenha sobre o livro no jornal A Imprensa em 18 de fevereiro de 1860 lê-se: “esta obra, digna de ser lida não só pela singeleza e elegância com que é escrita, como por ser a estreia de uma talentosa maranhense, merece toda a proteção pública para animar a sua modesta autora a fim de continuar a dar provas de seu belo talento”.
Luciana Diogo pontua que Firmina inova ao trazer pessoas negras como personagens bem construídos, algo incomum nos romances da época, em que os escravizados eram descritos como parte da paisagem ou tipos sociais.
“A Firmina traz essas pessoas negras ao status de personagem e de narradores em primeira pessoa. Vemos essas personagens contando a sua história pela sua voz, fato que até hoje é inovador”, diz.
A autora também constrói narrativas acerca de mulheres brancas de elite e subalternizadas, o que representa um contraponto ao que se lia na época, na qual eram comuns histórias em jornais e livros escritas por homens com o intuito de “educar” as mulheres a se comportarem de forma subserviente. “A Firmina constrói essas personagens mulheres de um ponto de vista que questiona essa condição da mulher no patriarcado”, afirma.
Além disso, através da personagem Preta Suzana, a escritora traz um imaginário saudoso sobre o continente africano. “Ela traz essa imagem de uma África que contrariava a ideia de que eram pessoas incivilizadas, então ela traz essa África que é pátria e civilizada, em que bárbaros brancos laçam pessoas negras e trazem para o Brasil”, explica.
Úrsula. Edição de 2021
©Divulgação
Num trecho do livro, a autora escreve: “– Sim, para que estas lágrimas?!… Dizes bem! Elas são inúteis, meu Deus; mas é um tributo de saudade, que não posso deixar de render a tudo quanto me foi caro! Liberdade! Liberdade… ah! eu a gozei na minha mocidade! Túlio, meu filho, ninguém a gozou mais ampla, não houve mulher alguma mais ditosa do que eu. Tranquila no seio da felicidade, via despontar o sol rutilante e ardente do meu país, e louca de prazer a essa hora matinal, em que tudo se respira amor (…)”.
Régia Agostinho sinaliza que no momento em que o romance foi publicado “o Maranhão estava passando de uma província compradora de escravizados para uma província exportadora de escravizados para o sul e sudeste”.
Dentro desse contexto, a obra Úrsula se destaca por ter um cunho antiescravista, despontando a autora como uma das precursoras do abolicionismo. “Ela colocava os escravizados como personagens que falavam contra a escravidão, e não se encontra isso em outros textos literários do mesmo período”, diz.
A historiadora menciona ainda que apesar de assinar o livro como “Uma Maranhense”, os registros nos jornais mostram que a identidade de Maria Firmina era conhecida pelo público de São Luís. Para a pesquisadora, essa escolha pode ter sido feita por dois motivos: para se resguardar de críticas vindas de fora da província e por seguir um estilo comum na época, o uso de pseudônimos.
Outros escritos
Maria Firmina também assina os contos Gupeva (1861-1862) e A Escrava (1887). O primeiro trata de um amor voraz entre o francês Gustão e a indígena Épica. Já o segundo, publicado no auge do movimento abolicionista, narra a trajetória de uma mulher abolicionista que presencia a história de uma escrava que foge de seu algoz.
A escritora também assina a antologia poética Cantos à Beira Mar (1871) e publicou ao longo de quatro décadas poemas em jornais maranhenses. Muitos desses textos, falam de amor, como o “Uma Tarde no Cuman”, que na primeira estrofe lê-se:
“Aqui minh’alma expande-se, e de amor
Eu sinto transportado o peito meu;
Aqui murmura o vento apaixonado,
Ali sobre uma rocha o mar gemeu”
Cantos à Beira-mar. Edição de 2021.
©divulgação
Além dos escritos públicos, Firmina também alimentava um diário (1853 a 1903). Luciana Diogo explica que os textos eram divididos em dois eixos: espaços de testes para seus poemas e escritas literárias, e anotações sobre sua família.
Segundo a pesquisadora, o diário ajuda a compreender como vivia uma família negra no período colonial a partir da ótica do amor e do afeto. “Ela vai colocar ali as suas preocupações de mãe, de amiga, e vai contar a trajetória desses filhos adotivos que eram escravizados e que circulam pelo território”, diz.
No documento, Firmina descreve sentimentos íntimos e reflexões pessoais. Num texto sem data nomeado “O que é a vida”, ela escreve: “Eu amo as lágrimas…Elas têm sido as companheiras da minha árdua e penosa existência; é nelas que tenho achado meu conforto, nelas é que me hei estribado para chegar ao breve termo da minha longa peregrinação…”.
A autora também tem contribuições no ramo musical, compôs: Auto de bumba-meu-boi (letra e música); Valsa (letra de Gonçalves Dias e música de Maria Firmina dos Reis); Hino à mocidade (letra e música); Rosinha, valsa (letra e música); Pastor estrela do oriente (letra e música).
Legado vivo
O Clube de Leitura Maria Firmina dos Reis, do Colégio Universitário (COLUN), da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), traz para a atualidade os escritos da autora e de outros escritores brasileiros para crianças e adolescentes.
“O clube de leitura busca formar leitores críticos, para a ampliação da Lei 11.645/2008, trazer uma literatura que nem sempre é escolhida na escola”, diz a professora e coordenadora do clube Aldenora Resende.
Ela conta que o primeiro livro abordado pelo grupo foi Úrsula, na versão em HQ, adaptada por por Iramir Araújo, Rom Freire e Ronilson Freire. A leitura despertou discussões sobre temas como o patriarcado e a violência contra mulher.
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“O nome do nosso clube é Maria Firmina, porque tem uma potência nesse nome. Ela nos deixou um legado e um movimento de resistência. Apesar de todo um contexto que não era favorável para ela escrever”, afirma.
E acrescenta: “ler Maria Firmina mostra para as meninas que elas podem sim estar em qualquer espaço, de várias possibilidades, de se apaixonarem também de diferentes formas”.
Régia Agostinho pontua que a autora merece ter seu trabalho retomado também por ser uma referência positiva para meninas e mulheres negras e porque muitas das coisas que ela denunciou no passado permanecem latentes nos tempos de hoje, como racismo e desigualdade de gênero.
“Ela percebia essas opressões, essa sociedade extremamente hierarquizada, pautada na escravidão. Então, enquanto essas questões estiverem no nosso mundo, Maria Firmina dos Reis será extremamente necessária”, diz.