palhaça com asas

Juliene Lellis faz rir através da palhaçaria negra 

A atriz e palhaça Juliene Lellis usa de sua arte para enfrentar o racismo e enaltecer a beleza de crianças negras

Por Beatriz de Oliveira

11|02|2025

Alterado em 11|02|2025

Quando menina, Juliene Lellis foi a um circo na cidade onde vivia, Belo Horizonte (MG). Ela e outras crianças estavam sentadas na arquibancada quando o palhaço entrou e passou a mão na cabeça de cada uma delas. Ao encostar nos cabelos crespos de Juliene, o palhaço começou a gritar dizendo que havia se machucado pelo ‘cabelo de bombril’. A plateia toda riu. Décadas depois, a mineira também se tornou palhaça, mas não uma que deprecia o corpo alheio. Pelo contrário: Juliene usa sua arte para enfrentar o racismo e enaltecer a beleza de crianças negras, através do que chama de palhaçaria negra.

Segundo ela, que também é atriz, a palhaçaria negra passa por se posicionar estética e politicamente nessa arte, de modo a ir contra a lógica comum de ridicularizar pessoas negras. Em sua dissertação de mestrado em Educação “Palhaçaria negra: o jogo, a poética e a pedagogia de uma palhaça preta”, ela escreve: “ao construir um jogo afrorreferenciado e antirracista, inverto e escancaro os valores hegemônicos, expondo as forçadas situações de subalternidade e humilhação sofridas pela população negra”.

mulher negra de tranças

Juliene Lellis é atriz e palhaça

©arquivo pessoal

A pesquisadora explica que não há como dissociar o racismo estrutural da prática da palhaçaria, uma vez que a cultura e estética negra foram menosprezadas historicamente. Dentro da comicidade, isso fica evidente na “década de 90, com Os Trapalhões, em que os personagens negros eram tidos como ‘macacos’ e tinham sua capacidade intelectual preterida, eram sempre motivos de escárnio”, diz.

Na dissertação, ela também cita o caso da personagem Adelaide, dos anos 2000 do programa Zorra Total, da rede Globo, que era interpretada por um homem vestido de mulher. Se tratava de uma mulher negra e pobre, com traços exagerados: nariz alargado, sem dentição, com nádegas enormes, pele tingida de preto; e que usava o jargão “eu sou a cara da riqueza”. “O fato é que a personagem Adelaide cumpria o estereótipo da negra burra”, pontua Juliene.

Mulher, negra e palhaça

A atriz conta que, por um longo período, vigorou a ideia de que mulheres não poderiam ser palhaças porque sua feminilidade frágil as impedia de serem sagazes e engraçadas. E foi nesse contexto, na década de 1940, que surgiu a primeira palhaça negra de que se tem registro. Maria Eliza Alves dos Reis, que vivia o palhaço Xamego, era atração de sucesso do Circo Guarany, em São Paulo.

Maria Eliza era de uma família tradicional de circo e, quando seu pai ficou doente, assumiu o papel de palhaço se vestindo de homem e caiu no gosto do público. Apesar do sucesso, nunca revelou à plateia que era, na verdade, uma mulher. Sua história foi contada no documentário “Minha avó era palhaço”, de Mariana Gabriel e Ana Minehira.

De lá pra cá, muita coisa mudou. Mulheres atuam em diversas vertentes da palhaçaria, seja nos sinais, nos hospitais, nos circos ou onde mais se proponham a estar. É o caso da própria Juliene, que é palhaça desde 2008. Começou sua trajetória na palhaçaria hospitalar, área em que atua até hoje.

O primeiro hospital em que trabalhou como palhaça foi o mesmo em que sua irmã faleceu. Juliene entendeu esse fato como uma maneira de ressignificar sua dor. Ao mesmo tempo, se viu diante de uma maioria de pacientes negros em um hospital público, sofrendo racismos cotidianos.

“Isso me deu um start para começar a palhaçaria preta, de inverter essa lógica do riso e do humor racista. Esse humor, que na verdade é ridicularização, eu não faço”, diz.

Buscando a graça em situações cotidianas, ela dá vida a palhaça Zabeinha, que no contexto hospitalar usa jaleco e se torna a Doutora Zabeinha. “Ela é completamente popular, nada polida, fala alto, brinca com o estereótipo do médico, é muito amorosa e muito musical com as crianças”, descreve.

GALERIA 1/2

Juliene atua na palhaçaria hospitalar © reprodução

Juliene da vida à palhaça Zabeinha © arquivo pessoal

Em seus jogos cênicos, Juliene busca trazer referências da cultura negra, como o samba, e enaltecer a beleza das crianças negras – toda vez que se aproxima de uma, ela finge um desmaio e diz que o motivo é a beleza da criança.

A doutora palhaça também é direta em suas palavras. Como no episódio em que uma médica do hospital perguntou se ela não era muito “queimadinha para ser médica”, ao que ela respondeu “uai, e eu acho que te falta inteligência para ser médica, não?”. Assim como Juliene, Zabeinha não aceita piadas racistas.