Hospital Amparo Maternal: ‘Seu bebê vai nascer sem ar e a culpa vai ser sua’
Doula e gestante denunciam pressão de médicos para a realização de episiotomia, procedimento considerado violência obstétrica, e de cesarianas
Por Amanda Stabile
08|03|2023
Alterado em 13|07|2023
Esse texto compõe a série Doulas Denunciam, que relata situações de violência ocorridas no hospital Amparo Maternal, em São Paulo (SP)
Maria* conheceu o Amparo Maternal, hospital localizado na Vila Clementino, na zona sul de São Paulo (SP), ainda enquanto gestante. A maternidade foi uma de suas primeiras opções para dar à luz. Apesar desse plano não ter se concretizado, voltou ao hospital em 2022, para assistir a dois partos como doula. “E nesse tempo eu já presenciei várias cenas que não foram muito agradáveis”, conta.
Logo em seu primeiro atendimento, Maria deu assistência a um trabalho de parto que estava evoluindo muito bem até que entrou um número excessivo de pessoas na sala. Eram os residentes do hospital. Até as luzes, que estavam apagadas para ajudar na ambientação do momento, foram acesas bruscamente.
“Entrou um médico indicando episiotomia e querendo se sobrepor à mulher em trabalho de parto, que estava se recusando a fazer o procedimento”, lembra. O que evitou que a violência acontecesse foi que a doula já havia preparado sua cliente, nos encontros de educação perinatal – que é o processo de preparo dos pais com informações sobre a gestação – para a possibilidade de viver momentos como esse com a equipe médica.
A episiotomia é um corte feito entre o ânus e a vagina com o intuito de “facilitar” a passagem do bebê. Em 2018, a Organização Mundial da Saúde reconheceu que não há qualquer evidência científica que apoie a realização do procedimento, que é considerado, por especialistas, como uma forma de violência obstétrica.
A postura do médico ficou um pouco mais áspera após a recusa. “Ele falou ‘mas é uma indicação médica, você sabe que o bebê pode morrer. Seu bebê vai nascer sem ar e vai ser responsabilidade sua’”, recorda.
Além de serem palavras duras para dizer a alguém em trabalho de parto, as ameaças estavam sendo direcionadas a uma mulher que já havia passado pelo luto de perder uma criança. Para Maria, a única coisa necessária naquele momento era esperar. “O bebê que já estava coroado [a parte mais larga da cabeça da criança estava passando através da abertura da vagina], já estava quase nascendo”, conta.
As palavras do médico ainda foram reforçadas por outros profissionais que assistiam a cena e a gestante perguntou à doula o que ela achava que deveria ser feito. “Eu tenho certeza que você consegue”, encorajou a mulher. E não deu outra: em menos de cinco minutos o bebezão de 3,5 kg já estava nos braços da mãe.
“Eu acredito que ele fez isso na intenção de apressar o nascimento e de ensinar os alunos”, aponta Maria. “Tem essa questão dos residentes chegarem para aprender a fazer algum procedimento, alguma conduta. Mas eu também entendo que a função principal dos preceptores é estarem atualizados para não replicar essas práticas que são contra-indicadas”, diz.
Ligando o cronômetro
O segundo parto assistido por Maria no Amparo Maternal foi o de Jéssica* e teve algumas semelhanças com o primeiro. “Se tivesse paciência teria ocorrido um parto normal”, denuncia a doula.
Na ocasião, a gestante chegou ao hospital sentindo contrações, mas ao ser avaliada, a equipe informou que ela estava com pouca dilatação, apenas quatro centímetros. “Me pediram para aguardar e andar pela maternidade. Apesar de eu não acreditar que isso poderia ajudar em alguma coisa, eu aguardei em torno de uma hora e meia até a troca do plantão”, conta Jéssica.
Em nova avaliação, informaram que a dilatação do colo do útero não havia evoluído, então a mandaram de volta para casa. “Na hora eu disse que morava longe e perguntei se realmente tinha necessidade. Falaram que sim, então eu voltei para a casa, na cidade vizinha. Gastei em torno de uma hora e meia”, recorda.
Após sentir fortes dores de madrugada, logo ligou para sua doula, Maria, e correu de volta para o Amparo Maternal. Chegando lá, foi colocada em uma cadeira de rodas e prontamente atendida porque seu trabalho de parto havia avançado. Jéssica então foi levada para a PPP, a sala de pré-parto, parto e pós-parto.
“As enfermeiras se apresentaram e me perguntaram sobre o meu o meu plano de parto. Elas repassaram comigo tudo que podia ou não ser feito, mas avisaram que talvez não desse para eu ter tudo o que eu tinha planejado”, lembra. Como a gestante estava com bastante dor, a equipe suspeitou que o bebê não estivesse bem posicionado dentro do útero.
O plano de parto é um documento em que a gestante lista seus desejos para o momento de dar à luz e para seu pós-parto imediato. É uma ferramenta que garante a autonomia da parturiente e que suas escolhas sejam feitas de forma consciente. Além disso, é um instrumento que pode prevenir a violência obstétrica, já que expressa as preferências da gestante e quais procedimentos não deseja fazer.
Após duas horas, Jéssica conheceu a médica, que a examinou. A princípio dizia coisas como “você que manda”, “o parto é seu”, “a gente está aqui para dar suporte”. Mas, aos poucos, a doula foi notando uma mudança na postura da profissional. “Daí a importância de um acompanhante ponta-firme para fazer valer as vontades da gestante. Mas não foi o que ela teve”, lamenta Maria.
Jéssica já estava com quase sete centímetros de dilatação, mas mesmo assim a obstetra ofereceu a aplicação de ocitocina, um hormônio que estimula as contrações uterinas e apressa o nascimento da criança. Mas a gestante recusou, como já estava escrito em seu plano de parto.
“Eu quero aguardar mais um tempo. Eu quero descansar, já estou há 48 horas sem dormir”, disse e pediu analgesia – o uso de medicamentos para alívio da dor. Porém, junto com a medicação, a doutora prescreveu a aplicação de Plasil, um remédio para evitar enjoos do qual Jéssica tem intolerância. Em determinadas pessoas, o medicamento causa uma reação extrapiramidal, que ocasiona efeitos parecidos com os de uma crise de ansiedade.
“Os efeitos começaram automaticamente após a aplicação da analgesia. Eu entrei em desespero porque toda vez que vinha a dor eu tinha crises de ansiedade absurdas”, lembra. “Obviamente isso deixou muito claro para mim que ela não tinha lido o meu plano de parto”, conta.
Depois de cinco horas em trabalho de parto, ela já estava exausta. Sempre que a obstetra a abordava, reforçava a indicação da ocitocina. “Quando a Jéssica estava começando a entrar em um descanso mais ativo, entravam quatro ou cinco residentes ao mesmo tempo. Eles se reuniam no cantinho da sala de parto e ficavam conversando”, conta a doula.
Por conta do mal posicionamento do bebê, o colo do útero não estava dilatando o suficiente para a passagem da criança. Por isso, a equipe “ligou o cronômetro”, nas palavras de Maria, para o nascimento acontecer.
“A médica falou ‘eu vou voltar em uma hora, se você não tiver dilatado para 8 cm a gente vai ter que tomar providências’, em tom de ameaça”, lembra.
A gestante então perguntou a opinião da doula sobre o que fazer e ela sugeriu mais alguns exercícios para tentar ajudar a questão do posicionamento da criança. “Queria até pontuar que não é função da doula resolver o posicionamento do bebê. A equipe de assistência devia estar ali para avaliar e dizer o que estava acontecendo e o que podia ser feito para proporcionar uma descida melhor do bebê e a dilatação do colo, que depende de muitos fatores”, alerta Maria.
Quando o relógio já anunciava o final do tempo determinado pela obstetra, uma enfermeira avaliou o colo do útero e constatou que havia atingido a dilatação estipulada. Porém, a obstetra colocou mais alguns empecilhos para que o trabalho de parto continuasse sem interferências.
Firme, Jéssica decidiu insistir na tentativa de um parto natural, e pediu uma nova analgesia para que conseguisse comer. A doutora disse que ia mandar preparar a medicação, que nunca chegou ao quarto.
“As residentes que ficavam no canto da sala papeando vieram em volta da cama tentando convencer ela de que a equipe precisava tomar uma atitude. Por conta da dor excessiva, ela acabou cedendo e aceitando fazer uma cesariana”, lamenta a doula.
“A cesária também pode ser respeitosa, principalmente se ela for bem indicada. Mas, tirando isso, eles fazem todo um processo de constrangimento da mulher e isso não se limita ao Amparo Maternal. Quando chega no centro cirúrgico o respeito termina na porta. Até antes, na porta da sala de parto em que ela estava”.
Enquanto a gestante era levada para a sala de cirurgia, seu acompanhante e Maria ficaram esperando o pijama cirúrgico para poderem entrar no ambiente. A demora foi tanta que, nesse meio tempo, a paciente foi anestesiada e o procedimento já havia sido iniciado. “Deixaram a gente para fora e ela ficou sozinha. Mas estava no plano de parto que ela não queria ficar sozinha em momento algum”, aponta Maria.
Na cidade de São Paulo, desde 2016, além de um acompanhante, parturientes têm o direito à presença da doula durante todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato. A Lei Orgânica 16.602/2016, sancionada pelo então prefeito Fernando Haddad, também permite a presença da profissional em consultas e exames de pré-natal, sempre que solicitado pela gestante, nas maternidades, hospitais e demais equipamentos da rede municipal de saúde.
Apesar de não ser seu papel como doula, ela teve de tomar a frente para reivindicar o direito de estar com a gestante durante a cesariana.
“Só permitiram nossa entrada quando a cirurgia já estava basicamente feita. Não deu 5 minutos e já tinham extraído o bebê”.
E as violações não pararam por aí. A doula recorda que não baixaram o campo cirúrgico para que a mãe pudesse ver e ter contato com a criança. “Passaram o bebê por cima, pendurado”, conta. “A gente espera um procedimento minimamente respeitoso, o que não aconteceu. Tanto que a mãe não teve a hora dourada, que é quando, na primeira hora de vida do bebê, ele tem aquele contato pele a pele, que fortalece o vínculo com a mãe e contribui para a amamentação”.
Para Jéssica, a lembrança que fica de seu parto é a de uma médica “extremamente inconveniente”, que sequer se deu ao trabalho de ler o planejamento que ela havia feito para seu momento de dar à luz. “Hoje eu vejo que se ela não tivesse intervido, eu provavelmente teria tido o meu parto normal tranquilamente”, lamenta.
Posicionamentos
A reportagem tenta contato com a SPDM PAIS – Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, que administra o Amparo Maternal, outubro de 2022, mas até a publicação da reportagem não recebeu retorno.
Em nota, a Secretaria Municipal de Saúde respondeu que:
“A Secretaria Municipal da Saúde (SMS), por meio da Atenção Hospitalar, informa que, desde de 2020, mantém contrato de termo de colaboração entre a Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM) e o Hospital Maternidade Amparo Maternal. A unidade realiza em média 550 partos por ano, sendo 70% partos naturais e 30% por cento cesáreas.
A SMS esclarece que, para evitar aglomeração no momento do parto, apenas um acompanhante entra na sala, conforme acordado com a paciente. Sobre o médico citado pela reportagem, a direção do Amparo Maternal não recebeu nenhuma denúncia contra o profissional. A maternidade preza por garantir o melhor atendimento à população e está à disposição para registrar e apurar qualquer consideração.
Além das maternidades, a capital conta com duas casas de partos humanizados, a Casa Angela, localizada na zona sul, e a Casa de Parto Sapopemba, na zona leste da cidade. A Casa Angela é pioneira e referência em parto humanizado no Brasil e, desde sua fundação, em 2009, oferece assistência ao parto natural, em ambiente seguro, acolhedor e respeitoso. A Casa de Parto de Sapopemba, entregue há mais de 20 anos, recebe gestantes de qualquer região da cidade. O atendimento é realizado por enfermeiras obstetras e auxiliares de enfermagem que trabalham na unidade”.
*Os nomes citados no texto são fictícios para garantir o anonimato das fontes, que podem sofrer represálias e ter seu trabalho dificultado ou impedido.