Hattie McDaniel: primeira pessoa negra a ganhar um Oscar
Conquista não foi apenas um reconhecimento de talento, mas um grito de resistência e coragem em tempos de segregação e preconceito racial
Por Amanda Stabile
04|02|2025
Alterado em 04|02|2025
O Oscar, criado em 1927, é uma das premiações mais prestigiadas do cinema mundial. Desde sua primeira cerimônia, em 1929, a premiação tem sido marcada pela ausência de representatividade negra, especialmente nas categorias de atuação. Embora as contribuições de atores e atrizes negras para o cinema sejam notáveis, apenas seis atores negros receberam o cobiçado prêmio de Melhor Ator, e uma atriz negra foi premiada como Melhor Atriz.
Artistas negros vencedores do Oscar de Melhor Ator e Melhor Atriz
1964 – Sidney Poitier – Uma Voz nas Sombras (Lilies of the Field, 1963)
2002 – Denzel Washington – Dia de Treinamento (Training Day, 2001)
2002 – Halle Berry – A Última Ceia (Monster’s Ball, 2001)
2005 – Jamie Foxx – Ray (Ray, 2004)
2007 – Forest Whitaker – O Último Rei da Escócia (The Last King of Scotland, 2006)
2022 – Will Smith – King Richard: Criando Campeãs (King Richard, 2021)
Para que essas vitórias (mesmo que escassas) fossem possíveis, houve uma pioneira que, em 1940, desafiou todas as probabilidades e rompeu barreiras no Oscar, tornando-se a primeira pessoa negra a ganhar uma estatueta. Sua conquista não foi apenas um reconhecimento de talento, mas um grito de resistência e coragem em tempos de segregação racial e preconceito. Conheça a história de Hattie McDaniel:
Quem foi Hattie McDaniel?
©Gilles Petard
Filha caçula dos treze filhos do pastor batista Henry McDaniel e da cantora gospel Susan Holbert, Hattie McDaniel nasceu em 10 de junho de 1893 em Wichita, Kansas, nos Estados Unidos. Sua história familiar estava intimamente ligada à escravidão: sua avó paterna havia sido escravizada em um grande latifúndio da Virgínia e seu pai nasceu no mesmo contexto. Chegaram ao Kansas fugindo da extrema pobreza.
Hattie descobriu seu talento para a arte cedo. Em 1910, aos 15 anos de idade, foi a única afro-americana a participar do evento Women’s Christian Temperance Movement. Na ocasião, foi ovacionada e ganhou uma medalha de ouro ao recitar seu poema “Convict Joe”. A premiação a fez perceber o caminho que queria seguir na vida.
Ela então convenceu seus pais de que deveria abandonar a escola secundária, na qual cursava o segundo ano, para se juntar ao show de seu pai e dos irmãos Otis e Sam, que viajavam o Colorado com um grupo musical. Até então, a menina só era autorizada a se apresentar localmente.
Hattie desenvolveu um talento para compor músicas, dançar e cantar e se tornou a vocalista principal do show até 1916, quando a morte de Otis desestruturou o grupo. Em 1920, ela começou a cantar com o renomado professor George Morrison, de Denver, um violinista de formação clássica cuja cor o impedia de se juntar a uma orquestra sinfônica. Ele criou uma orquestra de músicas “jazz” e viajava pelo Circuito Pantages pelos estados do Oeste. Com a queda da Bolsa, em 1929, o espetáculo foi encerrado e a artista partiu para Milwaukee.
Mais tarde, ela contou em entrevista ao The Hollywood Reporter que alguém lhe disse que no hotel Suburban Inn de Sam Pick estavam procurando uma assistente para o banheiro feminino e ela correu para conseguir o trabalho. No entanto, em uma noite, quando todos os artistas haviam ido embora, o gerente pediu que alguém subisse no palco. Hattie pediu uma canção aos músicos e começou a cantar. A partir desse momento, ela não voltou a trabalhar nos banheiros e, por dois anos, foi a protagonista do espetáculo do local.
Racismo em Hollywood
©Associated Press
Em 1931, Hattie se mudou para Los Angeles junto de Sam, Etta e Orlena, seus irmãos. Ela finalmente estava próximo a Hollywood, o centro da indústria cinematográfica dos Estados Unidos. Porém, apesar de todo talento e experiência, enfrentou inúmeras dificuldades devido ao racismo e à discriminação racial que permeavam a sociedade e a indústria do entretenimento da época.
A Hollywood que McDaniel encontrou não oferecia oportunidades fáceis para atores negros. Com a implementação do Código Hays, criado para restaurar a boa reputação da indústria cinematográfica após os escândalos dos anos 1920, surgiram restrições que proibiam, entre outras coisas, os relacionamentos entre brancos e negros, além de restringir os papéis violentos para atores negros.
Na maioria das vezes, os negros eram confinados a papéis menores e frequentemente não eram creditados: motoristas, atendentes, figurantes e, em grande parte, empregados. Mesmo assim, sua habilidade e persistência logo a colocaram Hattie em destaque.
Nos primeiros anos da década de 1930, a artista marcou presença em várias produções. Quando não conseguia papéis em filmes, se sustentava como trabalhadora doméstica. Seu irmão Sam, que trabalhava no programa de rádio The Optimistic Do-Nut Hour, também ajudou a caçula da família ao conseguir uma participação para ela. Essa oportunidade foi o ponto de virada. A partir daí, a carreira de Hattie deslanchou, conquistando uma enorme popularidade.
“…E o Vento Levou”
©Filme “…E o vento levou”
Em 1939, foi convidada para interpretar Mammy no filme “…E o Vento Levou”, dirigido por Victor Fleming. A personagem era uma serva leal e protetora da família O’Hara. Cuidava da jovem Scarlett (Vivien Leigh) e desempenhava um papel crucial no contexto da guerra civil americana e da sociedade sulista.
Mammy era uma personagem multifacetada, com sua própria personalidade e senso de humor. Hattie McDaniel conseguiu transmitir força, lealdade e sabedoria, indo além do estereótipo da empregada doméstica. A atuação abriu portas para que outras atrizes negras pudessem ter papéis mais complexos e relevantes no cinema.
O filme estreou em 15 de dezembro do mesmo ano e cerca de 300 mil pessoas compareceram ao teatro Loew’s Grand Theatre, em Atlanta. A atriz, porém, não pôde participar porque as leis de segregação racial no sul dos Estados Unidos impediam que pessoas negras frequentassem os mesmos espaços que os brancos.
A recepção de “…E o Vento Levou” pela comunidade negra foi complexa e multifacetada. Alguns criticaram o filme por perpetuar estereótipos raciais, como a figura da “Mammy” como uma mulher negra subserviente e leal aos seus senhores brancos. Houve, inclusive, manifestações organizadas por grupos de direitos civis e pela comunidade negra, que criticavam a romantização da escravidão e os estereótipos raciais presentes no filme.
Prefiro interpretar uma criada por 700 dólares a ser uma por 7.
Essa frase, atribuída à Hattie McDaniel, reflete a difícil escolha enfrentada por muitos atores negros: sobreviver na indústria aceitando papéis estereotipados ou arriscar tudo por oportunidades dignas.
Oscar e segregação racial
©Getty Images
A atriz foi indicada e levou o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante pelo papel de Mammy. A premiação, que aconteceu em 29 de fevereiro de 1940, marcou a primeira vez que uma pessoa negra venceu um Oscar, um marco histórico na luta por igualdade e representatividade em Hollywood.
Em seu discurso, Hattie McDaniel afirmou: “Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, membros da indústria cinematográfica e convidados de honra: este é um dos momentos mais felizes de minha vida, e quero agradecer cada um de vocês que me selecionaram a um dos seus prêmios por sua gentileza. Isso me fez sentir muito, muito humilde; e sempre o erguerei como um farol para qualquer coisa que eu possa fazer no futuro. Espero sinceramente ser sempre motivo de orgulho para a minha raça e para a indústria cinematográfica. Meu coração está pleno demais para lhes dizer como me sinto, e posso dizer obrigada e que Deus os abençoe”.
Apesar da importância da premiação, a cerimônia em si refletiu o racismo da época. Hattie McDaniel e sua acompanhante foram segregadas na cerimônia, sentando-se em uma mesa separada dos demais convidados. Ela não pôde tirar foto com os demais membros da equipe do filme e foi impedida de entrar na festa de comemoração do Oscar, realizada em um hotel que não permitia a entrada de negros.
Após o feito, 51 anos se passaram até que outra mulher negra subisse ao palco para receber o prêmio de atuação.
Mulheres negras vencedoras do Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante
1940 – Hattie McDaniel – …E o Vento Levou (Gone with the Wind, 1939)
1991 – Whoopi Goldberg – Ghost: Do Outro Lado da Vida (Ghost, 1990)
2007 – Jennifer Hudson – Dreamgirls: Em Busca de um Sonho (Dreamgirls, 2006)
2010 – Mo’Nique – Preciosa: Uma História de Esperança (Precious, 2009)
2012 – Octavia Spencer – Histórias Cruzadas (The Help, 2011)
2014 – Lupita Nyong’o – 12 Anos de Escravidão (12 Years a Slave, 2013)
2017 – Viola Davis – Um Limite Entre Nós (Fences, 2016)
2019 – Regina King – Se a Rua Beale Falasse (If Beale Street Could Talk, 2018)
2022 – Ariana DeBose – Amor, Sublime Amor (West Side Story, 2021)
2024 – Da’Vine Joy Randolph – Os Rejeitados (The Holdovers, 2023)
Últimos desejos
No fim de sua carreira, Hattie McDaniel retornou ao rádio e, mais uma vez, fez história ao conquistar um papel inédito para uma mulher afro-americana. Ela assumiu a personagem Beulah, uma criada estereotipada, mas com uma virada significativa: o papel, antes interpretado por um homem branco, foi agora seu.
Assim, se tornou a primeira mulher negra a protagonizar um programa de rádio, sendo paga com mil dólares por semana. Contudo, essa conquista foi breve, pois logo após iniciar o contrato, um diagnóstico de câncer foi feito e a atriz faleceu em 26 de outubro de 1952, aos 57 anos.
Em seu testamento, Hattie deixou dois desejos: ser sepultada no Hollywood Forever Cemetery e que seu Oscar fosse doado à Universidade Howard. No entanto, sua morte foi marcada por mais um obstáculo racial, já que o cemitério recusou sua entrada. O paradeiro do seu Oscar permanece um mistério: há quem diga que foi jogado no rio Potomac durante os protestos após o assassinato de Martin Luther King Jr., em 1968; outros acreditam que a estatueta está perdida em algum depósito.