Mulher idosa, usando calça azul e blusa cinza, na viela de uma favela

Há 30 anos na mesma casa, Dona Lourdes teme por despejo

Na Vila Municipal, em Carapicuíba, região metropolitana de São Paulo (SP), 400 famílias foram despejadas e tiveram suas casas demolidas.

Por Beatriz de Oliveira

15|06|2022

Alterado em 15|06|2022

Na terceira viela da favela da Vila Municipal, em Carapicuíba (cidade da Região Metropolitana de São Paulo), há uma casa com fachada coberta por pisos quadriculados nas cores azul e branco, algumas plantas que disputam espaço no muro, além de uma placa com preços de salgados, sorvete e geladinho. Nela, vive Maria de Lourdes Brito Oliveira da Silva.

Dona Lourdes é como a chamam. E sempre a chamam. Em duas horas de entrevista, várias pessoas apareceram na porta para conversar ou cumprimentar a senhora de 67 anos. Isso não é por acaso, ela mora na região há 30 anos. Quando chegou, “era só mato e bananeira”, viu o local crescer, comércios surgirem, moradores se instalaram, bebês nascerem, se tornarem adultos e pais de novas vidas. As crianças da vila a chamam carinhosamente de vó.

A senhora teme que sua casa seja derrubada, assim como aconteceu com 400 famílias que moravam na região. O prefeito da cidade, Marcos Neves (PSDB), moveu uma ação de reintegração de posse para o espaço. A justificativa é que há risco de deslizamento e, no local deve ser construído um viaduto.

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Dona Lourdes tem 67 anos de idade, e vive na Vila Municipal há três décadas.

©Beatriz de Oliveira

“Era só mato e bananeira”

Natural de Ipiaú, na Bahia, Dona Lourdes se mudou para São Paulo em 1990 com o objetivo de conseguir um emprego melhor. Na sua cidade, fez curso de enfermagem e trabalhava em um posto de saúde. Ao chegar no estado do sudeste, não conseguiu exercer a profissão por não ter documento do Coren (Conselho Regional de Enfermagem). A saída encontrada foi trabalhar como empregada doméstica.

Morou alguns meses pagando aluguel na Vila Dirce, em Carapicuíba, até que uma amiga falou de um barraco de madeira que estava à venda na Vila Municipal. A baiana pagou 90
cruzeiros. O espaço era tão pequeno, que não foi possível colocar todos os seus móveis e eletrodomésticos.

“Não tinha banheiro, era uma caixa de plástico e uma mangueira. Não tinha água, a gente buscava em uma mina. Aqui era só mato e bananeira”, conta.

Na nova morada, ficou alguns anos desempregada. Não conseguia emprego formal, por não ter “endereço”, então sobreviveu fazendo bicos. Ao conseguir um trabalho fixo, passou a transformar o barraco de madeira em casa de concreto. Pediu um empréstimo para a patroa e comprou o barraco da vizinha de trás. Aos poucos, comprou materiais de construção. O período não foi fácil: ao sair às 4h30 para trabalhar, chorava no ônibus.

Dona Lourdes se orgulha da conquista da casa. “Construí essa casa sozinha, aqui tem minhas dores e meu suor. Aqui eu não tenho medo de um homem chegar e dizer ‘vende, porque eu ajudei você a construir’. Não, fui eu sozinha”.

A senhora é mãe de três filhas: Luziane, Luzimar e Luzimeire. Também criou uma sobrinha e um neto: Jaqueline e Danilo. Hoje vive com o marido, que conheceu em São Paulo, e o neto. É aposentada desde 2009, devido a fibromialgia, condição que afeta a musculatura e causa dor crônica em todo o corpo.

Vivendo há 30 anos na Vila Municipal, Dona Zilda tem amor pelo lugar e pelos vizinhos.
“Aqui eu vi gente nascer, crescer e que já morreu. Já ajudei muita mãe a chorar. Já corri muito para o fórum para ajudar mães com os filhos na mão na polícia”, afirma.

Olhando os álbuns de fotos, ela conta dos aniversários surpresa que as amigas faziam, dos aniversários para os netos, da casa em fase de construção. Lembrando do passado, sorri, mas logo sua feição muda: a realidade do despejo bate à sua porta.

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Ao longo dos anos, Dona Lourdes transformou seu barraco de madeira em casa de concreto.

©Beatriz de Oliveira

“Cenário de guerra”

Em abril e maio de 2022, as casas de 400 famílias foram quebradas à marretadas, com os moradores ainda dentro. A pressão era para que saíssem do local devido a ordem de reintegração de posse. Guardas civis armados foram até o local por vários dias, além de assistentes sociais. Os residentes eram orientados a assinar um documento aceitando o despejo e um auxílio-aluguel de R$ 400.

“Eu gritei, abri os braços, chorei no meio do povo, fiz tumulto. Tudo armado (os guardas), e eu enfrentando, empurrando”, conta Dona Lourdes sobre sua tentativa de impedir que derrubassem uma das casas.

No dia 25 de maio, a reintegração ocorreu de fato. Sob protestos dos moradores e violência policial, conforme relata Dona Lourdes, os tratores destruíram o que sobrou as casas. Muitos moradores não tiveram tempo de tirar seus pertences. “Foi um terror”.

“Essas pessoas perderam suas casas, seus sonhos. Cada pai de família que construiu sua casa, saindo para trabalhar 5h da manhã, ou mais cedo. E depois veio para o chão, um cenário de guerra”.

Dona Lourdes relata que o auxílio aluguel de R$ 400 não é suficiente para conseguir um novo lar, e que alguns moradores que foram despejados estão vivendo em galpões e quadras. Diante disso, ela tem juntado esforços para conseguir doações de cestas básicas e outros itens para quem ficou sem amparo.

Além disso, os moradores também têm se mobilizado para realizar protestos e ações simbólicas. Uma delas ocorreu no dia 08 de junho, um grupo, incluindo a nossa entrevistada, confeccionou 50 cruzes de madeira e as fixou na área despejada, formando uma espécie de cemitério.

Cada cruz traz uma mensagem de lamento e luto pela situação. “Vila Municipal em lágrimas”, “nossos sonhos embaixo dos escombros”, “ódio aos pobres”, “mataram nossos sonhos” e “uma ponte vale mais que famílias” são algumas das palavras que quem passa pela área pode ler.

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Na Vila Municipal, em Carapicuíba, 400 famílias foram despejadas. © Beatriz de Oliveira

Na Vila Municipal, em Carapicuíba, 400 famílias foram despejadas. © Beatriz de Oliveira

Na Vila Municipal, em Carapicuíba, 400 famílias foram despejadas. © Beatriz de Oliveira

Na Vila Municipal, em Carapicuíba, 400 famílias foram despejadas. © Beatriz de Oliveira

Na Vila Municipal, em Carapicuíba, 400 famílias foram despejadas. © Beatriz de Oliveira

Na Vila Municipal, em Carapicuíba, 400 famílias foram despejadas. © Beatriz de Oliveira

O cenário de tristeza pela destruição é ainda mais intensificado pelo dia nublado em que a reportagem foi ao local, na tarde do dia 9 de junho. No chão, entre as poças de lama, é possível ver as marcas deixadas pelos tratores. Entre os escombros, pedaços de blocos, que dias antes sustentavam paredes e abrigavam famílias.

Ao mesmo tempo que luta para que a área em que mora não seja atingida pela reintegração de posse, Dona Lourdes se prepara para esse momento. Já vendeu alguns de seus eletrodomésticos. “Eu vou dormir em choque, porque parece que eles estão metendo a marreta, derrubando a minha casa”.

O que diz a prefeitura de Carapicuíba

Segundo matéria publicada pela prefeitura de Carapicuíba, a área da reintegração de posse tem laudos técnicos que apontam riscos de deslizamento e solapamento. Sobre isso, Dona Lourdes afirma que nas três décadas que mora no local nunca ouviu casos de moradias caindo ou com rachaduras.

O texto afirma ainda que “os moradores já possuem dois meses creditados de ajuda de custo (R$ 400 mensais) e continuarão recebendo até os apartamentos serem entregues”. O órgão aponta que as unidades habitacionais serão construídas próximas ao Fórum de Carapicuíba, que é localizado em frente à favela. O local despejado será destinado à construção de um viaduto que ligará Carapicuíba à Alphaville.

O que é reintegração de posse?
A ação judicial de reintegração de posse tem como objetivo devolver ao proprietário de um imóvel ou espaço a posse desse local. Sendo assim, a posse pode estar sobre uso de um terceiro, no caso os moradores da Vila Municipal, mas o dono é a prefeitura.

Durante a pandemia da Covid-19, entrou em vigor a ADPF nº 828 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), que impede ações de remoção, despejos e reintegrações no período da crise sanitária. A ordem vale até o dia 30 de junho de 2022.

Para Graça Xavier, coordenadora da União Nacional Por Moradia Popular e especialista em políticas públicas, a reintegração de posse é fruto de especulação imobiliária. O local fica próximo ao Fórum e à estação de trem. “As famílias já viviam há muito tempo lá e o dever do poder público é justamente fiscalizar e proteger o patrimônio público. Se ele não fez isso quando as famílias estavam ocupando, porque deixou ocupar, para agora ir lá e desmanchar o que as famílias levaram anos e anos para construir?”.

Em caso de reintegração de posse, o dever do poder público, segundo a especialista, é oferecer aos cidadãos atingidos um aluguel social compatível com o valor do aluguel pago na cidade, o que não é o caso da quantia de R$ 400 paga pela prefeitura de Carapicuíba. Além disso, o Estado também tem o dever de oferecer moradia a essa população. “O poder público tem que firmar um contrato com cada família, indicando que vai garantir o aluguel até entregar uma moradia definitiva”, afirma.