Feminismos favelados: a resistência nasce no morro

Andreza Jorge, artista, ativista e autora do livro Feminismos Favelados, fala sobre o feminismo nas favelas, a luta das mulheres negras e as estratégias de resistência que transformam esses territórios

Por Amanda Stabile

22|01|2025

Alterado em 22|01|2025

Andreza Jorge, artista, ativista e autora do livro Feminismos Favelados (Bazar do Tempo, 2021), transforma vivências em resistência no Complexo da Maré, conjunto de 16 favelas no Rio de Janeiro (RJ). Mulher afro-indígena, mãe e moradora há mais de 30 anos da região, sua trajetória ressignifica o que historicamente foi marginalizado.

Nos becos da Maré, o feminismo ganha um novo significado: uma prática viva, enraizada no cotidiano das mulheres negras e periféricas. O termo “favelado”, antes marcado por estigmas, é para Andreza um símbolo de identidade e resistência.

Andreza Jorge durante lançamento do livro “Feminismos Favelados”

©Day Sabany

Licenciada em Dança pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e com mestrado em Relações Étnico-Raciais pelo Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ), Andreza coordena a Casa das Mulheres da Maré. Também é idealizadora do projeto Mulheres ao Vento que, por meio da dança afro-brasileira, fortalece a autoestima e as identidades das mulheres da favela.

“O feminismo favelado emerge da resistência cotidiana”, explica Andreza. Para ela, é uma luta que articula gênero, raça, território e classe, celebrando estratégias de criação e reconhecimento. Seu livro reflete essa visão ao destacar a força coletiva que transforma favelas em espaços de potência e justiça social.

Abaixo, confira a íntegra da entrevista que fizemos com Andreza Jorge sobre o tema!

Nós, mulheres da periferia: Vamos começar com Andreza por Andreza? Me conta: quem é Andreza Jorge?

Andreza Jorge: Ai, meu Deus, que difícil! Acho que a gente assume tantos papéis na vida… Mas, de forma geral, costumo dividir um pouco quem sou nas minhas escritas. A Andreza é cria da Maré, carrega uma história daquele território — tanto da família materna quanto da paterna. Quanto mais eu volto no tempo, mais curioso fica, porque minha história remonta aos povos originários da região Sudeste, ali na divisa entre Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo… Sou muito dessa região.

Andreza é uma história familiar. Assim como a maioria das pessoas racializadas no Brasil — negras e indígenas —, minha história mistura dor e alegria.

É isso: muita resistência, muita luta, mas também muita conquista. Sou muito determinada, sonhadora. Estou fazendo doutorado, sou mãe, sou da Maré, sou uma mulher com histórico de luta.

Nós: Na primeira página do seu livro você diz: “sigo por teimosia herdada e afirmo meu lugar”. De quem você herdou a teimosia?

Andreza: Essa teimosia vem, com certeza, da linhagem materna. Quando escrevi isso, pensei especialmente na minha avó materna, dona Tina. Ela tem uma história que eu conto no livro. A Maré, para quem não sabe, é um conjunto de 16 favelas no Rio de Janeiro, construídas em diferentes momentos e de formas distintas. Minha família é da Nova Holanda, uma dessas 16 favelas.

A Nova Holanda tem uma peculiaridade: foi construída como moradia provisória para pessoas removidas das favelas da Zona Sul do Rio de Janeiro, em áreas nobres que estavam sendo ocupadas pela especulação imobiliária. Minha avó, que tinha uma casa de alvenaria perto do Jardim Botânico, foi removida. Viúva, com filhos pequenos, foi jogada num barraco de madeira na Nova Holanda, longe de toda a rede de apoio, sem explicação.

Quando penso nisso, vejo a força e a teimosia da minha avó. Essa insistência em sobreviver e resistir. É uma luta constante.

O ódio contra os pobres e favelados tenta apagar a nossa existência, mas a gente insiste. Continuamos vivendo, criando, inventando modos de ser e existir. Essa teimosia é o que eu herdei e tento honrar.  

Nós: Quando você se entendeu feminista?

Andreza: Desde cedo estive envolvida em projetos sociais. Isso foi algo peculiar na minha vida como favelada. Desde os quatorze anos, participei de projetos e sempre trabalhei com organizações não governamentais. Foi ali que comecei a ter contato com discussões sobre gênero, com uns 15 ou 16 anos.

Mas, para ser sincera, não me identifiquei imediatamente como feminista.

O que chegou para mim foi um feminismo muito universalizado, que não fazia sentido com a história da minha avó, da minha mãe, ou com a realidade da favela.

Eu entendia a importância de lutar contra padrões de gênero, mas não sentia que o feminismo que conhecia abraçava a minha vivência.

A virada veio na faculdade de dança, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Tive uma matéria eletiva com um professor que era também babalaô [sacerdote das religiões de matriz africana, intérprete de oráculos e guardião de saberes espirituais]. Ele trouxe a epistemologia de terreiro e apresentou arquétipos femininos como o de Iansã (uma deusa do panteão africano iorubá, presente em diversas religiões e no imaginário popular da cultura afrodiaspórica brasileira). Aquilo fez sentido para mim. Eu e uma colega, Simone Alves, criamos o projeto Mulheres ao Vento, usando Iansã como inspiração para falar sobre questões de gênero de forma inclusiva.

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© Day Sabany

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© Day Sabany

Nós: Foi a partir disso que surgiu essa sua vontade de estudar e cunhar um novo conceito que se aproximasse mais da sua realidade?

Andreza: Certamente. O que me incomodava era que, embora a gente tenha marcadores gerais como raça – que nos localizam e nos fazem compreender como grupo –, era necessário olhar de forma mais contextualizada.

Por que criamos conceitos e damos nomes às coisas? Porque estamos reivindicando algo. Se não nomeamos, não existe. Precisamos nomear para mostrar que existe. Esse foi o meu impulso. Na minha dissertação de mestrado, eu usei o termo “feminismo negro favelado”. No entanto, no livro, decidi manter apenas “feminismo favelado”, porque estava trabalhando essa ideia.

Quando pensamos na favela, estamos lidando com uma complexidade, inclusive no que diz respeito à autodeclaração racial. A história de migração do Norte e Nordeste para o Sudeste muda a forma como a raça é vivenciada. Por exemplo, a ideia de “branco” no Nordeste e no Sudeste é diferente, pois os processos coloniais foram distintos.

Além disso, raça é um conceito social. Uma pessoa socialmente lida como branca sofre menos os efeitos do racismo na nossa sociedade. Na favela, alguém com pele clara, como eu, pode ser vista de forma distinta, criando novas dinâmicas e desigualdades. Essa contextualização foi essencial para criar um conceito que contemplasse as mulheres da favela.

Nós: No seu livro, você também trabalha a ideia de que gênero, raça, classe e território são indissociáveis. Pode falar mais sobre isso?

Andreza: Os estudos não podem ser feitos sem se pensar nesses fatores que nos atravessam e que podem gerar mais ou menos vulnerabilidade. Para mim, o território é uma constante porque é dele que emergem as necessidades daquele grupo.

Na favela, questões como classe e raça são muito específicas. Não dá para falar só de mulheres negras, nem só de mulheres pobres, porque dentro da favela há desigualdades e dinâmicas de poder entre pessoas que convivem lado a lado. Por exemplo, enquanto uma criança toma danone, outra não tem nem pão. Essa convivência cria outras dinâmicas que precisam ser consideradas.

Por exemplo, em que outra parte do Brasil você vê helicópteros disparando tiros ou tanques de guerra no horário de entrada escolar? Em que lugar você precisa esconder onde mora para conseguir um emprego, com medo do estigma associado ao seu endereço?

Esse território é o fator de união e, obviamente, dentro desses fatores temos indicadores mais proeminentes. O território é mais negro, mais pobre, e mais feminino. A pobreza no Brasil tem cor e gênero. São essas constantes que tornam o território central para o conceito de feminismo favelado.

Nós: O livro traz entrevistas com participantes do projeto artístico Mulheres ao Vento. De que forma a conversa com elas enriquece o conceito de feminismo favelado?

Andreza: Não queria que fosse só a minha fala no livro. Acho importante compartilhar a minha história, mas sem a pretensão de “representar” a Maré. Por isso uso o conceito de “escrevivência”, da Conceição Evaristo, porque acredito que minha história individual é também coletiva.

Quando alguém lê e pensa: “Isso parece com a vida de fulano ou fulana”, percebo que atingi meu objetivo. O feminismo favelado é uma construção social impossível indissociar do coletivo.

Nós: E puxando essa fala sobre escrevivência, logo na introdução do livro, a Eliana Souza Silva [quem é] traz a questão de você ser uma intelectual-insider, que estuda algo marcado pela sua vivência. Qual você acredita que seja a importância disso?

Andreza: Acho que passamos muito tempo sendo falados por outros e isso ainda acontece. Espaços como favelas são constantemente assediados por pesquisadores, jornalistas e outras pessoas de fora. Essas narrativas são sempre feitas a partir de um ponto de vista – porque não existe neutralidade. Ninguém escreve sendo uma tábula rasa, sem premissas, crenças ou vivências.

Por muito tempo, fomos narrados por pessoas de fora. Eu, por exemplo, perdi as contas de quantas vezes recebi pesquisadores para entrevistas. Era sempre algo como: “Ah, a menininha falante da favela, vem aqui!”. Vivi isso muitas vezes, especialmente enquanto trabalhava em ONGs. Por gostar de falar, de estar envolvida, acabei sendo colocada nesse lugar sem perceber, ou por achar que não tinha voz ou espaço próprio.

Acho que é por aí.

Espero que, de alguma forma, minha trajetória possa servir como modelo ou inspiração para que mais pessoas falem sobre suas histórias, com propriedade e confiança.

Nós: Para encerrar, depois de toda essa conversa, como você define o conceito de feminismo favelado?

Andreza Jorge: Ah, essa é difícil! (risos). Eu até falo disso no livro. Essas duas palavras – feminismo e favelado – são “ruins”, mas por razões diferentes.

O feminismo, em sua origem, foi criado para agregar uma luta coletiva, mas acabou sendo excludente. Já o termo “favelado” foi criado para estigmatizar, segregar, associar quem vive na favela a características negativas. Quando coloco essas duas palavras juntas, quero mostrar que o feminismo, que deveria ser algo positivo, muitas vezes foi ruim na prática. E o “favelado”, que foi pensado para ser pejorativo, estamos cada vez mais transformando em um adjetivo de força e identidade.

O conceito de feminismo favelado, portanto, já carrega em si esse chamado à subversão de narrativas fáceis ou preconcebidas.

É um chamado que basicamente diz: a gente tem uma história que tem um fundamento e, a despeito dos inúmeros problemas existentes, por estarmos vivendo aqui e ter essa teimosia, também temos soluções. Queremos que a partir delas, a justiça seja reparativa. Temos modo de fazer e existir ancoradas nessa sabedoria ancestral – indígena e negra.

Feminismo favelado é luta constante, é tecnologia de sobrevivência, é a capacidade de reinvenção de si e do coletivo entre mulheres.