Eu, mãe preta
O maternar de crianças pretas frente ao racismo
18|03|2025
- Alterado em 18|03|2025
Por Sarah Carolinna
Dizem que nós, mulheres negras, somos “boas parideiras” e que o leite materno que sai das nossas mamas é “mais forte”. Acredito que seja apenas uma outra forma de controle, que, disfarçada de elogio, nos empurra para dentro de casa, no quartinho dos fundos, amamentando e cuidando de quem nos solicita. É ainda a prova de que o racismo interfere até mesmo na nossa suposta “melhor fase”, que é a maternidade (tenho cá minhas dúvidas sobre ser ou não a melhor fase, mas isso é assunto pra outro texto). Nos resquícios de um Brasil colonial, nossas qualidades continuam sendo medidas como as de um animal irracional: a capacidade de gerar e alimentar a cria, aumentando o lucro do proprietário. Esse imaginário sobre a mãe preta perdura e resiste como se ainda hoje precisássemos ser úteis na perpetuação de um patrimônio ou de uma linhagem. Existimos porque parimos e cuidamos.
Basta analisar dados sobre violência obstétrica para entender que essa desumanização é forte e explícita: somos nós quem mais morre no parto por negligência ou imperícia; também somos nós a maioria das que ficam sem acompanhante e a explicação é cruel, porém simples… aguentamos mais dor porque já nascemos em sofrimento, “herdamos a resistência da escravização”. Por isso, forçar um parto normal, mesmo quando tudo indica cesárea ou esperar um pouco mais para dar a medicação para dor ー mesmo quando imploramos por ela ー não parece tão absurdo assim na mente de quem ainda nos vê animalizadas. Nesse cenário, se tornar mãe é um ato de coragem.
O que vem depois nem de longe nos garante algum descanso: maternidade solo, salários baixos, jornada tripla. Quando dizem que somos a base da pirâmide social, não explicam que, sendo mãe, a base é soterrada, quase sem conseguir respirar. Começa então o ‘equilibrar de pratos’ entre estar presente para os filhos ou diminuir a convivência em nome da garantia de pão, leite e fralda de cada dia. Mas os filhos crescem…
E a preocupação cresce junto: no primeiro surto de piolho na educação infantil, vão pedir que a gente lave, prenda, dome, corte os cachinhos e a identidade dos nossos pequenos, que começam enfrentar ali um inimigo quase diário: o racismo (ah, como dói na gente!).
E por mais que nossos filhos se destaquem nos estudos, não serão representantes de classe nem eleitos os mais bonitos da sala. E aí a auto-estima deles segue sendo atacada até a adolescência, onde os afetos crescem, mas nossos príncipes e princesas preteridos demoram mais a conhecer o amor. É ainda nesse tempo de entender quem é que o gênero começa a fazer parte dos nossos medos. Sendo um menino, logo a violência policial entra no foco dos nossos piores pensamentos, já que miram nossos filhos pela lente alterada do racismo e os enxergam potencialmente perigosos, violentos e marginais. As meninas, por suas vez, adultizadas, hipersexualizadas e com seus pequenos corpos ainda em desenvolvimento são vistas como presas mais fáceis pelos asquerosos olhos de quem sabe “que a carne mais barata no mercado é a negra”. Salivam ao ver nossas meninas porque não enxergam a mesma inocência angelical das meninas da pele alva e olhos azuis, porque sabem que a impunidade é maior se a vítima tem cachos loiros e bochechas rosadas.
Nós, mães, assistimos a tudo isso lutando sempre – certamente exaustas – mas sem se dobrar, protegendo e empoderando nossos filhos sem poder contar que mais alguém os protegerá. Não esmorecemos porque temos fé, em Oxalá, em Deus, no futuro.
Essa é a história da maternidade de minha mãe, minha vó e de muitas outras mulheres negras antes delas, mas decidi que esse ciclo acabaria comigo: se porta à fora o racismo violenta e desumaniza, no nosso lar afrocentramos para preparar e curar, sempre com muito dengo (tem quem chame de apego, mas meu povo diz assim). Enquanto a sociedade não muda, mudo aqui a forma de criar meus filhos, contando sobre sua ancestralidade potente, sua cultura rica, suas características físicas que representam beleza e resistência, ensinando tradições e criando um espaço seguro. Assim, vou acompanhando meus filhos se tornarem fortes (mesmo que o mundo os queira fracos) e isso me dá muita esperança. As lutas não deixarão de existir, mas serão enfrentadas com cabeça coragem e orgulho de quem conhece a própria história e pra uma mãe isso basta. Promovo aqui um lugar de acolhimento para uma existência livre e plena porque passei a acreditar no provérbio angolano que diz “a árvore cresce como o solo permite, assim como a criança se forma pelo ambiente em que vive”.
Ser mãe negra é aguentar firme o peso do patriarcado e do racismo, mas não pensem que nossa vida é só dor e medo… existe um matriarcado negro, forte resistente e orgulhoso, que celebra sua excelência e ancestralidade com alegria e muito axé e, em breve, eu quero apresentar esse matriarcado a vocês.
Sarah Carolinna Mãe de três filhos pretos, pedagoga, historiadora e educadora racial especialista em cultura e história afro-brasileira e africana. Ativista da maternagem racializada e defensora do letramento racial na infância.
Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.
Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.
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