Eu, Bruna e Marielle

Marielle Franco e seu legado dentro de nós

31|10|2024

- Alterado em 31|10|2024

Por Karoline Miranda

Eu só tinha uma missão na manhã do dia 30 de outubro: cobrir, como única integrante do Nós no Rio de Janeiro, o julgamento de Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz, os assassinos do caso Marielle, que tiraram a vida da vereadora e seu motorista Anderson Gomes na madrugada de 14 de março de 2018.

Por um infeliz contratempo de transporte público, cheguei a tempo de ver a dispersão dos familiares para o julgamento, mas tarde demais para fazer boas fotos autorais e de repente, conseguir uma aspa de familiares. Conversei com algumas pessoas ao redor, quando vi um grupo que não dispersava – nem abandonava as faixas de justiça. Um senhor de idade gritava, revoltado, frases desconexas. Olhei para o chão: dezenas de cartazes com fotos de crianças em cima de suas datas de falecimento.

Aquele era um grupo de mães e pais de crianças mortas pela violência policial de Estado. Tirei algumas fotos, entendendo que eu poderia noticiar isso com fotos exclusivas. Conversei com algumas mães para entender o que elas faziam ali, o intuito de seu protesto, até chegar em Bruna.

Ela estava com a bandana amarela de “Justiça por Marielle” na cabeça, mas com outro personagem em sua blusa: um menino negro, de cabelos cacheados e bem curtinhos e sorriso encantador estava estampado no seu peito. Fui perguntar, afinal, quem ela era, porque estava ali e todo o blá blá blá que jornalistas fazem.

Bruna Mozer tinha 42 anos e, há seis, convivia com a morte de seu filho Marco Luciano, assassinado pela polícia aos 18 anos. O jovem recebeu um tiro na cabeça quando já estava rendido, ajoelhado e com as mãos para o alto, na comunidade do Muquiço (RJ), em 2018. 

Além da camisa, no entanto, a camelô segurava uma pasta com uma certidão de óbito incomum: sem nome, o documento registrava a morte de “HOMEM”, sem paternidade registrada e residência definida: Bruna lutava há seis anos para ter o nome de seu filho na certidão de óbito dele mesmo. Além do assassinato de Marco, a mãe também lidava com a dificuldade em provar que seu filho nasceu, mas para o Estado, ele não morreu nominalmente. Apenas mais um HOMEM. 

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Bruna Mozer, mãe de Marco Luciano, morto pela Polícia Militar do RJ © Karoline Miranda

Mães lutam por justiça no julgamento de Marielle e Anderson © Karoline Miranda

Camisa de Bruna Mozer, com os dizeres do filho © Karoline Miranda

Cartaz de Marco Luciano em meio ao de outras crianças e jovens mortos pelo Estado © Karoline Miranda

Certidão de óbito de Marco Luciano, sem nome ou filiação © Karoline Miranda

“Mataram o meu filho duas vezes. Uma quando deram um tiro na cabeça dele, a outra quando não registraram ele como um morto. Eu tenho o documento do funeral, a nota fiscal, eu paguei o enterro, coroa de flores, tudo. Como eu paguei o enterro de alguém que não existe?”

Bruna Mozer, mãe de Marco Luciano, morto com 18 anos

Outros transtornos afligiam a mãe: ela não conseguia registrar a neta, filha de Marco, em seu nome, pois não conseguia provar que ele estava morto. Além disso, todos os anos ela precisava negociar pessoalmente com o cemitério para que não jogassem fora os restos mortais de seu filho, para um dia conseguir provar seu óbito mediante DNA.

Tentei anotar tudo que pude e perguntei a ela o que ela estava fazendo ali, no júri da Marielle e do Anderson. “A Marielle ajudava muito a gente. Não só eu, mas outras mães né, que tinham filhos mortos pela polícia. Mas em qualquer julgamento, a gente vem buscar justiça. Só não tem tanta imprensa para mostrar”.

Agradeci a ela e parei, estarrecida. Afinal, era isso o que Marielle representava também: muitas lutas que a imprensa não mostrava. Depois de fazer algumas fotos — humildes, no meu celular —, me despedi e sentei para tomar um café e analisar o material que tinha conseguido. Algumas anotações, fotos, aspas… daria para fazer uma notícia sobre o impacto da Mari na vida de pessoas comuns, como a Bruna.

E daí, comecei a chorar.

Porque, assim como a Bruna, a Marielle também mudou a minha vida.

Eu conheci a Mari em outubro de 2016, na campanha do Freixo para a prefeitura, num encontro com a juventude no Largo da Prainha, zona portuária do Rio de Janeiro. Eu era militante em um movimento social, e ela estava se candidatando pela primeira vez à vereança. Eu fiz um discurso muito emocionado no palanque, ela curtiu, eu vivi um dos dias mais felizes da minha vida e fizemos uma foto. Eu votei nela naquela eleição e, quando o resultado saiu, vibrei por ter alguém tão parecido comigo na Câmara.

Dois anos depois, dia 12 de março de 2018, eu tive a oportunidade de cruzar com a Mari novamente; dessa vez, em outro nível. Eu tinha sido convidada para compor uma mesa sobre a creche universitária na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) — uma pauta muito cara para mim, que militava por isso desde que engravidei do Gael, no segundo período da faculdade. E me colocaram na mesma mesa que a Marielle.

Eu não cabia em mim de tamanha felicidade e honra, mais honra ainda porque ela tinha aceitado. Falei por mais de meia hora, ela por mais de uma. No final, tiramos outra foto. Gosto de pensar que mudamos de cabelo juntas: em 2016, éramos morenas; em 2018, ambas loiras.

Lembro de ter voltado para casa cheia de ideias, emocionada e transformada. A Marielle fazia isso com a gente: ela fazia você acreditar que o que você pensava e sentia era importante, e principalmente, era necessário para mudar a sociedade. Qualquer formiga do lado dela se sentia um leão. Ela tinha potência suficiente para brilhar e distribuir brilho para os outros.

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Eu e Mari no dia em que nos conhecemos © Arquivo Pessoal

Ninguém estava mais feliz que eu nesse dia © Arquivo Pessoal

No dia 12 de março de 2018 © Arquivo Pessoal

Eu e Marielle, em mesa pautando a creche universitária na UERJ © Arquivo Pessoal

Mostrei nossa foto para a minha mãe, exultante, com o sorriso no rosto. Vi o orgulho na cara dela também. No dia seguinte, marquei ela no instagram e ela me respondeu “curti muito a mesa, nossa complementaridade foi ótima”. No dia 13 de março, eu me sentia pronta para implementar a creche universitária na Uerj sozinha, era só me dar uma pá e uma enxada!

E aí, no dia 14, minha mãe me acordou no susto. “Karoline, a Marielle… ela morreu”. E parecia que tudo aquilo dentro de mim tinha morrido junto. Fiquei sem chão por alguns minutos, sem saber se era verdade mesmo.

E ontem, no dia do júri, tomando café enquanto anotava a história da Bruna e do Marco, eu revivi tudo isso em pouco mais de três minutos. E percebi que eu tinha muito mais em comum com a Bruna do que eu pensava.

Eu e ela éramos Marielle também. Mães, negras, pobres. Vivendo com medo do Estado, de uma polícia truculenta, que desafia a existência dos nossos corpos e dos nossos filhos. Bruna sabia que precisava muito da Mari. Eu também. E a Mari também precisava da gente. Acho que nós três só não sabíamos o quanto.

Hoje é o segundo dia de júri e escrevo isso tomando outro café e chorando novamente. Talvez de saudade. Talvez com medo de ser a próxima Bruna. Talvez com medo de ser a próxima Marielle.

Mas, principalmente, choro sabendo que o que essa negona da Maré fez quando entrou na Câmara me tornou outra Karol e deu à Bruna outra força. Outro respiro. Porque sentimos, pela primeira vez, que fomos ouvidas. Que alguém sentia a nossa dor, lutava por nós. E ela abriu espaço para que muitas de nós herdássemos esse legado.

Choro por Marco Luciano, que ainda não pode figurar com seu nome na certidão de nascimento da filha. E espero que a Bruna um dia me ligue pra dizer que conseguiu, de uma vez por todas, enterrar seu filho. Espero que eu consiga manter o Gael longe da mira que um dia atingiu o Marco. Espero que eu consiga continuar lutando.

Eu, Bruna e Marielle continuaremos. A Mari como semente; a Bruna já é árvore. E eu, flor que sou ainda, espero trazer outras flores comigo. Não deterão a chegada da primavera.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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