Texto publicado originalmente em Expresso na Perifa – Estadão
Conversamos com a especialista Joice Graciele Nielsson sobre as mudanças na Lei do Planejamento Familiar e o contexto da esterilização feminina no país
Texto: Amanda Stabile
Edição: Mayara Penina
Foto: Fernando Madeira
Atualizado em 11|03|2023
Em 2 de setembro, a presidência da república sancionou a Lei 14.443/2022, que altera a Lei do Planejamento Familiar, de 1996. O texto reduz a idade mínima para a realização da laqueadura e da vasectomia, processos de esterilização, de 25 para 21 anos e retira a obrigatoriedade de permissão do cônjuge para a realização da cirurgia. A norma, que entra em vigor em seis meses, também estabelece que o limite mínimo de idade não é exigido de quem já tenha ao menos dois filhos vivos.
A laqueadura é um procedimento médico feito para esterilizar, por meio da ligadura das trompas, pessoas com útero. Ou seja, a partir da cirurgia, há o impedimento de futuras gestações. Segundo dados da Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, a laqueadura tem uma taxa de 99% de eficácia.
Para Joice Graciele Nielsson, doutora em Direito Público e pesquisadora da área de Direitos Sexuais e Reprodutivos, apesar da legislação representar avanços, ainda permanecem restrições ao exercício da livre autonomia reprodutiva. Segundo ela, as práticas ainda são pensadas a partir da necessidade estatal de controle populacional com a definição de critérios higienistas.
“Quando falamos em planejamento familiar, no Brasil, ainda verificamos uma série de questões e ações voltadas majoritariamente à ideia de controle de natalidade direcionada ao corpo da mulher, ou seja, à promoção de ações de concepção ou contracepção centradas na responsabilização praticamente única da mulher como sujeito reprodutivo a partir de uma lógica familista heteronormativa e patriarcal”, aponta a especialista.
Os critérios de controle estabelecidos pelo Estado impactam uma população específica, envolvendo fatores de raça, classe social, capacitismo, etarismo, dentre outros. Além disso, apesar da lei mencionar mulheres e homens em seu texto, historicamente são as mulheres que majoritariamente se submetem ao procedimento e até então necessitavam buscar a autorização do marido para sua realização.
Em 1988, por exemplo, quando as pesquisas começaram a demonstrar as distorções no uso dos anticoncepcionais no Brasil e a falta de clareza da legislação em relação à esterilização cirúrgica, a laqueadura era o método mais utilizado em mulheres (44%), enquanto apenas 0,9% dos homens se submetiam à vasectomia.
“Essas definições vão determinar quais são as mulheres que podem ou devem se reproduzir preferencialmente, e quais são as mulheres que não podem ou não devem e, portanto, acabam sendo impedidas de se reproduzir ou mesmo de exercer a maternidade, as maternidades negadas”, aponta.
De acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde, em 2019, a maioria das mulheres esterilizadas no país tinham entre 30 e 49 anos e eram negras – o número de pretas e pardas as submetidas à laqueadura era quase o triplo em relação às brancas.
Se a Lei não vier acompanhada de uma política mais ampla de educação e informação para o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos com autonomia para a tomada de decisões e garantia das condições materiais para o exercício destas decisões, pode contribuir para mais ações de esterilização em massa em mulheres negras e pobres
Joice Graciele Nielsson, doutora em Direito Público e pesquisadora da área de Direitos Sexuais e Reprodutivos
A lei de 1996 foi fruto da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito instaurada em 1993 para investigar denúncias de esterilização em massa de mulheres no Brasil. A CPI da Esterilização, como ficou conhecida, foi criada a partir de requerimento da então deputada federal Benedita da Silva (PT/RJ), que presidiu a Comissão.
O contexto documentado pela CPI ressaltou a negligência a que as mulheres brasileiras estavam sendo submetidas em relação à sua saúde sexual reprodutiva. Desinformadas sobre a irreversibilidade da laqueadura, por exemplo, era registrada uma alta taxa de arrependimento.
A cirurgia também era usada como permuta em troca de votos e algumas empresas exigiam o atestado de esterilização para a admissão das mulheres no emprego. Na época, mais de 45% daquelas em idade reprodutiva estavam esterilizadas, em maioria mulheres negras e pobres.
Após a identificação desse contexto, a Comissão definiu o problema como uma degradação humana e recomendou que as esferas governamentais se mobilizassem para mudar esse cenário. Assim, foi criado o Projeto de Lei 9.263/1996, que deu origem à Lei do Planejamento Familiar que entrou em vigor naquele mesmo ano.
Parágrafo único - É proibida a utilização das ações a que se refere o caput para qualquer tipo de controle demográfico
Art. 2º da Lei Nº 9.263/1996.
Apesar dessa proibição, o projeto de esterilização em massa não foi completamente interrompido no país. Em 2017, por exemplo, pela primeira vez as “laqueaduras de urgência” – um procedimento desconhecido por muitos profissionais da área e cuja existência foi negada pelo Ministério da Saúde – foram mais comuns do que as eletivas. No mesmo ano, as laqueaduras em cesarianas também ultrapassaram aquelas feitas em outros momentos.
De acordo com levantamento feito pelo The Intercept Brasil via Lei de Acesso à Informação (LAI), 90% das laqueaduras de urgência acontecem no parto. Não coincidência, a maioria em mulheres negras: em 2017, elas foram submetidas ao procedimento 2,5 mais vezes do que em 2008.
Esterilização forçada no Peru
As mulheres brasileiras não são as únicas na América Latina vítimas de um plano de esterilização em massa. Entre 1996 e 2000, o ex-presidente peruano, Alberto Fujimori, implantou no país uma campanha de esterilizações forçadas. Mais de 300 mil mulheres, a maioria delas pobres e indígenas, foram submetidas à cirurgia e irreversivelmente impedidas de gerarem filhos.
Erika Barbosa, hoje com 32 anos, é uma das mulheres que quase fez parte dessas estatísticas. Em 2014, durante o trabalho de parto de sua segunda filha, Flora Satye, a articuladora territorial de Perus, bairro na zona noroeste de São Paulo (SP), e estudante de biblioteconomia, sofreu diversas formas de violência obstétrica.
No Amparo Maternal, hospital que atende gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS), Erika passou por situações cujas lembranças a fazem chorar até hoje, mesmo depois de oito anos.
Após viajar uma hora e vinte minutos até a maternidade, localizada na Vila Clementino, Erika foi pressionada para realizar uma cesariana, cirurgia que não queria fazer porque já havia sofrido violência obstétrica na gestação anterior. “Teve uma hora que eu estava meio cochilando e a médica veio e falou para o meu marido: ‘se você autorizar a gente leva ela para cesariana agora’. “Aí eu acordei e falei: ‘ele não manda em mim, é o meu corpo’”, conta.
Após diversos exames de toque e comentários constrangedores e autoritários por parte das enfermeiras, Erika foi levada para a sala de cirurgia. Ainda sonolenta, após a anestesia, recebeu diversas perguntas da obstetra.
“A médica falou assim para mim: ‘você quer ter outro filho?’. Eu falei que não. Ela perguntou a minha idade e eu disse: ‘eu tenho 24, vou fazer 25 daqui três dias’. Aí ela olhou para os médicos e me disse: ‘se você tivesse pelo menos com 25 anos, eu faria a sua laqueadura’. Mesmo sem planejamento familiar, ela não me perguntou se eu queria a laqueadura”, recorda.
O Nós, mulheres da periferia enviou pedido de posicionamento do hospital Amparo Maternal quanto às violências sofridas por Érika, mas, até a publicação desta reportagem, não recebeu retorno.
Em 2018, veio a público o caso de Janaína Aparecida Quirino, uma mulher em situação de rua que foi obrigada, por uma decisão liminar, a ser esterilizada. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) até chegou a anular a decisão, mas o procedimento já havia sido concluído.
O caso de Janaína e de Erika se encaixam nos grupos de mulheres esterilizadas no Brasil identificado em pesquisa recente realizada pela doutora Joice Graciele Nielsson e publicada no livro “Direitos reprodutivos e esterilização de mulheres: a Lei do Planejamento Familiar 25 anos depois” (2022).
O estudo analisou decisões judiciais proferidas sobre a esterilização de mulheres por meio da realização de laqueadura, desde a implantação da Lei de Planejamento Familiar, em 1996, até 2021, e agrupou o conjunto de demandas pela cirurgia em três grandes grupos.
O primeiro diz respeito ao conjunto de mulheres esterilizadas compulsoriamente sem o seu conhecimento, e que buscam reparação judicial. “Há uma grande quantidade de mulheres que são esterilizadas, sem o seu conhecimento e muitas vezes sem serem sequer informadas da realização do procedimento, a partir de uma tomada de decisão médica especialmente durante a realização de cesarianas”, conta.
O segundo se refere ao conjunto de mulheres em busca da realização do procedimento, seja porque não cumprem os requisitos legais, seja porque o Sistema Único de Saúde (SUS) não ofertou o serviço. Mesmo quando as pacientes atendem aos requisitos da lei, há obstáculos para quem busca a laqueadura.
“Aqui, verifica-se que de um modo geral os apelos das mulheres foram negados, e o exercício da sua autonomia foi impedido em virtude dos critérios legais. Os casos de autorização para quebra dos requisitos justamente foram aqueles em que critérios de raça, classe e capacitismo são perceptíveis, ou seja, os requisitos podiam ser quebrados para a esterilização de mulheres pobres, consideradas indesejáveis para o exercício da reprodução”, explica.
Por fim, o terceiro grupo remete especificamente a mulheres com deficiência intelectual ou em situação de drogadição ou vício em álcool, em situação semelhante a de Janaína Quirino. “Neste conjunto, foi possível identificar que, neste período, mulheres, inclusive menores de idade, foram esterilizadas compulsoriamente no Brasil, a pedido de representantes legais ou do próprio Ministério Público, com autorização judicial”, alerta.
Dentre as ações que a política de planejamento sexual e reprodutivo no país deveria incluir, Nielsson aponta a necessidade da alteração da visão estatal de controle populacional familista pela visão difusa dos direitos sexuais e reprodutivos.
“Ou seja, é preciso a construção de políticas centradas na formação e informação para o exercício da autonomia da mulher e falo aqui em um sentido amplo sobre as pessoas que gestam, e dos sujeitos, para o livre e saudável exercício da sua sexualidade e da sua capacidade reprodutiva e de escolha das práticas de concepção e anticoncepção”, complementa.
Joice também destaca a necessidade da superação de uma visão restrita de planejamento familiar que reduz a temática à questão de quem, quando ou quantos filhos uma pessoa pode ou deseja ter.
“Trata-se, no meu entendimento, de pensar mais amplamente sobre políticas de educação para que cada pessoa seja capaz de tomar decisões e fazer escolhas, não só reprodutivas, mas também sexuais de forma autônoma e saudável”, pontua.
Por fim, a especialista aponta que é fundamental a superação da visão centrada exclusivamente na lógica familista e heternormativa das construções de gênero que colocam sobre as mulheres a responsabilização sobre concepção e contracepção.
“Isso implica considerar garantir os direitos sexuais e reprodutivos de pessoas não cisheteronormativas, por exemplo, e também promover a responsabilidade dos homens nos processos reprodutivos, que dizem respeito inclusive às questões de cuidado e responsabilidade com os filhos”, conclui.
Texto publicado originalmente em Expresso na Perifa – Estadão