Conheça a história da parteira Ciléia Biaggioli e suas reflexões sobre a importância da autonomia materna ao parir
Texto: Amanda Stabile Edição: Jéssica Moreira e Semayat Oliveira Fotos: Amanda Stabile e Karol Alves
Atualizado em 23|11|2023
O dia 28 de maio marca, internacionalmente, a luta pela saúde da mulher. A escolha fez parte de um processo histórico, passando pelo Encontro Internacional Mulher e Saúde, que ocorreu na Holanda, em 1984. Durante o Tribunal Internacional de Denúncia e Violação dos Direitos Reprodutivos, dados alarmantes sobre a mortalidade materna tomaram a atenção.
A partir deste encontro, a necessidade de criar marcos para evidenciar essa realidade causou uma mobilização em cadeia, incluindo a América Latina e Caribe. A data foi cravada como forma de, anualmente, manter um farol sobre a urgência de prevenir mortes maternas evitáveis.
Ainda antes deste período, o Brasil traçava novas políticas de saúde para as mulheres. Em 1983 foi elaborado o PAISM (Programa de Atenção Integral de Saúde da Mulher). A partir da movimentação de mulheres em diferentes segmentos, a discussão aconteceu no contexto da redemocratização do país e surgiram novas diretrizes relacionadas aos direitos sexuais e reprodutivos, o que simbolizou um grande passo antes da chegada do Sistema Único de Saúde.
Entretanto, os direitos relacionados ao corpo da mulher, sobretudo de mulheres negras e empobrecidas, continuam em constante violação. É neste contexto que a história de Ciléia, que você lerá a seguir, te pegará pela mão e levará para caminhos que possibilitem uma visão ampla e política sobre parir no Brasil e na periferia.
As mãos que amparam as vidas que desembarcam em um pedaço do mundo agora pegam com carinho a sua própria criança. “Conta pra ela o que você é, Clarinha”, pede. “Eu sou palhaça e parteira”, responde, dengosa, a menina de 5 anos, a quarta filha de Ciléia Biaggioli.
Parteira tradicional, pedagoga, atriz, palhaça desde a adolescência, co-fundadora do Teatro de Rocokóz, benzedeira e mãe também de Júlia, Laura e Davi, todos com vivências de trupe e de parto. “Eles eram os meus doulos antes da coletiva se formar”. Em 2015, ela fundou a Coletiva Sopro de Vida, com a missão de fazer do bem nascer um direito, não um privilégio.
Com atendimentos de partos domiciliares e oferecendo formação de parteiras por meio do projeto Sementeiras do Bem Nascer, a Sopro de Vida nasceu para resgatar a parteria tradicional e colocá-la em prática, além de levar informações sobre saberes ancestrais, gestação, parto, pós-parto, ervas de cura e diversos outros conhecimentos.
Para alcançar mais mulheres, especialmente as de baixa renda e periféricas, uma das alternativas adotadas foi a criação de três valores para todos os serviços prestados: o Social, o Ideal e o Abundante.
“A gente sabe que um parto domiciliar é muito caro, então, para atender a periferia, quando uma mulher colabora com o Abundante, a gente fica com o valor Ideal, o valor justo, e reverte o restante para atender alguém que mesmo o valor Social, que é bem abaixo do mercado, seja muito alto para ela”, explica Ciléia.
A parteira é quem desata, com delicadeza, o cordão que nos amarra à mãe, algo que Ciléia já fez cerca de 50 vezes desde que começou a partejar. Uma profissão que não tem rotina única, mas exige espera e paciência, já que quem decide a hora do nascimento não são os adultos, mas aqueles que vêm estrear seu primeiro choro no mundo.
Por isso, o carro da parteira anda com o porta-malas preparado: tem tambores, uma banqueta, ervas e todo o necessário para que a jornada do nascimento seja completada e celebrada da forma mais respeitosa possível, promovendo e dando assistência ao protagonismo materno na hora do parto.
Além disso, em sua casa, a parteira mantém um quarto reservado para quem escolhe que seu bebê deve ser recebido com festa, ao som de tambores xamânicos e cantigas tradicionais. A Chácara Manacá fica em Parelheiros, extremo sul da capital paulista, situado a mais de 45 km do centro de São Paulo, onde Ciléia mora com a família há 11 anos. Para chegar ao local, é preciso tomar um metrô, um trem, dois ônibus e passar por uma estrada de cascalho de 230 metros.
Julia, sua filha mais velha, nasceu como doula aos 16 anos, no mesmo dia em que a mãe se tornou parteira. Era 17 de julho de 2015 quando Manu, filha de Dora, esmurrou a porteira do mundo e pousou na palma das mãos de Ciléia. Dora foi a primeira mãe a lhe dar a missão de partejar.
“Calhou da parteira não chegar e eu peguei o bebê”, lembra. “Se tem uma mulher que fala que é você que vai pegar o bebê dela, é porque vai ser. Quem vai parir é que sabe”, diz Ciléia, lembrando do conselho que recebeu de Dona Francisquinha, uma parteira indígena.
Ciléia carrega os ensinamentos dos povos da floresta no sangue: por parte de pai, é neta da avó indígena, Francisca da Conceição. Já por parte de mãe, ela é neta da parteira Júlia Cecília da Silva.
Mesmo sem conhecê-las, a ancestralidade e a espiritualidade gritam alto: aguçam a intuição para parir e dar assistência aos nascimentos. “Com dois meses de vida intrauterina da Júlia, eu sabia que ela era menina, parecida com o Carlos [o marido], cabeluda e que ia nascer dia 18 de dezembro”, revela.
Ciléia é a terceira filha de dois pernambucanos, Terezinha e Cícero. Ambos se mudaram para São Caetano do Sul, cidade na região metropolitana de São Paulo, em meados da década de 1970. Ela conta que seu próprio parto foi rápido, mas repleto de fortes emoções na madrugada de 3 de março de 1978.
“Minha mãe conta que foi o tempo dela entrar no hospital, deitar na maca no corredor e eu nasci bem pequenininha, com 2.200kg”, lembra a pisciana, com ascendente em aquário e lua em sagitário.
Quando perguntava para a mãe como nasceu, dona Terezinha sempre respondia que a menina “nasceu com tudo”, uma expressão que não sabia ao certo o que queria dizer. “Depois fui entender que ‘com tudo’ significa que eu nasci empelicada, a bolsa não rompeu antes”, explica.
Sua ligação e curiosidade pela maternidade começou no puerpério de sua mãe, após o nascimento dos irmãos, que são nove e dez anos mais novos que ela. “O primeiro parto foi natural e o segundo, cesariana. Após o parto natural, minha mãe se recuperou super rápido. Mas a cesárea trouxe muita dor e dificuldade e essa é uma lembrança muito viva em mim”, conta.
O Brasil é o vice-campeão em números de cesarianas no mundo, atrás apenas da República Dominicana. Esse tipo de parto supera a taxa de partos vaginais, representando 55% dos nascimentos. No setor privado de saúde, em 2019, 84,76% dos partos foram realizados por cesarianas. Desses, 56,71% aconteceram antes do início do trabalho de parto. Apesar da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) afirmar que o bebê está pronto para nascer com 40 a 42 semanas, o painel aponta que o maior percentual de cesáreas (37,29%) ocorreu em gestantes entre 37 e 38 semanas.
Painel de Indicadores de Atenção Materna e Neonatal
Autonomia era algo que Ciléia não abriria mão quando fosse parir sua primeira menina. Desde o início da gravidez, já desejava um parto natural, assim como 70% das gestantes brasileiras, como aponta pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Embora a maioria não seja apoiada nessa decisão, Ciléia foi.
“A vontade de ser parteira surgiu com minha vontade de ser mãe, aos 15 anos, por conta dos meus irmãos. Eu ficava muito com eles, lia histórias, levava no Sarau e pensava ‘nossa, como é legal acompanhar um ser humano’. Mas eu mesma falei pra mim: muito nova, aquieta o facho”, conta.
Por ter passado muito tempo internada na infância em decorrência de pneumonias, não se via dando à luz em um hospital e achava que não conseguiria parir. Chegou a visitar um hospital, mas este não autorizou seu pedido, como o acompanhamento do marido; parir na posição que quisesse; estar nua para o bebê sentir sua pele e ouvir as batidas do seu coração; ouvir Clara Nunes cantando “Conto de Areia”; e parir à meia luz, porque sabia que luzes muito fortes prejudicavam os olhos dos bebês.
Era 1998 e a Lei Federal 11.108, que determina que toda parturiente tem direito a um acompanhante de sua livre escolha durante todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, ainda não havia sido sancionada - o que só aconteceu sete anos depois, em 7 de abril de 2005.
Por fim, uma obstetra homeopata topou fazer seu primeiro parto em casa, que acabou acontecendo em seu consultório. Porém, parir fora do hospital não isentou Ciléia de sofrer violência obstétrica. Ela teve a bolsa amniótica rompida e sofreu uma episiotomia, que é a laceração feita entre o ânus e a vagina, com o intuito de “facilitar” a passagem do bebê. “A maioria das mulheres que têm uma episiotomia anterior, lacera no segundo filho. Onde tem a cicatriz fica rígido porque não tem mais elasticidade onde houve a sutura”, explica a parteira.
Uma a cada quatro mulheres no Brasil, de acordo com a pesquisa Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado, realizada pela Fundação Perseu Abramo em 2010. A violência durante o parto é algo normalizado no Brasil e incentivado, inclusive, pelo Ministério da Saúde. Em maio deste ano, foi anunciado o lançamento da sexta edição da Caderneta da Gestante, distribuída pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Nela, o Ministério estimula a prática da episiotomia e da manobra de Kristeller, que consiste em um procedimento em que médicos e enfermeiros aplicam pressão na parte superior do útero para forçar a saída do bebê, o que pode expôr mãe e bebês a riscos de hematomas, fraturas, hemorragias.
Fundação Perseu Abramo
Ciléia acredita que a formação de parteira foi complementada pela luz que deu às suas crianças, a quem ela se refere como grandes mestres que a ensinaram a parir, a se conectar com o poder de cura que existe no nascimento e a renascer a cada parto.
Sua segunda filha, Laura, nasceu com cachos dourados e o céu nos olhos, nas palavras de seu pai, que compôs uma música para cada filho. Foi um trabalho de parto de 26 horas. Já Davi, nasceu quase embaixo do chuveiro.
“Eu estava fazendo um trabalho e a gente estava se comunicando por torpedo. Ela já estava com contrações quando eu saí. Quando voltei, ela estava no chuveiro, debaixo d’água e o bebê já estava coroando”, relembra o marido. “Quando o Davi nasceu, a lembrança que eu tenho é que fui o primeiro que ele olhou”. Segundo ele, o menino escorregou para as suas mãos com cor de quiabo e ele o pegou como se estivesse colhendo o fruto que plantou.
Clarinha, a derradeira, nasceu em um hospital universitário, mas Ciléia não perdeu seu protagonismo na hora de parir. Eles não sabiam o sexo do bebê e enquanto estava no chuveiro, ela pediu para Carlos cantar. Ele cantou Anunciação, Alecrim Dourado e na terceira música, de Nossa Senhora da Conceição, o bebê coroou, aí a mãe já sabia que seria uma menina.
Quando Clara nasceu, Ciléia perguntou para o médico o que ele queria que ela fizesse para fazer a placenta sair. Ele disse: “olha, você entende mais desse parto do que eu. Eu entendo de parto lá na sala cirúrgica. Fala pra mim o que eu faço”. “Foi legal porque ele me devolveu a autonomia”, conta a parteira.
"E a família só cresce: no final de outubro deve chegar o primeiro netinho, ou netinha (opinião da avó), de Ciléia e Carlos. Mas quem fará o parto não será ela e, sim, a própria Júlia. “Quando me perguntam quantos partos eu já fiz, eu falo 4, porque tive 4 filhos. Quem faz o parto é quem está parindo. Nós assistimos, damos assistência. Porque falar isso tira o protagonismo da mulher”, explica a vovó.
Desde 1985, a comunidade médica internacional e a Organização Mundial da Saúde (OMS) consideram que a taxa ideal de cesárea seria entre 10% e 15% nos países, uma meta que o Brasil passa longe. Já em relação à liberdade de escolhas durante o parto, segundo artigo do Bulletin of the History of Medicine, publicado pela Johns Hopkins University Press, a cesariana está relacionada à falta de autonomia feminina em relação aos direitos reprodutivos.
Os primeiros partos que assistiu foram servindo à medicina da floresta para parturientes. “Comecei a frequentar uma casa de Ayahuasca e me tornei dirigente espiritual. Algumas mulheres queriam tomar o chá durante o parto e acharam melhor ter algum dirigente para saber a dose, em que momento servir”.
Ciléia, então, passou pelo CAIS do Parto (Centro Ativo de Integração do Ser) e também realizou troca de saberes com parteiras indígenas da Amazônia e de Parelheiros. “A gente sabe que para ser parteira tradicional não existe uma formação específica, não é ela que faz você partejar, tanto que tem gente que vira parteira antes. E tem gente que faz a formação inteira e nunca vai ser parteira. Existe um chamado”, explica.
Dentre tantos nascimentos celebrados, a família de Ciléia também sofreu o luto pela perda de uma mãe. Sua avó indígena, dona Francisca, morreu em decorrência de um parto domiciliar mal sucedido. Nessa época, seu pai tinha apenas 8 anos de idade. E é impossível para uma criança se deitar em seu próprio colo e se acalentar, se acolher, se cuidar sozinha. “Meu pai começou a fumar com 9 anos as bitucas de cigarro do meu avô. E teve um câncer de laringe”, explica Ciléia. Aos 12 anos ele fugiu de casa.
Quando morre uma mãe, a dor do parto é também sentida por quem nasce e pelos que ficam. Quem perde é toda a sociedade. A maioria dessas mortes poderiam ter sido evitadas com destinação de recursos à saúde e o investimento na atenção pré e pós-natal.
“Há pré-natais que negligenciam. Já peguei exames com infecção urinária e hemoglobina alta que o médico não viu e não tratou. Mas, também, no hospital eles têm bolsa de sangue, se der ruim eles fazem uma transfusão, o limite é outro. Quando a gente vai acompanhar o parto em casa, precisamos garantir que a mulher esteja muito bem de saúde, que ela aguente”, aponta.
Para reduzir a mortalidade materna é preciso, também, garantir direitos anteriores e fundamentais, como à saúde, à licença maternidade e à alimentação, por exemplo. “Quando você fica grávida, se a sua alimentação está ruim, como fica? O sistema é cruel. Na verdade, a gente não morre de parto, a gente morre de falta de vida, de negligência do Estado”, alerta Ciléia.
Cerca de 830 mulheres morrem todos os dias por complicações relacionadas à gravidez ou ao parto em todo o mundo, segundo a OMS. Já no Brasil, em 2021, segundo o Painel de Monitoramento da Mortalidade Materna, o país registrou em média 107 mortes a cada 100 mil nascimentos. A mortalidade materna é maior entre aquelas que vivem em áreas rurais e comunidades mais pobres. Segundo o artigo “A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil”, mulheres pretas têm maior risco de ter um pré-natal inadequado e ausência de acompanhante no momento do parto.