Oito mulheres de São Gabriel da Cachoeira (AM) e São Paulo (SP) falam sobre suas lutas em suas comunidades e como, mesmo distantes, têm ideais conectados.
Reportagem produzida em colaboração com a Rede Wayuri de Comunicação Indígena
Atualizado em 18|10|2022
Eu estava no ônibus, voltando da cobertura da inauguração da estátua de Carolina Maria de Jesus, quando recebi uma mensagem de Semayat Oliveira, cofundadora do Nós, mulheres da periferia. Ela perguntava se eu toparia fazer uma viagem para São Gabriel da Cachoeira (AM), junto com Mayara Penina, também cofundadora do Nós. “Topo demais!!!!”. A resposta não poderia ser outra para uma jornalista recém-formada e ávida por conhecer novas histórias e territórios.
A viagem ocorreu a partir de um projeto de intercâmbio entre veículos de jornalismo que fazem parte do Programa de Apoio ao Jornalismo (PAJOR), iniciativa do Repórteres sem Fronteiras (RSF). Fomos ao município do interior do Amazonas para conhecer de perto o trabalho da Rede Wayuri de Comunicadores Indígenas, que leva informação para 23 povos de diferentes etnias, distribuídas em 750 comunidades indígenas, em três municípios de abrangência da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos. A rede conta com dois ou mais comunicadores de base das comunidades, chegando ao total de 55 comunicadores. Depois disso, a integrante da Rede Wayuri, Juliana Albuquerque, do povo Baré, fez uma viagem para São Paulo, para conhecer como o Nós, mulheres da periferia faz jornalismo.
Beatriz de Oliveira, repórter do Nós, mulheres da periferia
Quando entrei na Rede Wayuri, sabia que os desafios eram sem medida, mas aceitei sem me opor a nenhuma dificuldade. Neste intercâmbio, pude conhecer a realidade das grandes metrópoles, especialmente dos veículos de comunicação de mídia independente. O trabalho que realizamos em nosso território tem as mesmas dificuldades e desafios enfrentados todos os dias por quem luta pelo coletivo e bem viver em suas comunidades, sejam elas pequenas ou grandes.
Foi um desafio sair do meu território e viajar até São Paulo. O clima, a comida, o meio de locomoção totalmente fora da minha realidade. Mas os dias compartilhando informações e conhecimentos foram de grande relevância para que eu continue a lutar e informar os povos do Rio Negro sobre o quão é importante estarmos juntos na luta por direitos indígenas e dos menos assistidos pelo poder publico.
Poder conhecer alguns veículos de comunicação e seus desafios em meio a tantas dificuldades, estão fazendo a diferença nas periferias de São Paulo. Pude compreender o quanto a informação certa e confiável pode mudar a vida das pessoas. Fazer comunicação para os povos do Rio Negro, onde são 19 línguas faladas, é de suma importância para que os parentes tenham informação verdadeira e confiável para defesa do nosso território e o bem viver de suas famílias.
Juliana Albuquerque, comunicadora da Rede Wayuri
Apesar da distância que nos separa, pudemos descobrir semelhanças entre os dois veículos de comunicação. Ambos trabalham para levar informações para suas comunidades, a partir de suas perspectivas. De lá, indígenas se comunicam com povos indígenas. De cá, mulheres periféricas passando informações para mulheres nas periferias. A quebra da lógica definida pela grande mídia sobre o que é ou não notícia e a busca por atingir quem vive o cotidiano dos territórios são mais pontos em comum.
Mas um fator saltou aos olhos e reafirmou algo que já sabemos: há mulheres protagonistas de seus territórios em todos os cantos do país.
Nesta reportagem produzida em parceria com o Nós, mulheres da periferia e a Rede Wayuri, mostramos como as lutas e os protagonismos de mulheres de São Gabriel da Cachoeira e de São Paulo se cruzam. Vera Lucia Moura, Janete Tariana, Florinda Lima Orjeula e Dada Baniwa, do AM, são lideranças de sua terra e lutam por sua comunidade, assim como Rejane Santos, Angelina Aparecida Reis, Carol Peixoto e Bárbara Luiza, de São Paulo.
Florinda Lima Orjeula é agricultora e uma das organizadoras da Feira Tuyuka
©Mayara Penina
Florinda Lima Orjeula, do povo Tuyuka, de São Gabriel da Cachoeira, é agricultora e uma das organizadoras da Feira Tuyuka. O evento, que acontece todos os domingos, recebe turistas e moradores para saborear um almoço típico, comprar itens produzidos pela comunidade e apreciar uma dança Tuyuka. A iniciativa surgiu como complemento de renda para a comunidade e envolve a ajuda de todos.
Quando perguntada como se sente estando à frente da organização da Feira e de outros projetos para a sua comunidade, Florinda abre um sorriso e diz: “é um orgulho e um prazer trabalhar pelo meu povo”.
Os alimentos produzidos pelos Tuyukas também chegam até as escolas da região, para integrar a merenda regionalizada das crianças, por meio de uma parceria com o poder público. É mais um modo de garantir o bem viver da comunidade. “É uma grande felicidade ver que as pessoas estão ganhando dinheiro para comprar um alimento para os filhos, para comprar alguma coisa para a família”, afirma a agricultora.
Angelina Aparecida Reis também preza pelo bem estar de quem vive em seu território. Junto a duas amigas, Marlene Santana e Maria da Graça Araújo, ela criou e gere o Espaço Cultural Adebanke, em Artur Alvim, zona leste da cidade de São Paulo. Entre as atividades oferecidas pelo espaço, o Chá das Pretas Bás - nome pelo qual o trio de mulheres negras é conhecido -, é um momento de pausa na rotina para partilhar e conversar com moradoras do bairro.
Angelina Aparecida Reis, Marlene Santana e Maria da Graça Araújo são as Pretas Bás
©Lívia Lima
Há uma década, quando as Pretas Bás iniciaram o projeto cultural, o espaço da sede era um lugar visto como perigoso pelos moradores, por ser um ponto de drogas e de pessoas em situação de rua. “Não foi brincadeira, esses dez anos foram de muita luta e dificuldade”, afirma Angelina. O trabalho rendeu frutos: o projeto se consolidou como um espaço de cultura, acolhimento e atuação de coletivos periféricos.
Para Angelina, a palavra que resume seu protagonismo no território é responsabilidade. “A gente só transforma o território quando temos consciência crítica, de luta e de irmandade”.
A gente só transforma o território quando temos consciência crítica, de luta e de irmandade
Angelina Aparecida, espaço Cultural Adebanke, em Artur Alvim, zona leste da cidade de São Paulo
Em 2017, a moradora de Paraisópolis, favela da região sul de São Paulo (SP), Rejane Santos criou o projeto Emprega Comunidades, conhecido como LinkedIn da Favela. Seu objetivo é conectar empresas com moradores desempregados do bairro. Para isso, os envolvidos na iniciativa trabalham com atividades de recrutamento e seleção, capacitação profissional e acompanham empreendedores locais.
Rejane Santos criou o Emprega Comunidades
©arquivo pessoal
“Há duas formas de transformar a vida das pessoas: educação e empregabilidade. Oferecer educação é dar autonomia e oferecer emprego é dar independência. Independência para a pessoa que mora na comunidade é dinheiro no bolso”, afirma.
Envolvida com outros movimentos em Paraisópolis, Rejane se orgulha de fazer parte de muitas mudanças e melhorias vistas em seu território. “Paraisópolis me presenteou com muitas coisas boas e poder devolver para a minha comunidade o que ela me fez de bom me deixa muito feliz”, conta a líder comunitária.
Foi em busca de dar continuidade à sua formação que Vera Lucia Moura, a Verinha, saiu de São Gabriel da Cachoeira para estudar História em São Paulo, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A saudade dos parentes, da comida e do clima do seu território bate forte, mas ela encontra força no legado das mulheres de sua comunidade. “A gente leva o nome das nossas mães, das mulheres que lutam por nós. Isso nos torna porta-vozes das nossas comunidades”, afirma.
Verinha integra o Coletivo Acadêmico Indígena da Unicamp
©Mayara Penina
Junto a outros estudantes indígenas da universidade, Verinha integra o Coletivo Acadêmico Indígena da Unicamp. A convivência com esses colegas facilita o dia a dia dos estudos, e quando um desanima, outro está ali para fortalecer. “A gente também tem voz, tem diversidade cultural e é capaz de estar na universidade”, pontua a estudante.
A gente leva o nome das nossas mães, das mulheres que lutam por nós. Isso nos torna porta-vozes das nossas comunidades
Vera Lucia Moura, integrante do Coletivo Acadêmico Indígena da Unicamp
A poeta e produtora cultural Carol Peixoto é uma das criadoras do Slam das Minas SP. No slam, um movimento periférico, artistas declamam suas poesias e recebem a nota de uma comissão de jurados escolhidos entre a plateia. No Slam das Minas - SP, homens cis não podem participar e julgar.
Carol Peixoto é poeta e produtora cultural
©arquivo pessoal
Em seus mais de 10 anos de poeta, Carol se orgulha de ter visto o movimento do slam crescer, se espalhando pelo país com a formação de diferentes campeonatos. Mais um motivo de felicidade é assistir a mulheres conquistando prêmios. "Desde 2016, quando o Slam das Minas foi criado, até agora todos os campeonatos nacionais foram vencidos por mulheres e pessoas trans”, conta.
Janete Tariana produz artesanato e ensina outras mulheres
©Mayara Penina
Em São Gabriel da Cachoeira, Janete Tariana lida com outro tipo de arte: o artesanato. É confeccionando cestos, colares e brincos que a índigena da etnia Tariana tira o seu sustento. Chegar ao cenário atual não foi fácil: quando chegou à cidade, não falava português e não dominava a confecção de artesanatos.
Por meio da Associação de Artesanato Indígena da Sede (ASSAI), Janete atua para passar seu conhecimento a outras mulheres. “Quanto mais eu ajudo, mais eu me sinto forte, sozinha a gente não vai muito longe”, explica.
Trabalhar para que as mulheres indígenas de todos os povos que integram o Rio Negro tenham seus direitos garantidos é o lema da atuação de Dadá Baniwa como coordenadora do departamento de mulheres indígenas da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN). O cenário não é fácil, violência doméstica e falta de renda estão entre os problemas enfrentados no território. Dadá conta que a pandemia de Covid-19 foi um desafio à parte, e que a posição do Governo Federal frente aos direitos indígenas trouxe mais problemas às comunidades.
Dadá Baniwa é coordenadora do departamento de mulheres indígenas da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN)
©Beatriz de Oliveira
A liderança afirma que, para ser protagonista de seu território, é preciso vencer o medo. “Ser protagonista do meu território é ser uma mulher corajosa, uma mulher que enfrenta os desafios de forma resistente”, diz. Ela luta no agora na busca por um futuro melhor. “Se a gente não continuar lutando, com certeza os nossos filhos e netos também não terão o seu bem-viver nas suas comunidades”.
No coletivo Mães do Morro, Bárbara Luiza atua na luta por acesso à cultura para mulheres periféricas. A iniciativa é localizada no Morro Doce, na zona noroeste da capital paulista, e oferece oficinas para mulheres e atividades recreativas para as crianças. Além disso, também atua com formações profissionalizantes, para que mulheres em relacionamentos abusivos tenham independência financeira.
Bárbara Luiza faz parte do coletivo Mães do Morro
©arquivo pessoal
Para Bárbara, protagonizar a cena social e cultural de seu território é ser exemplo para as crianças. “Esse protagonismo vai além de ser uma figura central, mas no que ele reverbera para outras pessoas", diz.