Apresentamos a importância de iniciativas que tentam minimizar os impactos do racismo, machismo, pobreza na vida das mulheres negras das nossas periferias. Esperamos que estas reportagens inspirem todas nós a buscarmos cada vez mais o autocuidado e apoio necessário.
Atualizado em 13|02|2021
Desde cedo, muito novas, nós mulheres negras aprendemos com as mais velhas a cuidar dos outros. Essa é uma transmissão de sabedoria ancestral que passa de geração em geração. Os cuidados com os bebês no início da vida, a atenção nos sintomas de doenças. A medicina popular das plantas. Os chás que curam. Aprendemos também os cuidados e afazeres domésticos. A fórmula para quarar as roupas brancas, a técnica para tirar as manchas. E seguimos cuidando.
Cuidando das nossas casas, das casas dos patrões. Dos nossos filhos, dos filhos de outros. Cuidamos de toda a rotina da casa, a agenda dos filhos, as consultas dos médicos. Por vezes, às custas de trabalho emocional, que nos sobrecarrega mentalmente.
A falta de trabalho, de dinheiro, de perspectiva, tantas inquietações que nos deixam cansadas, mas temos que seguir fortes, porque de nós tantos outros dependem o sustento, o teto, o pão.
À exposição ao assédio, à violência. Infelizmente, em muitas situações, nos vemos na condição de cuidar de nossos companheiros, que também não aguentam a pressão social que nos afeta, e se deixam levar nos caminhos do alcoolismo e da drogadição.
O racismo nosso de cada dia, o quanto precisamos aguentar e aceitar, mas que, aos poucos, nos consome, nos mata. Quem cuida de quem cuida?
Como podemos superar tantas adversidades e pressões, tentando manter o equilíbrio e a saúde mental? Como em um contexto de ausências materiais e subjetivas podemos reivindicar o direito ao autocuidado?
Nesse Mês da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha, Nós, mulheres da periferia apresentamos a importância de iniciativas que tentam minimizar os impactos do racismo, machismo, pobreza na vida das mulheres negras das nossas periferias. Esperamos que estas reportagens inspirem todas nós a buscarmos cada vez mais o autocuidado e apoio necessário.
Somos incentivadas a sempre demonstrar força que às vezes nem percebemos que a leveza também é fundamental.
Elânia Francisca
Segundo dados da Organização Mundial de Saúde - OMS, cerca de 23 milhões de brasileiros possuem diagnóstico de distúrbios mentais. Até 2020, segundo previsão da própria OMS, a depressão será a doença mais incapacitante do planeta.
Se considerarmos que 54% da população se autodeclara negra, podemos afirmar que grande parte poderia ser afetada. Em uma pesquisa realizada em cinco países europeus e no Brasil, aqui coordenada pelo Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP - Universidade de São Paulo, homens jovens, minorias étnicas e moradores de áreas com baixos indicadores socioeconômicos apresentam mais chances de manifestação inédita de transtornos mentais que incluem esquizofrenia, transtorno afetivo bipolar e depressão com sintomas psicóticos – como alucinações, ideias delirantes e desorganização do pensamento.
Nos contextos em que vivemos nas periferias urbanas, infelizmente a saúde mental não é uma das prioridades. Há um desconhecimento dos tipos de serviços públicos disponíveis e nem sempre eles dão conta das demandas. O acesso a tratamentos especializados particulares, por vezes, é muito fora do orçamento da maioria das famílias e há, ainda, o preconceito em relação aos distúrbios mentais.
“A importância de atuar nas periferias consiste no olhar diferenciado para a demanda, entendemos que é uma população que possui difícil acesso aos serviços de saúde mental, seja pela questão de ausência da rede assistencial de saúde ou pelo estigma que o senso comum propõe sobre os processos de psicoterapia, rotulando a prática como ‘coisa de gente louca’. São nas periferias que habitam as pessoas mais mentalmente adoecidas, afinal, como lidar com os atravessamentos de classe e de raça e permanecer psiquicamente saudável diante das desigualdades?”, relata Beatriz Moreira, psicóloga clínica do projeto Roda Terapêutica das Pretas, que acontece em diferentes regiões da Grande São Paulo.
A psicóloga Elânia Francisca, moradora do Grajaú e uma das fundadoras do A Bordar Espaço Terapêutico também pondera. “Muito ainda se tem a ideia de que cuidar da saúde mental é coisa de rico, frescura ou falta de fé. Acreditamos que tudo isso é reflexo de um olhar elitizado da saúde mental, da psicologia. E isso faz com que a periferia tenha pré-conceitos com a temática, dificultando a busca por ajuda em momentos de necessidade”.
Desde o momento que nascemos, sofremos com um acúmulo de estereótipos que são associados à figura da mulher negra. Forte, escandalosa, barraqueira, boa de cama, promíscua, entre outros...Há uma interiorização desses estereótipos durante a construção do nosso desenvolvimento emocional, acarretando automaticamente estruturas psíquicas abaladas
Beatriz Moreira
Nós mulheres negras sabemos desde a infância como o racismo nos atravessa e o impacto que ele tem em nosso desenvolvimento, autoestima e em como nos colocamos no mundo. Resistimos a tantas coisas, e aprendemos que devemos parecer sempre fortes. Mas qual o preço que pagamos por isso?
Elânia Francisca constata especificidades em seus atendimentos a mulheres negras. “Relatos sobre a fragilização da autoestima intelectual. O medo de ser tachada como menos inteligente que uma mulher não-negra, a sensação de incapacidade de conduzir um projeto sozinha. A autoimagem também aparece como um sofrimento. Muitas mulheres negras atendidas trazem relato de que compreendem que o racismo lhes fez olhar para si como não-belas, têm dificuldade de se libertar desse olhar embranquecido de si. A solidão nos espaços acadêmicos ou o medo de adentra-los surge também e é uma especificidade da mulher negra atendida em nosso espaço. A dor de se sentir a anti-musa, que Sueli Carneiro menciona em um de seus textos, é frequente”.
“Nós mulheres negras somos a base da pirâmide social, isso implica em combater um duplo atravessamento como de raça e de gênero. Desde o momento que nascemos, sofremos com um acúmulo de estereótipos que são associados à figura da mulher negra. Forte, escandalosa, barraqueira, boa de cama, promíscua, entre outros...Há uma interiorização desses estereótipos durante a construção do nosso desenvolvimento emocional, acarretando automaticamente estruturas psíquicas abaladas”, afirma a psicoterapeuta Beatriz Moreira.
Beatriz ainda acredita que é necessário sensibilizar e mobilizar os profissionais da área para que a própria psicologia não reproduza preconceitos. “A psicologia como ciência vem atuando de maneira a reforçar estereótipos de raça, gênero e classe, uma vez que legitima o lugar de inferioridade de negras e negros através de testes psicométricos em pessoas com baixos índices de escolaridade devido a um fator social. Desde o seu surgimento como ciência até a atualidade. Concluímos então que mulheres negras estão mais vulneráveis a marginalização de sua saúde, por isso se faz necessário falar sobre a saúde mental da mulher negra e suas especificidades”.
Para Elânia é importante se informar e buscar ajuda especializada, mas também buscar maneiras de fortalecimento individual e coletivo. “É importante que mulheres negras saibam que não é só a psicologia que promove saúde mental, mas ela também tem seu valor no processo de autocuidado. Entendo que é extremamente complexa a relação de aproximação com o processo de psicoterapia, mas frequentar espaços de discussão sobre saúde mental, praticar yoga, esportes coletivos com outras mulheres negras é uma estratégia interessante de se cuidar. Somos incentivadas a sempre demonstrar força que às vezes nem percebemos que a leveza também é fundamental. Nas palavras de Nayra Lays
"Nós merecemos 'fartura de vida inteira, imensa’ e ter saúde integral é algo que toda mulher negra merece”.
Conheça agora os projetos de Beatriz e Elânia. E para atendimento público gratuito, saiba como ter acesso ao trabalho dos CAPS - Centro de Atenção Psicosocial.
O conteúdo integra a série de reportagens do projeto No Centro da Pauta
Articulado pela Rede Dandara, grupo de psicólogas negras realiza atendimento com preços mais acessíveis.