Lígia Batista é advogada, ativista e diretora-executiva do Instituto Marielle Franco desde fevereiro de 2023. Saiba mais sobre seus sonhos, vida e trajetória
Texto: Amanda Stabile
Edição: Mayara Penina
Fotos: Mayara Donaria
Atualizado em 19|12|2023
“O racismo nos empurra para um lugar onde acreditamos que devemos viver uma história de profundo sofrimento para ter legitimidade para falar. Durante muito tempo na minha vida, vivi essa crise”. Quem faz essa confissão é Lígia Batista, de 30 anos, que assumiu a direção executiva do Instituto Marielle Franco em fevereiro de 2023.
Nascida no Rio de Janeiro (RJ), queria ser artista, mas acabou se formando em direito, seguindo os passos de seu pai. “Sou filha do Vitor e da Isa”, conta. “Meu pai é um homem negro que veio da periferia de Salvador (BA) para o Rio de Janeiro (RJ) aos oito anos de idade. Minha mãe morou, durante boa parte de sua vida, na zona sul do Rio. É um contraste. Os dois viviam realidades que eram consideravelmente distintas”.
Crescer em meio a essa realidade e ser criada no Méier, um bairro residencial de classe média na zona norte da cidade, gerou em Lígia inúmeros questionamentos em relação ao seu lugar no ativismo e na luta política.
“Por muito tempo, até recentemente, era muito desconfortável para mim assumir que a minha história de vida não é a história de várias outras pessoas negras que conheço. Isso me fez achar que não tinha legitimidade suficiente para debater sobre racismo, desigualdades e discriminações em geral”
Até o Ensino Médio, Lígia estudou em um colégio católico e foi lá que começou a constituir muitas das suas reflexões críticas, inclusive a partir de sua própria vivência naquele espaço. Lá, vivia o racismo velado de muitas formas. “Sentia aquela sensação meio esquisita de não pertencimento. Isso se repetiu quando fui pra Universidade Federal Fluminense (UFF)”, lembra.
©Mayara Donaria
Lígia era a única mulher negra na sala de aula. E, embora seus pais nunca tenham se envolvido no ativismo organizado, sempre foram pessoas que levantavam debates sobre questões raciais. “E isso sem necessariamente tratar como militância”, recorda.
Na universidade, conta que precisou se adequar para fazer amizades e ser acolhida. Para ela, ter entrado na Universidade foi um divisor de águas em sua vida. Teve acesso a realidades muito diferentes da sua e começou a se incomodar por estar naquele espaço. Para ela, não era comum ter colegas que tiravam férias na Europa ou ano sabático sem nunca terem trabalhado.
“Muitas vezes, vivi essa vontade de desistir [da faculdade], não só porque não acredito no direito como ele está colocado hoje, mas também por não me ver naquela realidade”, aponta.
Mas foi no ensino superior, a partir do incômodo, que se entendeu como militante de uma maneira mais organizada. No final da faculdade, Lígia começou a estagiar na Anistia Internacional, uma organização não governamental que atua pela defesa dos Direitos Humanos. “Foi o meu primeiro emprego”, lembra.
Durante a audiência para liberar os autos do caso Marielle no Superior Tribunal de Justiça (STJ)
©Mayara Donaria
Lá, Lígia começou a participar do coletivo Justiça Negra Luiz Gama, que contava com muitos membros advogados, mas também de diversas áreas do saber. “Talvez tenha sido uma das minhas primeiras escolas para aprender sobre os desafios de construir militância negra no Brasil”, conta.
“Lembro que havia muitas tensões em relação ao espaço dado ou não para agenda de gênero dentro do movimento negro. Quando as companheiras traziam esse debate para a mesa, eram tratadas como as sectárias que queriam dividir o movimento e desviar o foco do grande objetivo maior”.
Outro marco específico para sua tomada de consciência política aconteceu em 2015, quando cinco jovens, com idades entre 17 e 25 anos, foram assassinados com 111 tiros disparados por policiais militares. Eles haviam saído para comemorar o primeiro salário de um deles. A chacina ficou conhecida como Chacina de Costa Barros.
“Nessa época eu já era estagiária e estava me aproximando da agenda de Segurança Pública. Me lembro de ter ajudado a construir um grande ato no bairro de Madureira, também na Zona Norte do Rio, e mobilizado muitas pessoas. Conheci a família por meio de uma iniciativa da Anistia Internacional e pude acompanhar o caso de perto”, recorda.
©Mayara Donaria
As disputas de poder no país são as questões que mais movem as reflexões de Lígia. Para ela, é possível mudar o mundo e a realidade de diversas formas, mas também é fundamental atuar dentro das instituições de poder, com uma presença massiva e estruturada no Legislativo, Executivo e Judiciário.
“Quando falamos sobre transformação em larga escala e sobre a possibilidade de mudar a vida das pessoas com estrutura, capacidade orçamentária, entre outras coisas, é muito importante que a gente possa disputar a política pública”, alerta.
Ela ainda ressalta a urgência de fortalecer pessoas e organizações que reflitam uma agenda de defesa dos direitos humanos, do bem-viver e de superação de desigualdades, de dentro dessas instituições. Ou seja, a disputa por poder está necessariamente associada à luta por transformação social.
“Ver a fotografia do poder tendo uma outra cara, para mim, é uma forma de buscar a reparação onde, historicamente, enfrentamos as mazelas do racismo, machismo e classismo. Por séculos, não nos vemos espelhados nas estruturas de poder”, aponta.
“Sem a reformulação do sistema político e sem disputar a ocupação desses espaços, talvez não consigamos avançar em várias questões que consideramos importantes e que definem os rumos das nossas vidas”, diz.
Lígia compareceu ao primeiro dia do Fórum Permanente de Pessoas Afrodescendentes das Nações Unidas (2023)
©Instituto Marielle Franco
Quando Marielle Franco, vereadora e defensora dos direitos humanos, foi assassinada em março de 2018, juntamente com o motorista Anderson Gomes, Lígia ainda trabalhava na Anistia Internacional. Ela participou da construção da campanha pedindo justiça e esteve próxima da família da vereadora durante esse momento.
“Ter sentido essa confiança e poder caminhar junto é muito inspirador. Porque, de fato, é uma família muito inspiradora. É uma família de matriarcas, muito unida e forte, que tem conseguido ressignificar essa violência e fazer com que o mundo seja diferente depois do que aconteceu”, conta.
Lígia com a família de Marielle Franco
©Mayara Donaria
Lígia destaca que o Brasil é um país onde as mulheres estão na linha de frente das lutas por transformação social. “E quando falamos sobre mulheres que são mães ou familiares de vítimas de violência, elas têm feito suas revoluções das mais diversas maneiras”, aponta.
Ao assumir o cargo de diretora-executiva do Instituto Marielle Franco, que foi criado para lutar por justiça, defender a memória, propagar o legado e regar as sementes de Marielle, a ativista sentiu um misto de emoção, orgulho e muita responsabilidade. Para ela, o assassinato da vereadora é um ponto de inflexão para a democracia brasileira.
“De alguma forma, estou contribuindo para essa história, ajudando nessa luta por justiça e construindo espaços seguros para que mulheres negras possam ocupar e permanecer. Tudo isso está conectado com o que considero como projeto de vida”.
©Mayara Donaria
Os pais de Lígia foram os primeiros de suas gerações familiares a acessarem o Ensino Superior. Eles são exemplos de estabilidade e sucesso para ela, são pontos fora da curva dentro de suas famílias.
“Alguns dos meus avós nem sequer concluíram o Ensino Médio”, conta. “Então, vemos o quanto a educação pode transformar a vida das pessoas. Mudou a vida dos meus pais e mudou a minha vida também”.
Lígia confessa que nem em seus melhores sonhos imaginava estar na posição que está hoje. Em relação à coletividade, carrega grandes esperanças.
“Que possamos virar a página de falar sobre outras possibilidades de vida além do sofrimento, enquanto pessoas negras”, diz.
Esta reportagem integra a série “Feminismos”, uma parceria do Nós com a Fundação Rosa Luxemburgo. A série conta histórias de mulheres que têm a política como propósito de vida.