Conheça histórias de mulheres negras e periféricas que realizaram o sonho da casa própria, entenda o contexto histórico da moradia no Brasil e confira dicas sobre os melhores caminhos para a conquista dessa meta.
Reportagem: Beatriz de Oliveira
Edição: Mayara Penina
Atualizado em 05|01|2024
Se te pedirem pra contar quais são os seus maiores sonhos, a conquista da casa própria estará entre suas respostas? Para muitas mulheres periféricas, ter um canto pra chamar de seu representa segurança e independência financeira, livrando-as das oscilações do aluguel e proporcionando um patrimônio para os filhos. Mas, se você já pesquisou preços de casas e apartamentos sabe que esse não é um sonho simples de ser alcançado.
A economista Gabriela Mendes, fundadora e CEO da NoFront-Empoderamento Financeiro, destaca a importância da busca por moradia como um ato de emancipação da população negra. “A conquista da casa própria é um passo importante de autonomia para a população negra, principalmente para as mulheres. É importante que as mulheres construam patrimônio como uma forma de conquistar segurança e estabilidade financeira”, afirma.
Não se tratam de conquistas individuais, mas coletivas. “Às vezes, uma casa comprada vai abrigar duas ou três gerações de uma mesma família. Em outros casos, a compra de um terreno vai permitir que vários membros construam suas casas”, pontua Gabriela.
Essa lógica, por si só, derruba argumentos feitos por parte dos educadores financeiros, de que alugar um imóvel é mais vantajoso do que comprar, e que as pessoas devem investir o valor que usariam para a compra de uma casa. “Mas, essas pessoas estão desconectadas da realidade de insegurança que atinge as pessoas negras periféricas no Brasil, da realidade de quem vende o almoço para pagar a janta, de que tem trabalho informal”, diz.
Viver em moradias precárias na infância moldou os sonhos de Daniela Souza, que não desistiu até ter sua casa própria. “Eu já cheguei a morar na garagem da casa dos meus avós. Quando você mora num cômodo sem banheiro, tendo que usar o banheiro dos outros, você cresce querendo ter a sua casa. Foi um caminho bem difícil até conseguir”, conta.
Após engravidar, em 2009, se casou e enfrentou uma década de convivência desafiadora na casa da sogra, mantendo viva a esperança de ter um espaço próprio. Até que, em dezembro de 2019, ela e seu companheiro deram entrada em um apartamento na planta, utilizando parte da rescisão do antigo emprego. Em março de 2022, com o prédio pronto e a entrega das chaves, se mudaram para o novo lar, em Osasco, região metropolitana de São Paulo.
Contudo, a realização do sonho não foi isenta de desafios. “Os corretores mentem, precisamos falar sobre isso”, pontua. Daniela compartilha sua experiência com o financiamento, destacando surpresas desagradáveis, como valores de parcelas e condomínio superiores ao previsto pelo corretor. Também não havia sido informada de uma taxa que teria que pagar ao receber as chaves do apartamento. “Tivemos que pagar uma grana extra, em torno de R$ 8 mil”, lembra.
Passados os vários obstáculos, Daniela se sente realizada vivendo em seu apartamento de pouco mais de 45m², junto ao marido e à filha. Conta, dando risada, que na primeira noite no local, acordou assustada, sem reconhecer onde estava. “É um alívio, uma felicidade muito grande, minha filha tem o quarto dela, pintou da cor que ela quis”.
A adaptação ao novo espaço ocorre gradualmente, com a aquisição de móveis ao longo dos meses. Sobre as responsabilidades do financiamento, ela ressalta: “nós estamos felizes, é um boleto que você paga e te dá um alívio, não uma tristeza”.
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Em uma narrativa semelhante, Jessika Lima, residente em Santa Maria (DF), compartilha suas vivências na busca pelo sonho da casa própria. Originária de uma realidade desafiadora e crescendo em vários bairros na periferia de Brasília, Jessika relembra dificuldades da infância, morando em um único cômodo com a família. “Dividíamos um cômodo e um banheiro, a mesma cama”, relata
Ao longo de sua vida adulta e durante a faculdade, seus pais conseguiram financiar uma pequena casa. No entanto, com o desemprego do pai, perderam o imóvel e também o carro, reforçando a importância da estabilidade habitacional na vida de Jessika. Vivências como essa, fizeram Jessika entender a importância de questões relacionadas à moradia e alimentaram seu sonho pela casa própria.
“Eu ouvi muito, até de amigos, que comprar uma casa não é um investimento. Venderam uma ideia pra gente de que alugar é a melhor opção. (…) Geralmente quem defende o aluguel, tem pra onde ir caso não dê certo, e a gente não tem essa opção. Então a melhor coisa que a gente faz é ter o nosso próprio conforto”, pontua.
Com a ajuda da família, Jessika e o companheiro financiaram um apartamento no início de 2021. Durante esse ano, guardaram dinheiro para a reforma necessária e no ano seguinte, 2022, se mudaram para o local. Ela lembra com carinho do processo de mudança e da ajuda que receberam de amigos e familiares. “Quase tudo que a gente tem aqui, a gente ganhou. Fizemos um chá de casa nova online, todos contribuíram com alguma coisa. Foi um processo muito bom, até hoje eu não acredito que moro aqui”, diz sorrindo.
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A questão do direito à moradia, especialmente para a população negra, tem raízes históricas que remontam ao período de escravização. “É importante lembrar que antes da abolição, foi promulgada a Lei de Terras em 1850, que foi pensada para que a população negra, uma vez liberta, não migrasse para o centro para e tomasse terras. Foi uma lei importante para tornar a terra privada e para privar a gente da terra”, aponta Gabriela Mendes.
O artigo “Estratégias de aquisição da casa própria: a trajetória de algumas famílias negras paulistanas nas décadas de 1920 a 1940”, de Ana Claudia Barone, evidencia como o sonho da casa própria tem sido perpetuado ao longo da história como sinônimo de estabilidade e segurança para famílias negras. “Entre 1924 e 1937, dois dos principais jornais da imprensa negra paulista, O Clarim da Alvorada e A Voz da Raça, realizaram uma campanha em favor da casa própria, difundindo entre as famílias negras paulistanas a ideia da importância da aquisição imobiliária. Essas campanhas constituem um indício importante da relevância da aquisição residencial para as famílias negras do período”, diz o texto.
Pulando para os dias de hoje, dados da Síntese de Indicadores Sociais (SIS), divulgados no dia em novembro de 2023 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revelam que mais da metade da população reside em casa própria, representando 64,6%. O estudo revelou ainda que a população negra é a que mais tem sensação de insegurança em sua moradia.
Os dados do Censo 2022 revelam que o Brasil possui 11,4 milhões de domicílios vagos, quase o dobro do déficit habitacional, estimado em 6 milhões de domicílios, segundo a Fundação João Pinheiro (FJP) com dados de 2019. A FJP define o déficit habitacional como a falta de moradias e a existência de habitações em condições inadequadas.
Outro estudo do IBGE com dados de 2019, expõe que um em cada cinco brasileiros reside em habitação precária, totalizando 45,2 milhões de pessoas. Essa condição inclui falta de banheiro, com paredes feitas de materiais não duráveis, superlotação, ônus excessivo com aluguel e ausência de documento de propriedade. A maioria dos brasileiros nessas condições são negros, somando 31,3 milhões, em comparação com 13,5 milhões de brancos.
A posse de uma casa própria, como evidenciado, não garante automaticamente dignidade para uma parte significativa da população brasileira. A arquiteta Ester Carro, fundadora e presidente do Fazendinhando, uma organização dedicada à regeneração territorial por meio de reformas e construções no Jardim Colombo, parte do complexo de Paraisópolis, na zona sul de São Paulo, destaca a importância de associar a moradia a um conforto mínimo e básico.
Em setembro deste ano, uma ação que Ester fez ganhou repercussão na mídia e nas redes sociais. Tratou-se da reforma e ampliação da considerada menor casa de alvenaria do país, com 4m².
Casa de Tiquinho reformada
©reprodução Instagram
A arquiteta relata que a grande maioria das casas próprias da favela Jardim Colombo têm alguma precariedade. O problema é agravado, segundo ela, especialmente em moradias comandadas por mães solo. “Muitas mulheres precisam escolher se vão concluir uma reforma ou se vão colocar comida dentro de casa”, conta.
Entre os maiores problemas que Ester encontra ao visitar as casas da comunidade, estão o mofo e a insalubridade, decorrentes pela grande quantidade de pessoas vivendo em um espaço pequeno, normalmente sem janelas. Além disso, questões como infiltração, entrada de roedores, escadas mal feitas, falta de revestimento, problemas da rede elétrica e hidráulica são comuns.
O projeto Fazendinhando vai além das reformas habitacionais, oferecendo formações para mulheres aprenderem a reformar suas próprias casas. Além disso, criam espaços de lazer para as crianças da comunidade, contribuindo para a qualidade de vida.
Fazendinhando capacita mulheres para reformarem suas casas
©arquivo pessoal
“Quando a gente entrega a moradia com conforto, segurança e dignidade, as vidas das pessoas são transformadas”, afirma.
Ela compartilha o caso de uma moradora que, antes da reforma, vivia em condições precárias, cercada por lixo, materiais recicláveis, ratos e baratas. Com a reforma em andamento, essa mulher já apresenta melhorias significativas em seu quadro depressivo, evidenciando o impacto positivo de um ambiente habitacional adequado.
Ao planejar a compra da casa própria, é essencial ter informações cruciais em mente para evitar surpresas ao longo do processo. A economista Gabriela Mendes chama atenção para três pontos:
Documentação: cerca de 10% do valor do imóvel, seja casa ou apartamento, é destinado a gastos com documentação. Inclui transferência do imóvel, Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) estadual, e Imposto sobre Transmissão de Imóveis (ISTI) municipal, além de taxas de cartório.
Reformas: avalie o valor a ser gasto em reformas, considerando uma análise da estrutura, parte elétrica e hidráulica. Reformas estruturais podem ter custos elevados, então é crucial calcular e entender a capacidade de arcar com essas despesas;
Mobília: faça uma lista dos móveis necessários e prepare-se financeiramente para essa despesa antes da mudança para a nova casa.
Vale também compreender os diferentes métodos de pagamento de um imóvel é importante. As opções incluem pagamento à vista, consórcio imobiliário e financiamento.
No entanto, Gabriela não recomenda o uso do consórcio devido a algumas desvantagens. Nessa prática, uma instituição financeira reúne um grupo de pessoas, que mensalmente pagam uma fração do valor de um imóvel. Ao adquirir o valor do imóvel completo, ocorre o sorteio de uma carta de crédito para os integrantes do grupo. A lógica é que até o final do consórcio, todos os membros recebam uma carta de crédito.
“A partir do momento que você pega a carta de crédito, há uma dívida, então é preciso continuar pagando o consórcio para manter o imóvel”, pontua e acrescenta que o dinheiro aplicado no consórcio não rende, como acontece no caso de investimentos; há ainda as altas taxas de administração.
Sendo assim, a prática mais comum para comprar uma casa ou apartamento é o financiamento. Nesse cenário, é preciso aproximadamente 20% do valor do imóvel para efetuar a entrada. Por exemplo, se a casa custa R$ 200 mil, a entrada mínima seria R$ 40 mil, enquanto o restante seria financiado.
Para juntar o dinheiro da entrada, vale aplicar as economias mensais em investimentos do Tesouro Direto, títulos públicos seguros e oferecidos pelo governo. Na plataforma, é possível fazer simulações do valor de aportes mensais a partir da quantia desejada no momento do resgate.
Ao comprar um apartamento na planta, ou seja, que ainda vai ser construído, a entrada pode ser paga de forma parcelada à construtora durante o período de construção do prédio. A partir do recebimento das chaves, se inicia o pagamento do financiamento.
“A vantagem [do apartamento na planta] é que você consegue flexibilizar o pagamento da entrada. Mas, há o risco da construtora atrasar a entrega e outros problemas”, diz Gabriela.
Na pesquisa pela compra da casa própria, vale acessar informações sobre o Minha Casa, Minha Vida, programa do governo federal que oferece subsídios e taxas de juros reduzidas para compra de moradia. O programa atende famílias com renda mensal de até R$ 8 mil.
Além disso, a economista indica duas ferramentas que podem ser aliadas no planejamento para a conquista do sonho da casa própria:
Consulta de taxa de juros no site do Banco Central: permite saber as taxas praticadas pelos bancos para financiamento.
Calculadora do Cidadão: ajuda a simular o valor das parcelas e a quantidade de meses de financiamento, usando a taxa de juros informada anteriormente
Exemplo Prático:
Ao simular um financiamento de R$ 200 mil, com uma taxa de juros de 0,86% e um prazo de 20 anos (240 meses), a Calculadora do Cidadão mostra parcelas de R$ 1.972,63. O total pago em juros nesse cenário ultrapassa R$ 270 mil.
Simulação de parcelas e juros de financiamento
©reprodução site Banco Central
Para evitar altos gastos com juros, a economista recomenda juntar o máximo possível de dinheiro para a entrada e organizar amortizações, antecipando o pagamento das últimas parcelas do financiamento e possibilitando descontos nos juros.