Na terceira e última reportagem da série “Entre bets e perdas”, abordamos o papel da publicidade para o crescimento desenfreado desse setor
Reportagem: Beatriz de Oliveira
Edição: Karoline Miranda
Atualizado em 02|12|2024
Se você usa redes sociais, certamente já cruzou com propagandas de jogos de azar e de apostas online, mesmo que sejam aquelas disfarçadas de “indicação” de influenciadores, como forma de ganhar um dinheiro fácil. É possível que tenha se deparado também com perfis que oferecem “estratégias” para ganhar dinheiro apostando. Num período em que o setor das bets ainda não tinha regulamentação definida, a publicidade desempenhou um papel crucial para o seu crescimento desenfreado.
Esta é a terceira e última reportagem da série “Entre bets e perdas: o cenário de jogos de apostas e azar no país”. Neste especial, o Nós, mulheres da periferia investiga a relação de mulheres periféricas com jogos de apostas e de azar online, contextualiza o atual cenário de usuários e gastos nessas plataformas, discute a regulamentação do setor, os impactos na saúde mental e o papel da publicidade nesse meio.
As casas de apostas investem pesado na propaganda. Segundo pesquisa do Kantar Ibope Media, publicada pelo site Meio & Mensagem, de janeiro a agosto de 2024 as bets investiram R$ 2,3 bilhões em publicidade no país, através da compra de mídia (estratégia de adquirir espaços publicitários para promover uma marca). O valor significa 5% do total destinado para compra de mídia pelos 300 maiores anunciantes do ano de 2023.
Entre as estratégias amplamente usadas pelas bets está a contratação de influenciadores digitais para promoverem as plataformas. Com isso, virou comum ver conteúdos de influencers sugerindo jogos de azar e de apostas como forma de ganhar uma renda extra, um investimento. Atualmente, com a regulamentação do setor, esses discursos se tornaram mais raros, mas o estrago já estava feito.
“A gente passou por um período muito doloroso de pandemia [de Covid-19], as pessoas perderam emprego, tiveram redução salarial. Parece uma coisa muito distante, mas é muito recente. Ficou tão difícil que hoje as pessoas, mesmo ganhando seus salários, estão procurando uma forma de ter uma renda extra. E uma coisa que a gente escuta aí, que é um dos piores erros das bets, é se vender como se fosse um dinheiro rápido e fácil, como se fosse um dinheiro possível”, afirma a educadora financeira Nathália Rodrigues, conhecida como Nath Finanças.
Uma coisa que a gente escuta aí, que é um dos piores erros das bets, é se vender como se fosse um dinheiro rápido e fácil, como se fosse um dinheiro possível
Nath Finanças
Entre 2018, quando as apostas esportivas foram liberadas no país, até o fim de 2023, quando se deu início a regulamentação do setor, a questão da publicidade das bets era “terra de ninguém”, o que contribuiu para o rápido crescimento das plataformas. “Na maioria das vezes, quando esses jogos eram demonstrados nas redes sociais, dificilmente você via um influenciador digital ou celebridade perdendo no momento de demonstração. Isso, por si só, do ponto de vista do Código de Defesa do Consumidor já pode ser considerado uma propaganda enganosa”, afirma Georgia Manfroi, advogada e autora do artigo “Jogos de Azar e de Apostas de Quota Fixa On-line: Reflexões sobre a Proteção do Consumidor-Apostador”.
Apesar da abissal diferença entre apostas e investimentos, o hábito de acessar jogos de azar e apostas esportivas está disseminado nas periferias como forma de ganhar dinheiro. Essa é a visão de Amanda Dias, educadora financeira e dona do perfil Grana Preta. “Os jogos de apostas acabam disputando espaço com outras modalidades de jogos de azar, com a diferença de que você não precisa sair da sua casa para ir na banca jogar, você pode fazer isso direto no celular. Essa diferença causou um impacto muito grande no volume de apostas”, afirma.
Segundo pesquisa do Instituto Locomotiva, lançada em agosto deste ano, 53% dos brasileiros que apostam afirmam que ganhar dinheiro é a principal razão para realizar as apostas; 37% afirmam que já usaram dinheiro destinado a outras coisas importantes para apostar online.
Amanda explica a diferença entre a lógica das apostas e dos investimentos: “em uma aposta, você não tem certeza do retorno [financeiro]; embora alguns investimentos envolvam o risco, todos eles deixam claro a certeza do retorno”. E acrescenta: “o investimento é quando você deixa de gastar um dinheiro aqui e agora, para mais tarde realizar um outro tipo de consumo”.
Ou seja, investir envolve tempo. Já nas apostas, o resultado é imediato, e isso se reflete nas urgências vividas pelas periferias. Estamos em 7 milhões de desempregados no país, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em fevereiro deste ano, o país contava com 38,8 milhões de trabalhadores na informalidade, número superior aos que têm carteira assinada (37,9 milhões).
Amanda lembra do episódio em que foi trançar seu cabelo com uma profissional. Antes mesmo de terminar o serviço, a trancista pediu que a cliente depositasse o pagamento para que ela pudesse apostar nos jogos de azar. Ela apostou todo o dinheiro e não conseguiu ganhar, mas seu argumento para continuar jogando foi de que quando precisava de dinheiro para comprar um gás ou outro item essencial, o jogo a ajudou.
“Eu posso falar de investimento, mas é uma coisa que vai render 12% ao ano e 1% ao mês. Isso não faz o olho da pessoa de baixa renda brilhar, porque é um pensamento de longo prazo que é muito difícil para alguém que viveu por anos e anos na escassez conseguir assimilar que daqui a 10, 20 ou 30 anos ela vai conseguir gozar do status do dinheiro [investido]”, pontua a educadora financeira.
Desde o fim de 2023, tem acontecido operações policiais contra influenciadores suspeitos de praticar crimes envolvendo a divulgação de caça-níqueis online. Uma delas foi a operação “Truque de Mestre”, no Pará, que contou com 12 pessoas investigadas, suspeitas de movimentar mais de R$ 20 milhões ligados a jogos de azar.
Mais recentemente, no dia 19 de novembro, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Bets aprovou a convocação como testemunhas da influenciadora Deolane Bezerra; dos cantores Jojo Todynho e Wesley Safadão; e do humorista Tirulipa.
Para além dos influenciadores que ganham as manchetes, Ana Paula Passarelli, especialista em marketing de influência e cofundadora da agência Brunch, propõe que tenhamos um olhar mais aprofundado para esse setor. “Um influenciador que mora em Pinheiros, São Paulo, pode dizer não [para uma oferta de publicar conteúdos sobre jogos de azar]. A gente tem lembrar do influenciador que mora no interior do Pará, que se não aceitar esse dinheiro das Bets, pode não ter o que comer, estamos falando de um país muito desigual. Mas isso não quer dizer que a gente não precise cobrar que essas pessoas façam isso direito”, diz.
Um estudo das agências de marketing Brunch e YOUPIX, divulgado em novembro de 2024, revelou que entre o universo de 20 milhões de influenciadores digitais existentes no país, metade recebe no máximo R$ 5 mil por mês.
“Mais da metade dos influenciadores começaram a criar conteúdo no período da pandemia, então são criadores que entenderam que a criação de conteúdo é uma maneira de sobrevivência, numa época em que a taxa de desemprego estava muito alta”, pontua Ana Paula.
A especialista destaca que não há regulação específica para os influenciadores digitais e que esse seria um caminho importante para uma publicidade mais adequada dentro das redes sociais. “[Os influenciadores] conseguem atravessar uma barreira que a publicidade tradicional não consegue, porque já é reconhecida no lugar publicitário”, explica.
Olhando com mais atenção para o mercado de influência digital, encontramos o nicho dos influenciadores de investimento, e dentro dele, há aqueles que se dizem consultores de apostas esportivas e traders esportivos. Eles oferecem dicas e “estratégias” de como apostar e lucrar com isso, disponibilizando, inclusive, grupos no Telegram para os seguidores que quiserem seguir os palpites de apostas. Há ainda diversos vídeos nas redes sociais dando dicas de como ganhar dinheiro em jogos de caça níquel online, como se não dependesse exclusivamente da sorte.
“É sempre um método, uma estratégia. Eles prometem ensinar o caminho para alcançar determinada coisa, guiar o sujeito, por isso há a figura do mentor. Sempre há narrativas testemunhais: alguém ganhou [dinheiro] com esse método, o próprio influenciador se mostra como a prova disso”, explica Thais Pavez, cientista política e uma das pesquisadoras de um estudo buscou entender o que leva os jovens a seguir determinados perfis nas redes sociais, e como isso influencia nas suas opiniões políticas.
É sempre um método, uma estratégia. Eles prometem ensinar o caminho para alcançar determinada coisa, guiar o sujeito, por isso há a figura do mentor.
Thais Pavez
Thais explica que, em geral, os seguidores se identificam com influenciadores desse nicho por terem histórias de vida parecida e por eles oferecem discursos de motivação e otimismo, com soluções individuais para alcançar a prosperidade financeira. Isso inclui “métodos de reprogramação mental” e outras estratégias de disciplina, usadas pelo que a pesquisadora chama de “coachs da prosperidade”.
A pesquisadora pontua ainda que esses discursos ganham força num contexto em que cada vez mais as pessoas trabalham na informalidade, com negócios próprios e carros de aplicativo, por exemplo.
“Isso se disseminou muito entre os próprios influenciadores, que anunciavam as bets. Mas é interessante que alguns jovens sentiam muito incômodo em relação às apostas, porque evidenciava que aquilo que eles estavam oferecendo tinha um interesse puramente de ganhar dinheiro, atingindo a ideia de que o influencer é um cara verdadeiro. Por isso, usa-se a estratégia de que essas apostas sejam comunicadas através de mentorias de investimento”, pontua.
A pesquisadora adiciona também mais um ponto: a publicidade em torno das apostas estimula o desejo pelo enriquecimento e pela potência que isso representa. “O problema das apostas, é que além de lidar com uma necessidade objetiva de dinheiro, lida também com a fantasia e o desejo. Isso é algo grave, e nos leva a pensar em outra questão: as pessoas estão fantasiando individualmente a saída para suas próprias vidas. Qual é o imaginário que a gente pode oferecer enquanto sociedade como alternativa a esse caminho que é altamente auto-destrutivo?”, questiona.
A regulamentação das bets, através da Lei 14.790/2023 e portarias posteriores, já dispõe de regras específicas quanto à publicidade. Entre elas estão a proibição de propagandas com afirmações infundadas sobre as probabilidades de ganhar ou os possíveis ganhos que os apostadores podem esperar, que apresentem a aposta como socialmente atraente ou contenham afirmações de celebridades que sugiram que o jogo contribui para o êxito pessoal ou social, que sugiram que a aposta pode constituir alternativa ao emprego, solução para problemas financeiros, fonte de renda adicional ou forma de investimento financeiro.
A legislação prevê ainda que as plataformas apresentem comunicações sobre jogo responsável, prevenção de dependência e transtornos do jogo patológico, e destaquem a proibição de apostas por crianças e adolescentes.
A advogada Georgia Manfroi compara as definições da publicidade de apostas com as de bebidas alcoólicas. “Sabe aquele beba com moderação que a gente sempre vê? Agora, no contexto dos jogos de apostas, sejam eles de modalidade esportiva ou jogos que remetem a cassino, deve se passar a mensagem de jogar com responsabilidade”, afirma.
Outras regras previstas na regulamentação dizem respeito a prevenção de endividamento de apostadores. É o caso da proibição de bônus para apostar condicionado à aplicação financeira, e também aceitação apenas do pagamento pré-pago (cartão de débito), mas não pós-pago (cartão de crédito).
Para a educadora financeira Amanda Dias, essas medidas são eficazes, mas outras ações devem ser tomadas para sanar a questão do endividamento dos apostadores. “Fica muito a critério do indivíduo resolver um problema que é estrutural. Eu acredito que deve acontecer a transparência de quanto as plataformas estão ganhando, para as pessoas entenderem esse quantitativo”, afirma, acrescentando a importância da disseminação da educação financeira.
Caso você ou algum conhecido tenha problemas com jogos de azar e apostas online, procure ajuda gratuita em algum desses locais:
Centros de Atenção Psicossocial (CAPS): são lugares onde oferecem serviços de saúde abertos para a comunidade; procure a unidade mais próxima de sua moradia.
Jogadores Anônimos: irmandade que segue um programa de 12 passos para ludopatas, há reuniões online e presenciais em várias cidades; basta entrar em contato com os números disponíveis no site para ser atendido e direcionado para um grupo de reuniões.
Pro-Amiti: ambulatório do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo responsável por desenvolver estudos e tratamentos para quem apresenta transtornos do jogo; atende apenas em São Paulo (SP).
Centro de Valorização da Vida (CVV): oferece apoio emocional pelo telefone 188, chat e e-mail.