No contexto da Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver, ativistas de todas as regiões do país contam o que significa reparação na prática
Reportagem: Beatriz de Oliveira
Edição: Bianca Pedrina
Artes: Raíssa Ribeiro
Atualizado em 24|11|2025
O movimento de mulheres pretende reunir milhares de ativistas em Brasília neste 25 de novembro para marchar por reparação e bem viver. A segunda Marcha Nacional das Mulheres Negras acontece uma década após a primeira, que reuniu cerca de 50 mil ativistas na capital do país.
Para o ato de 2025, o conceito de reparação ganha destaque. A pauta não é nova dentro do movimento negro e reinvidica ações que cessem as desigualdades causadas pela escravização, passando pelos âmbitos financeiro, simbólico e territorial.
Na reportagem “Ao marchar por reparação, mulheres negras reivindicam uma nova nação”, explicamos o conceito de reparação e o histórico do movimento de mulheres negras nesse tema.
Nesta reportagem, conversamos com uma mulher negra ativista de cada região do país e com uma imigrante que mora aqui para saber o que elas entendem por reparação na prática. Todas elas pretendem ir ao ato no dia 25 de novembro e marchar por uma nova nação, que as respeite e as contemple.
Para elas, a reparação se traduz em mudanças efetivas no cotidiano das mulheres negras. Significa a possibilidade de viver além da luta pela sobrevivência, o cuidado e o afeto com as crianças negras, a paz das mães negras, o acesso real a direitos básicos e salário digno, a redução de violências e desigualdades, dignidade e liberdade da população negra.
📍 Santarém (PA)
©Colagem digital por Raíssa Ribeiro. Imagem original: Foto 1 | Alessandra Caripuna (Reprodução/Arquivo Pessoal)
Alessandra Caripuna nasceu em um berço ativista. No Quilombo Pacoval, em Alenquer (PA), sua mãe, mesmo sem se nomear como militante, lutou pela titulação das terras e por escolas na comunidade, se tornando a primeira professora do local.
A paraense aprendeu com a mãe e iniciou sua trajetória ativista quando passou a morar em Santarém (PA), onde se vinculou ao movimento negro. É também cofundadora e coordenadora do Instituto Kitanda Preta, que atua no enfrentamento ao racismo e promoção de autonomia e protagonismo do povo negro da Amazônia paraense.
Alessandra se mobiliza para a Marcha das Mulheres Negras como parte do Comitê Baixo Amazonas. Enxerga a reparação como a possibilidade de viver além da luta por sobrevivência, com a ampliação de direitos como cotas raciais em universidades e titulação de terras quilombolas. “Reparação é viver com dignidade, é não sofrer violência racista”.
Ao pensar nesse termo ela também reflete sobre as infâncias e a necessidade de cuidar do seu presente e futuro. “Que a gente cuide da autoestima das crianças negras para que elas cresçam fortes e potentes. Isso também é reparação”, diz.
📍Campinas (SP)
©Colagem digital por Raíssa Ribeiro. Imagem original: Foto 1 | Cleusa Silva (Reprodução/Arquino Pessoal)
Ativista do movimento de mulheres negras há décadas, Cleusa Silva presenciou e participou de marcos importantes da agenda racial, como a fundação do Movimento Negro Unificado (MNU) e a Conferência de Durban – sobre a qual falamos acima. Em Campinas (SP), exerce um papel importante como coordenadora da Casa Laudelina, que desenvolve atividades em diferentes campos voltadas a mulheres negras.
Sua bagagem na militância lhe permite dizer com convicção que há necessidade da reparação, pois “sem reparar o crime não vai ter igualdade”. E isso vai além da construção e implementação de políticas públicas, requer compensação financeira e redução de iniquidades.
Cleusa pontua que o movimento de mulheres negras vem buscando explicar à população o significado de reparação de modo didático e palpável, usando seu papel educador como já fez em outros momentos – como na desconstrução do mito da democracia racial.
Enquanto integrante do Comitê Impulsor Nacional da Marcha, Cleusa proclama: “queremos marcar um divisor de água na sociedade brasileira, pautando o debate sobre reparação histórica, econômica, social, cultural e política, reafirmando que este crime de lesa-humanidade não foi reparado. Essa reparação precisa acontecer para que de fato se promova a igualdade de raça, gênero e classe no Brasil”.
📍Salvador (BA)
©Colagem digital por Raíssa Ribeiro. Imagem original: Foto 1 | Iasmin Gonçalves (Reprodução/Arquivo Pessoal)
A historiadora e educadora popular Iasmin Gonçalves se tornou militante a partir da entrada na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Ingressou no movimento estudantil para pautar as ações afirmativas e permanência de estudantes negros na universidade, além de participar de grupos de estudos para pensar o feminismo negro.
Atualmente, é ativista do Odara Instituto da Mulher Negra, em Salvador (BA), e se debruça sobre as múltiplas dimensões do tema da reparação. Para isso, começa pelo próprio significado da palavra. Reparar significa recuperar coisas deterioradas ou em mau funcionamento. Assim, diante do mau funcionamento do país para as populações negras, faz-se necessário repará-lo.
“Essa reparação que temos pautado vai muito além de compensações financeiras. Ela trata de justiça histórica, de justiça racial, de reconhecimento, de dignidade e bem viver para toda a população. A reparação, na verdade, é trazer à tona direitos negados a partir do contexto da escravização das populações negras”, afirma.
A partir disso, a historiadora defende que isso vai além de políticas públicas efetivas, abarcando a leis e medidas que “reparem o processo histórico de violações de direitos”. Há ainda diferentes frentes nesse contexto, que incluem reparações simbólicas, territoriais e reconhecimento histórico dos impactos da escravidão.
📍Anápolis (GO)
©Colagem digital por Raíssa Ribeiro. Imagem original: Foto 1 | Silva Regina (Reprodução/Arquivo Pessoal)
Moradora de Anápolis (GO), cidade que define como “extremamente racista”, Sílvia Regina passou a assumir e se orgulhar de sua negritude a partir de 2012, quando participou de um evento sobre igualdade racial. Desde então, se aproximou da luta por direitos à população negra e atualmente é vice-presidente do Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial de sua cidade.
“O racismo me atravessa de várias formas, me atravessa por ser uma mulher pobre, periférica, mãe solo”, afirma e explica que entende que seu contexto social e condição financeira estão diretamente ligados aos impactos da escravidão. Ressalta também que as mulheres negras, em grande parte, trabalham muito sem ter tempo para descanso ou lazer.
Para reverter esse cenário, Sílvia pontua a necessidade de uma reparação discutida com a população, não apenas nos gabinetes políticos. Tais mudanças devem envolver “acesso à saúde, à educação, à moradia, ao saneamento básico e à salário digno”.
É por tudo isso que ela pretende reivindicar na manifestação marcada para 25 de novembro. “Nessa marcha, que a gente seja ouvida e que seja feita essa reparação histórica, porque nós queremos viver, queremos o fim do racismo e da violência contra as mulheres”.
📍 Passo Fundo (RS)
©Colagem digital por Raíssa Ribeiro. Imagem original: Foto 1 | Francisca Bueno (Reprodução/Arquivo Pessoal)
“Eu já nasci para ser mulher negra militante”, afirma Francisca Bueno, e explica que nasceu numa cidade do interior do Rio Grande do Sul em que “ser preto era um diferencial negativo” e que desde sempre seus pais a incentivaram a lutar e a estudar.
Moradora de Passo Fundo (RS), Xika, como é conhecida, é professora aposentada e integrante da Associação Cultural de Mulheres Negras (ACMUN). Considera que a luta do movimento negro resultou em significativos avanços, como a obrigação de ensino de historia e cultura afrobrasileira nas escolas e a politica de saúde da população negra. Porém, ressalta que isso não tem sido suficiente. “O bem viver só existirá se existirem as reparações que a sociedade brasileira nos negou”, afirma.
Acrescenta ainda que são necessárias políticas públicas efetivas que permitam, por exemplo, que as mães negras tenham tranquilidade de que seus filhos voltarão seguros para casa. “A gente precisa estar juntas por um mesmo ideal, que é a emancipação. Não é emancipação de papel, é a emancipação dos nossos corpos, das nossas vidas, das nossas vontades. Nós temos desejo, temos sonhos, temos planos que às vezes morrem no caminho porque ainda não somos 100% libertos”.
📍Natural de Angola, vive no Brasil
©Colagem digital por Raíssa Ribeiro. Imagem original: Foto 1 | Luzia Nachilenga (Reprodução/Arquivo Pessoal)
A angolana Luzia Nachilenga vive no Brasil há 10 anos, na cidade de Goiânia (GO). Jornalista de formação, conta que quando ficou sabendo da Marcha das Mulheres Negras se prontificou a somar nessa luta, por acreditar e ansiar por mudanças nesse país em que já foi vítima de xenofobia.
“Eu acredito que quando vou para a rua, vou por todas mulheres negras angolanas, porque lá também há muita violência. Estou indo pelas minhas sobrinhas, pelas minhas amigas negras e pelas mulheres periféricas que não vão ter possibilidade de ir para Brasília”, afirma.
Luzia conta que está ansiosa para a chegada do ato e que tem muitas pautas para reivindicar. Tantas assim que não caberão num cartaz, por isso está pensando em se vestir dessas lutas, colocando faixas em torno do corpo com seus anseios de mudanças.
Entre essas reivindicações está a de políticas reparatórias. Para ela, isso significa acesso à educação, aplicação igualitária de direitos e dignidade para população negra. “Reparação é reconhecer que no passado a gente errou, mas que no presente a gente quer fazer diferente”, o que inclui “reconhecer que o Brasil é fruto de um estupro, ao invés de falar da miscigenação de forma romantizada”.