A partir de dados e relatos, entendemos como elas constroem seus negócios enfrentando barreiras financeiras, preconceitos e falta de apoio
Texto: Amanda Stabile
Edição: Karoline Miranda
Fotos: Arquivo pessoal das empreendedoras
Atualizado em 04|06|2025
Empreendedorismo. Você já deve ter ouvido esse termo por aí. De acordo com o Sebrae, “é a capacidade que uma pessoa tem de identificar problemas e oportunidades, desenvolver soluções e investir recursos na criação de algo positivo para a sociedade”. Palavras bonitas para nomear algo que, na prática, muitas vezes começa da necessidade: resolver os problemas com criatividade, coragem e a grana que tiver no bolso.
Antes mesmo da palavra “empreendedorismo” se popularizar, as mulheres já inventavam caminhos para garantir o sustento da família, superar barreiras sociais e transformar suas realidades. No artigo “Mulher Negra: religião, trabalho e organização familiar”, Joanice Santos Conceição dá um exemplo ainda colonial:
As negras, ainda no período escravista, ganharam as ruas com seus tabuleiros, com suas roupas coloridas e seu jeito próprio de negociar gêneros alimentícios ou outras formas de trabalho, como vender água, frutas e/ou legumes.
Segundo a pesquisadora, essa arte de negociação é herdada das vivências no continente africano, onde elas tinham participação ativa na economia das cidades. Após a abolição da escravidão no Brasil, essa população foi empurrada para as regiões consideradas menos nobres das cidades, as periferias.
É o que explica Carmen Corato, doutora em Serviço Social. “Em nenhum momento da história cogitou-se a possibilidade de realizar um processo de reparação econômica pelos quase 400 anos de escravização, ficando evidente o porquê de a população negra compor as favelas, morros e periferias urbanas e rurais”.
Nesses territórios, nas bordas das cidades, os saberes relacionados à criação de soluções para garantir a própria sobrevivência e a de suas famílias continuam vivos. É a vizinha que lava roupa pra fora, a tia que vende bolo de pote no busão e no trabalho, a mãe que faz barras de calça e pequenos ajustes em roupas enquanto fica de olho nas crianças.
Seis a cada 10 desses pequenos negócios ainda funcionam na informalidade, de acordo com o Sebrae — sem registro, CNPJ ou acesso a direitos trabalhistas.
No entanto, uma pesquisa realizada pela organização comprova que, para muitos, a formalização como Microempreendedor Individual (MEI) é motivada pela necessidade de sobrevivência e também nos ajuda a entender as motivações daqueles que permanecem na informalidade. Entre os dados levantados, estão:
O Microempreendedor Individual (MEI) é um modelo de negócio criado em 2008 com o objetivo de tirar da informalidade profissionais autônomos e pequenos empreendedores. Ao se tornar MEI, o empreendedor passa a ter um CNPJ próprio, pode emitir notas fiscais e tem acesso aos benefícios da Previdência Social (como licença maternidade, aposentadoria, dentre outros), além da possibilidade de contratação de um funcionário.
76% têm na atividade como MEI a sua única fonte de renda, ou seja, cerca de 4,6 milhões de pessoas dependem exclusivamente do MEI;
28% dos MEIs sustentam exclusivamente toda a sua família, o que representa cerca de 1,7 milhão de famílias e 5,4 milhões de pessoas;
33% dos MEIs estavam na informalidade antes da formalização, ou seja, cerca de 2 milhões de pessoas foram retiradas da informalidade pelo MEI;
Praticamente metade desses empreendedores (48%) atuou sem CNPJ por “10 ou mais anos”;
Mais de 2 em cada 5 entrevistados (40%) têm a própria residência como o respectivo local de trabalho;
A “necessidade de uma fonte de renda” em 2019 (33%), a exemplo de 2017 (33%), também se destaca fortemente de todas as demais justificativas para empreender;
61% buscaram a formalização pelos benefícios do registro, como emissão de nota fiscal e acesso a melhores condições de compra.
No Brasil, existem cerca de 10,1 milhões de negócios fundados e chefiados por mulheres. Dentre elas, 52% são mães. A doutora em administração Luciana Padovez Cualheta aponta que isso não acontece por acaso: metade das mulheres que têm filhos são demitidas em até dois anos após o retorno da licença maternidade e esse número se mantém até 47 após o fim da licença.
Uma pesquisa da Rede da Mulher Empreendedora, em parceria com o Instituto Locomotiva, também revela que 77% das mulheres começaram a empreender depois da maternidade. No geral, 70% das empreendedoras são mães e a maioria iniciou seus negócios por necessidade. Resultado que se destaca entre as mulheres negras, de menor renda e de escolaridade mais baixa.
Apesar da presença expressiva das mulheres no empreendedorismo, um levantamento do Serasa em parceria com a Opinion Box mostrou que dois terços das empreendedoras brasileiras (68%) já tiveram um pedido de crédito negado – ou seja, procuraram um banco ou instituição financeira para solicitar um empréstimo ou financiamento e não conseguiram a aprovação. Para 35% das empreendedoras, essa dificuldade foi a principal barreira para os seus negócios.
E mesmo quando conseguem acessar crédito, as mulheres pagam mais caro por ele. Um estudo do Sebrae com dados do Banco Central mostrou que, entre os pequenos negócios, a taxa média de juros anual foi de 36,8% para os homens. Já para as mulheres, chegou a 40,6%.
Diante de tantas barreiras, de onde as mulheres das periferias tiram grana para iniciar seus empreendimentos? Com a palavra, as empreendedoras:
Me chamo Erinalda Conceição Silva, tenho 40 anos e sou mãe gemelar de duas meninas, a Ruth e a Ester. Mãe solo, autista e empreendedora, atuo como massoterapeuta há 16 anos.
O que me fez empreender foram as minhas filhas, minhas gêmeas.
Há 10 anos, quando tive as duas, fiquei em casa cuidando delas até completarem dois anos de idade, porque tinham um problema de refluxo muito grave. Depois que começaram a ir para a creche, passei a atender a domicílio. Peguei um pote de creme e fui atender. Mas percebi que, trabalhando dessa forma, eu ia ficar muito longe das crianças, e os horários não estavam batendo.
Foi aí que tive a ideia de atender na sala da minha casa, já que eu já tinha uma maca. Comecei a atender em casa, na comunidade de Paraisópolis, na Zona Sul de São Paulo (SP). Eu morava em uma casa de três cômodos e, nos dias em que as crianças estavam em casa, meu ex-marido saía com elas para que eu pudesse fazer os atendimentos. Só que a quantidade de clientes começou a crescer.
Acabei saindo de casa e fiz uma parceria com o Guilherme Junqueira, do Estúdio Gil Gipson. Ele montou uma sala para mim, me cedeu esse espaço, e comecei a atender lá. Mas, como trabalho com massagem, precisava de um lugar mais tranquilo. Então fui alugar meu próprio espaço. Aluguei um local onde estou até hoje — vai fazer quatro anos em julho. Minha empresa, a ERY Massoterapia, foi aberta em 2018.
Nunca fiz empréstimo nem financiamento no banco. Comecei com o que eu tinha e fui reinvestindo o dinheiro em produtos.
De acordo com a demanda, fui comprando o que precisava, sempre à vista. Uso cartão de crédito só de vez em quando, para comprar produtos, mas já tive problemas com isso.
Os produtos acabavam, e eu ainda estava pagando a terceira parcela do cartão. Vi que não estava funcionando, quitei todos os cartões e passei a comprar tudo à vista.
Guardo o dinheiro e compro, para não cair numa bola de neve. Para mim, funcionou assim.
Já tive muita dificuldade por não ter cliente, mas ser autista foi um ponto positivo. A gente tem hiperfoco — quando você determina o que quer, não desiste fácil.
Sei que todo mundo enfrenta dificuldade, principalmente no comércio. Tem mês que é difícil, tem mês que é bom. O importante é que, no mês em que você ganha mais, precisa ter um fundo de caixa, uma reserva. Porque, no mês seguinte, se não for tão bom, você consegue cobrir.
Essa é a dica que funcionou para mim: guardar no mês bom para segurar o mês ruim.
Acredito que o crédito seria muito útil para mulheres que querem começar e não têm por onde. Mas não basta só o crédito: é essencial fazer um curso de administração e de educação financeira.
A maioria das pessoas que abre um comércio não tem educação financeira e acaba achando que tudo o que entra é lucro pessoal. Mas não é. Só 30% daquilo que você lucra é realmente o seu salário. Se não fizer assim, acaba faltando dinheiro, e muita gente não consegue seguir adiante porque não tem essa organização.
É comum pensar: “Vou vender Natura, vou vender alguma coisa…”, mas é muito importante entender que, se gastar o dinheiro achando que é tudo lucro, depois falta para repor estoque, para manter o negócio funcionando.
Com educação financeira, acredito que essas mulheres terão muito mais chance de sucesso no comércio ou no trabalho que elas escolherem.
GALERIA 1/6
Meu nome é Ágata Cabral, sou de Fortaleza (CE), tenho 24 anos e sou formada em Estética e Cosmética. A Pink – Headshop & Sexcare [loja online que oferece produtos como seda, piteira, dichavador, blunt e lubrificante canábico] nasceu num momento em que eu já tinha outra marca — também dentro do nicho canábico e de tabacaria. Precisei desfazer essa sociedade por questões pessoais e, quando isso aconteceu, tive que agir sozinha.
Sempre gostei muito da cor rosa e já queria, há algum tempo, me comunicar com mulheres por meio da minha marca. Isso era algo que eu mesma sentia falta. Então, comecei a direcionar minha comunicação para esse público. Foi assim que a Pink nasceu.
Todo o branding, toda a identidade visual — tudo foi pensado com esse propósito. Isso não quer dizer que eu não tenha clientes homens, mas o foco está no bem-estar, na saúde da mulher, em temas como maconha e menstruação. Todas essas pautas fazem parte do que construo com a Pink e essa proposta também se conecta muito com a estética.
Empreendo há bastante tempo, entre erros e acertos, mas sempre me mantendo nesse caminho. Sempre quis unir tudo isso, e vi na Pink um grande potencial para fazer acontecer. Não é fácil, pelo contrário, é bem difícil. Mas, apesar dos percalços, consegui construir uma comunidade muito forte — isso é fato.
Como eu já tinha outra marca, que era minha e do meu irmão mais novo, meu pai entrou como investidor inicial. Quando desfizemos a sociedade, separamos tudo, e eu passei a investir em outras frentes: identidade visual, novos produtos, reposicionamento… Comecei também a explorar outros tipos de produtos.
Mas, ao longo desse caminho, tive que me virar muito sozinha. Muito mesmo. Inclusive, esse foi um dos motivos pelos quais quase desisti.
Eu tinha muito forte dentro de mim essa ideia de: “é o meu sonho, se eu parar, vai custar o meu sonho”. Mas eu também precisava sobreviver — e não estava dando. Faltava organização, minha saúde mental ficou abalada, várias coisas aconteceram. Dá até falta de ar só de lembrar.
Nunca tentei acessar muitos tipos de financiamento. Minto: tentei um financiamento municipal — que, na verdade, é um empréstimo — chamado Mulheres Guerreiras. Você precisava fazer um curso e, ao final, podia solicitar um empréstimo de R$ 3.000, com um prazo determinado para pagar.
Acabei não concluindo o processo para solicitar o valor, embora tenha feito os cursos. Já fiz empréstimo no famoso estilo “CrediAmigo” [empréstimo informal com amigos], por influência familiar — precisavam de alguém para fechar um grupo, e eu entrei. Também já fiz rifa, pré-venda… Mas a pré-venda foi mais uma estratégia de marca do que uma ação voltada à parte financeira.
Sempre digo que a Pink se transforma junto comigo. Ela é muito do que eu sou. Quando a Ágatha mudou, a Pink também se transformou. Precisei dar um tempo na marca. Comecei a morar sozinha, aconteceram várias coisas, e eu precisava me sustentar. Foram muitos percalços.
Então, desenvolvi um clube canábico só para mulheres. Hoje, somos mais de 100 meninas. No Instagram, temos mais de 200 seguidoras, e também temos um grupo no WhatsApp. Fazemos encontros mensais. Foi a forma que encontrei de manter a marca viva: nos tornamos um clube, uma rede. Hoje, estou me preparando para voltar, com passos bem pequenos, mas estou.
Acho que essa foi a maneira que encontrei de não desistir. Ainda é o meu sonho. Ainda é o que eu almejo. Mas minhas ideias mudaram, muita coisa mudou dentro de mim. Acho que ainda falta oportunidade. É meio paradoxal, mas falta um olhar mais atento para isso. Falta também muita informação.
Eu venho da área da estética, e a gente escuta muito que quem abre estúdio, em algum momento, quebra — justamente por falta de educação financeira.
Acho que a empreendedora, especialmente a mulher, carece muito disso. São muitas camadas. E talvez a informação, esse lugar da educação financeira, fosse um grande facilitador. É uma questão cultural.
Hoje, a Pink está voltando com duas investidoras. Ainda não anunciei isso oficialmente, mas é um momento novo. Elas se chamam de “investidoras-anjo”. São mulheres que eram minhas clientes, viraram minhas amigas, e hoje investem na marca porque acreditam no que ela representa e comunica.
No mais, fui me virando como deu, como as coisas podiam acontecer. Por muito tempo — e talvez até agora — estive nesse lugar de negacionismo: “não vai dar certo”, “não tem espaço pra mim”, “é difícil demais”, “o mundo tá acabando”… Mas estou, aos pouquinhos, saindo disso. É dificílimo, mas estou saindo.
E acho que isso também é uma forma de resistência, porque tiram da gente a esperança. Perdi essa esperança de várias formas, mas sigo querendo muito.
GALERIA 1/4
Me chamo Ane Caroline Santana, tenho 37 anos, sou mãe do Álvaro, que hoje tem 18, e nasci em Salvador (BA). Moro na Ilha de Itaparica (BA) desde a pandemia — vim pra passar 15 dias e acabei ficando.
Aqui na ilha morreu a Carol de toda uma vida e nasceu a Tia Carol Produtos Artesanais. Esse lugar foi a minha cura, a minha empresa, o meu bebê arco-íris.
Saí de relações tóxicas, abandonei o vício em cocaína e decidi viver uma vida que faz sentido pra mim. Comecei com molhos de pimenta cremosos.
Quando a pandemia acabou, fui trabalhar num call center em Salvador. A ideia era juntar dinheiro para investir no meu negócio.
Atravessava o mar todos os dias de ferry boat, até que, com quatro meses nesse corre, fui atropelada assim que cheguei em Salvador. Foi um terror. Por conta de um plano de saúde horrível (Hapvida), ainda voltei a trabalhar, porque o médico disse que eu só queria atestado.
Depois de vários laudos e muitas dores, fui afastada da empresa sem nem saber o que eu tinha. Levei uns três meses pra descobrir que estava com o ligamento do joelho rompido e que precisaria de cirurgia. Durante todo esse tempo, fiquei sem nenhum auxílio do governo, porque não tinha laudo para apresentar ao INSS e dar entrada no benefício.
Foi aí que comecei a vender abarás temperados — uma variação do quitute da baiana de tabuleiro, um bolinho de feijão enrolado na folha de bananeira e cozido no vapor. Vendi na frente de casa e, no verão, ia pra praia, mesmo com o joelho ruim. Levei mais de um ano pra conseguir fazer a cirurgia. Fiquei dois anos afastada, e nesse período só recebi seis meses de benefício do INSS.
Meu filho tinha 14 anos na época e, como mãe solo, tive que me virar do jeito que dava.
Hoje, já participei de vários programas voltados para empreendedores. Um deles foi o prêmio da Coca-Cola “Dá um gás no seu negócio“, onde fui empreendedora destaque em São Paulo. Participei também da Expo Favela 2024, em Salvador, e de muitos outros programas locais.
Compartilho toda a minha trajetória no Instagram, e as minhas habilidades com produção de conteúdo têm chamado a atenção de outras empresas. Participei do reality show “Garotas do Tesouro“, transmitido pela Record News, estou fazendo curso técnico em audiovisual e fui selecionada para uma formação do AfroRec.
Os produtos da Tia Carol estão sendo vendidos apenas por encomenda. Tenho um programa de revenda dos molhos cremosos e, nessa jornada, nasceram também os temperos naturais, geleias de pimenta e conservas em azeite doce. Estou reformando a minha cozinha e compartilhando essa experiência — eu mesma estou colocando a mão na massa.
Precisei me virar sozinha. Separei um dinheiro que eu tinha pra fazer meu primeiro investimento e, nesse início, vivi uma história linda: fui comprar o material pra começar a vender os abarás e a conta deu mais ou menos 30 reais. Meu banco estava com instabilidade e o dono da barraca, sem nem me conhecer, confiou em mim e deixou eu levar o material, para mandar o Pix depois que o sistema voltasse. Hoje ele é meu fornecedor principal. Naquele momento, família e “amigos” sumiram. Nem sequer compraram comigo. Os clientes que tenho conquistei com atendimento e qualidade.
Já tive acesso a crédito, sim, mas nunca muito dinheiro. Empréstimos grandes eu nunca nem tentei — primeiro porque achava que não ia ser aprovada, segundo porque corro de juros.
Só faria se realmente valesse a pena. Já usei empréstimos formais e informais, de valores baixos, e também já recorri a rifas. Já fiz pré-venda, mas mais como estratégia de marca do que por questão financeira.
Costumo buscar editais de incentivo para empreendedores. O prêmio da Coca-Cola, por exemplo, me deu um valor para investir no negócio. Também estou partindo para outras áreas: o audiovisual é um exemplo. Tenho ajudado empresas na criação de conteúdo e faço parte da equipe de comunicação do Fórum de Mulheres do Hip Hop, o que tem me rendido boas experiências e renda também.
Uma das vantagens dos meus produtos é que não exigem altos investimentos pra produção. Já quebrei algumas vezes, mas sempre consegui voltar. A burocracia é um grande obstáculo. Nunca me atrevi a solicitar um empréstimo alto, justamente porque sei das dificuldades. Muitas vezes a gente ganha dinheiro, mas não consegue comprovar renda.
Fiadores são difíceis de encontrar, e as taxas de juros são tão altas que o crédito acaba mais atrapalhando do que ajudando.
GALERIA 1/6
Eu sou a Jéssica Cardoso. Sou mãe da Lari e da Zahara, mulher preta, quilombola, moradora do Quilombo da Aldeia, em Garopaba (SC), e graduada em Serviço Social e Letras-Libras. Sou fundadora e CEO da Interprêta, uma empresa de tradução e interpretação em Libras, com um time de mulheres pretas. Também realizamos consultoria em acessibilidade comunicacional.
Eu não precisei de um investimento alto para iniciar a Interprêta, porque somos um serviço. Dentro da realidade e das possibilidades que eu tinha, fui estruturando a empresa. Não contei com auxílio de familiares, amigos ou parceiros — consegui me virar sozinha justamente por isso: porque não precisava montar algo físico ou material logo de início.
Usei as tecnologias que eu tinha e a minha comunicação para começar a alcançar o que eu queria: oferecer e vender o serviço da Interprêta. Nunca acessei nenhum tipo de financiamento ou crédito bancário, nem utilizei empréstimos informais ou vendas antecipadas. A única vez que tentei algo parecido foi quando organizei um financiamento coletivo para montar o estúdio da Interprêta. Mas a adesão foi bem baixa, e eu não consegui atingir o objetivo, que nem era tão alto — era de R$10 mil.
Acho que isso diz muito sobre como são recebidas as iniciativas feitas por mulheres pretas. Não é que a gente não tenha credibilidade, mas as pessoas não costumam depositar confiança nas ações que vêm de nós. Isso acaba dificultando o nosso avanço, mesmo quando a proposta é sólida e bem estruturada.
Ainda assim, o que não me faz desistir é saber que posso criar as minhas próprias possibilidades. Posso construir narrativas para mim, para outras mulheres pretas, e também ajudar a construir uma sociedade melhor para as minhas filhas. É essa persistência que me move. Eu sei o que a gente faz, o porquê a gente faz e a potência que a gente carrega. Isso me fortalece.
Sempre que olho para trás e vejo os resultados desde o começo — quando a gente não tinha nada — me sinto ainda mais firme.
Eu comecei com um celular e um apoio de madeira para segurá-lo. Era só isso.
E hoje a gente gera impacto, alcança muitas mulheres, participa de grandes eventos, aparece em grandes plataformas. A gente tem reconhecimento. Isso me dá força para continuar.
As dificuldades financeiras existem o tempo todo. Tem cliente que demora muito para pagar, o que bagunça nosso fluxo de caixa. Tem proposta que não é aceita, e a gente precisa se adaptar. O acesso à capital ainda é muito limitado para quem vem de onde eu venho.
Gostaria que existissem mais possibilidades reais para mulheres periféricas, pretas, quilombolas. Porque, se a gente parar para pensar, as formas de crédito que existem hoje nunca foram pensadas para nós. Sempre foram criadas barreiras para isso.
A sensação é de que o sistema de crédito, do jeito que está, existe para nos impedir de avançar, para fazer a gente desistir.
É preciso criar caminhos a partir de nós, com o nosso olhar. Existem algumas alternativas interessantes, como a Conta Black [que ajuda as pessoas a terem acesso a serviços financeiros, enfrentando o problema de quem vive sem banco e por isso fica de fora da economia] e algumas instituições que têm começado a olhar para isso, mas ainda estamos longe de alcançar, de fato, as mulheres que mais precisam. Nossas realidades são muito diferentes. Nosso acesso ao crédito, nosso cotidiano financeiro, têm outra lógica.
Quando olho para a minha geração, para a minha família, para a minha ancestralidade, me pergunto: quem teve acesso ao que eu tenho hoje? Ninguém.
Eu sou a primeira da minha família a empreender. Olha quanto tempo levou para que a gente chegasse aqui! Porque, durante muito tempo, esse acesso nos foi negado.
GALERIA 1/4