Nascida em Belo Horizonte, a cientista social tem uma longa história no Movimento Negro de Minas Gerais e na política institucional
Texto: Semayat Oliveira
Edição: Mayara Penina
Fotografia: Letícia Souza
Atualizado em 29|02|2024
Nascida em Belo Horizonte (MG), seu nome de batismo é Flávia dos Santos. Entretanto, é conhecida no movimento negro e político como Flávia Tambor. O sobrenome foi escolhido por ela quando mais jovem. “Tem tudo a ver comigo, com a minha energia”, relata. Atual chefe de gabinete no Ministério da Igualdade Racial, liderado pela ministra Anielle Franco, sua trajetória política tem sido persistente e ressonante, assim como os toques de um tambor.
Flávia é graduada em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-MG), e atuou como assessora política na Secretária de Estado da Educação de Minas Gerais durante a gestão de Macaé Evaristo, entre 2015 e 2018. “Trabalhei na superintendência de modalidades e temáticas especiais de ensino. Coordenei a educação quilombola junto com outra pessoa. Nessa mesma época, Célia Xakriabá [atual deputada federal] coordenou a educação indígena”.
Além de sua atuação na política institucional, Flávia também foi conselheira do movimento da sociedade civil Mulheres Negras Decidem
©Letícia Souza
Pouco tempo depois, em 2016, durante a preparação para as eleições municipais daquele ano, Flávia mergulhou na campanha para a vereança da então candidata Áurea Carolina. “Nós já tínhamos um histórico. Participamos de um grupo que se chamava Atitudes de Mulher. Eu com a dança e outras com o rap, cantando”. Quando soube das intenções de Áurea, surgiu uma intensa vontade em colaborar. “Até então, só tinha ajudado a eleger homens”, lembra.
Essa fala se referia a uma realidade latente: embora já tivesse apoiado outras candidatas, nenhuma havia vencido. A partir de então, ao final do seu expediente na secretaria, participava das atividades previstas na agenda da campanha, além de cuidar da organização.
“Às vezes, Áurea me levava para casa à meia noite, super cansada. E não importa se a reunião tinha 10 ou apenas duas pessoas, ela falava com a mesma energia”.
Foi um período trabalhoso, mas recompensador. Existia uma expectativa genuína de vitória. “Flavinha, nós vamos conseguir!”, declarava a candidata a vereadora. “E eu respondia que sim, íamos vencer!”. Tamanha dedicação rendeu frutos, e Áurea Carolina foi eleita vereadora com a maior votação da Câmara Municipal de Belo Horizonte, começando seu mandato em 2017.
“Às vezes, Áurea me levava para casa à meia noite, super cansada”, lembra Flávia sobre o período de campanha de Áurea a vereadora
“Depois da vitória, um dia ela me disse: ‘quero você nesse lugar político, acompanhando a minha agenda, como fez na campanha’. Neste momento, Flávia Tambor decide deixar seu cargo no governo do estado e assumir a posição de secretaria-executiva do mandato, permanecendo nesta função até 2018, quando um novo desafio surgiu: a empreitada para eleger Áurea como deputada federal.
Mais uma vez, o resultado foi positivo. Eleita com 162.740 de votos, tornou-se a mulher com maior número de votos para o cargo em Minas Gerais. Dessa vez, Flávia achou que, mesmo se ocupasse alguma função no mandato, permaneceria em Belo Horizonte, mas se enganou. A parlamentar virou para sua parceira fiel e disse: “você sabe que vai comigo, né?”.
Foi assim que o Tambor do seu nome sobrenome chegou à Brasília, como coordenadora geral e chefe de gabinete. Seu corpo e posição política passaram a confrontar o cenário habitual do Congresso Nacional, ainda predominantemente composto por uma maioria de homens brancos.
Além de sua atuação na política institucional, Flávia também foi conselheira do movimento da sociedade civil Mulheres Negras Decidem, organização fundamental na conscientização sobre a importância das mulheres negras na política. Em diferentes esferas, sua trajetória tem sido marcada por um comprometimento com um projeto de país que prioriza investimentos em educação e busca construir um futuro mais igualitário para a população negra, LGBTQIA+ e mulheres.
A entrevista com Flávia começou com esse relato: “sou filha adotiva. Fui achada numa caixinha de sapato em um bairro muito chique de Belo Horizonte”. Gerosina Dos Santos, uma trabalhadora doméstica, foi quem a resgatou, levou para casa e tornou-se sua mãe. Era uma família empobrecida e já com outras crianças.
“Cresci entre o bairro São Marcos, em Belo Horizonte, e o bairro PTB, no município de Betim. Antes era tipo uma roça, não tinha água, não tinha luz. São Marcos é uma periferia, também não tinha esgoto, nem asfalto. Mas se você vai lá agora, é tudo de bacana”.
Ao crescer, um sentimento se tornou predominante no dia a dia da recém chegada à família: rejeição.”Não por parte da minha mãe. Para ela, eu caí do céu, porque ela tinha perdido muitos filhos e separado do marido. Então, para ela eu fui tudo”, conta. O problema maior era o entorno e se intensificava ainda na ausência da mãe, que trabalhava fora a maior parte do tempo.
Flávia segura uma fotografia de sua mãe, Gerosina Dos Santos
©Letícia Souza
Da vizinhança e dos próprios primos, ouvia que ‘tinha sido achada na lata de lixo’; era constantemente isolada, ficando de fora das brincadeiras; foi agredida de diferentes formas, com violência física e sexual. Esse ambiente fez com que ela se tornasse uma criança retraída, a ponto de não conseguir se comunicar. “Fui começar a falar aos oito anos e costumava ficar debaixo da cama”, relembra.
A escola também não era um espaço acolhedor. Como seu processo de adoção demorou muito até se regularizar, Flávia ainda não tinha registro ou qualquer documentação. Portanto, não podia ser matriculada. Ela só frequentava a escola durante os recreios.
“A diretora me deixava entrar para merendar e brincar. Eu tinha um crachás com uma permissão”. A possibilidade de começar os estudos só chegou quando completou 12 anos. E o seu registro, reafirmando a guarda de sua mãe, chegou aos 15.
Antes disso, aos 13 anos, Flávia decidiu começar a trabalhar e buscar formas para sair de casa. “Disse para a minha mãe que, se ela não arrumasse um emprego para mim, eu iria fugir”.
O amor de Gerosina era algo que, desde menina, não contestava. Entretanto, a pressão ao qual era submetida a deixava sem saída, o que provocava um sentimento de revolta. “Ela trabalhava numa casa e a filha da dona teve um filho. Então, fui ser babá da filha da dona. Para mim foi um alívio sair de casa”, confessa.
“Como eu não era da família deles [de sangue], todos se sentiam no direito de abusar de mim”.
Em um dos finais de semana em que visitou a mãe, encontrou uma senhora negra em um bar. A mulher se aproximou e a elogiou, dizendo que era muito bonita. “Nunca tinha ouvido que eu era bonita, ainda me perguntou se não queria desfilar para ela”, diz. A princípio, estranhou o convite.
Ao buscar orientação em casa, ouviu de sua avó que “não existe isso” e que a senhora era uma “preta macumbeira”. “Minha família é evangélica e, embora seja negra, não faz esse debate racial. Sou a mais escura, mas todo mundo é negro. Minha avó e minha mãe vieram da Bahia, elas tinham traços muito indígenas”, explica.
GALERIA 1/3
Pouco tempo depois, a senhora que conheceu no bar a apresentou para o Movimento Negro de Minas Gerais. Mesmo com toda a resistência da mãe, foi até a casa dela e descobriu que era costureira e fazia roupas afros. “Com ela, conheci outras pessoas, como o Mestre João, professor de capoeira angola e dança afro, uma pessoa muito respeitada em Belo Horizonte”.
Ainda na adolescência, começou a desfilar, passou a fazer penteados afros e a dançar. “Foi maravilhoso. Conheci o Movimento Negro Unificado, a Pastoral do Negro e fiz parte da pastoral por mais de 30 anos. Conheci lideranças e ativistas como Cleide Hilda e Marcos Cardoso”.
A partir desses encontros, nasceu Flávia Tambor, com outras referências culturais e religiosas, já que também se aproximou do Candomblé. “Eu tinha um Djembe [um tipo de tambor] na Pastoral e fazia parte de um coletivo de dança e arte negra. Como havia duas Flávias no grupo, o professor disse que precisávamos de nomes artísticos. Eu logo gritei: Flávia Tambor! E ficou, por meu amor ao Tambor”.
Sempre a mais nova da turma e ainda trabalhando como auxiliar de limpeza em empresas, babá ou diarista, começou a ouvir aqui e acolá que seria importante ela entrar em uma universidade. “Então eu falo, sou cria do movimento negro e do movimento político de Minas Gerais. Foi como fazer uma transição de família mesmo”, diz.
Sua mãe, Gerosina, faleceu quando ela tinha 20 anos, antes de ver a filha entrar na universidade, por volta dos 30 anos.
“O movimento negro salvou minha autoestima. Sempre me falavam que eu era uma pessoa bonita, apontavam os cursos que eu poderia fazer. Sou filha do movimento negro. Até hoje, todo mundo tem esse cuidado comigo. Tem uma cumplicidade, um carinho. Sinto que eles estão muito felizes de ver onde cheguei”.
Tornou-se cientista social, por volta dos 35. Sua jornada universitária não foi fácil. Ainda trabalhando como diarista, enfrentou dificuldades financeiras, fome e precisou contar com uma rede de apoio. “Eu morava em Contagem e minha faculdade era em Belo Horizonte. Eram duas horas. Pegava até três transportes”, conta.
Em seu trabalho de conclusão de curso, escreveu sobre a importância das políticas públicas para a comunidade LGBTQIA+. Um dos desafios aqui foi enfrentar a escrita, dificuldade que iniciou com os traumas na infância e o tempo que demorou até entrar na escola. Durante o processo, contou com o apoio de amigas e amigos. “Foram várias mãos e eu me formei. No dia, eu chorei”.
“Sou muito esperançosa. Acordo todos os dias e falo: mais um dia de luta!”, diz Flávia
©Divulgação
Após a faculdade, trabalhou como educadora e coordenadora pedagógica em um projeto na Prefeitura de Ibirité, pequena cidade de Minas Gerais. Foi assim que começou sua trajetória até o cargo que ocupa hoje. Em todos esses espaços, em níveis mais ou menos elevados, precisou enfrentar o racismo e, por muitas vezes, se sentiu invisível.
Quando passou a conviver com a realidade de Brasília, sendo chefe de gabinete da então deputada federal Áurea Carolina, essa sensação se repetiu inúmeras vezes. “Existe um cara e crachá. Mas como eles já estão acostumados com os homens brancos, sempre somos vistas como diferentes. É muito desrespeito, tem muito preconceito”, afirma. Flávia já passou por uma experiência no Congresso Nacional em que pediram que ela servisse um café, por exemplo.
“Também ouvi coisas do tipo: ‘nossa, achei que você fosse segurança da Áurea”. A áurea cansava de me apresentar como chefe de gabinete. Falava duas, três vezes: ‘essa é minha chefe de gabinete’. Aí me olhavam e ignoravam”.
Mesmo sabendo de que essa ainda é uma realidade no Brasil, Flávia acredita que há avanços positivos. No mesmo período em que Áurea conquistou o mandato, outras candidatas deram o mesmo passo, como Talíria Petrone, reeleita em 2022. “Demos um pontapé. Mostramos que é possível, sim!”, reforça.
Para ela, o processo de mandato coletivo, que também experienciou ao lado de Áurea, durante a vereança em Belo Horizonte, foi muito positivo. “Se não dá para ir sozinha, então vamos coletivamente. Vamos cuidar um do outro. Depois do nosso mandato, nasceram outros mandatos coletivos”. De alguma forma, esse espírito de coletividade também aconteceu em Brasília.
“Foi afeto mesmo, no sentido de não nos deixar sozinhos. Isso foi muito bacana, muito forte, muito potente”.
Flávia Tambor, além de toda essa bagagem, carrega consigo muita esperança, principalmente após as eleições de 2022, com a vitória do projeto político apresentado pelo atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). “Sou muito esperançosa. Acordo todos os dias e falo: mais um dia de luta!”.
Ela acredita que o fato de ser uma mulher negra não a deixa ser ou agir de forma diferente. “Não tem como fugir disso. Então é luta todos os dias. É andar de cabeça erguida, olhando de um lado para o outro e chamando as pessoas. Vamos juntos!
Esta reportagem integra a série “Feminismos”, uma parceria do Nós com a Fundação Rosa Luxemburgo. A série conta histórias de mulheres que têm a política como propósito de vida.
Atualização: em janeiro de 2024, Flávia Tambor assumiu a coordenação de mandato da deputada estadual Bella Gonçalves.