Reportagem aborda trajetória do movimento de mulheres negras em torno de políticas reparatórias e construção da Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver
Reportagem: Beatriz de Oliveira
Edição: Bianca Pedrina
Artes: Raíssa Ribeiro
Atualizado em 30|10|2025
Em 25 de novembro deste ano, mulheres negras de todo Brasil pretendem se reunir em Brasília para reivindicar a construção de uma nova sociedade que as respeite e as contemple plenamente. Trata-se da Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver.
O ato acontece dez anos depois da Marcha Nacional das Mulheres Negras contra o Racismo, a Violência e pelo Bem Viver, que reuniu cerca de 50 mil ativistas na capital do país. Em 2025, o conceito de bem viver permanece e ganha um novo elemento: o da reparação. Mas o que significa marchar por reparação?
O conceito de bem viver é oriundo de culturas indígenas e vislumbra novas formas de viver em sociedade, centradas na coletividade, harmonia com a natureza e bem estar social, contrapondo-se ao neoliberalismo.
Para responder a essa pergunta, é preciso voltar a uma ferida ainda aberta da história brasileira. Por 388 anos, esse território tratou homens e mulheres negras como mercadoria. O Brasil foi o país que mais recebeu escravizados nas Américas e o último a abolir a escravidão.
Quando a suposta “liberdade” finalmente chegou, em 13 de maio de 1888, ela não foi acompanhada de medidas que permitissem que as pessoas negras vivessem o exercício pleno da cidadania, como acesso à indenização financeira, terra e educação. Isso provocou feridas profundas que persistem ainda hoje, e que afetam principalmente nós, mulheres negras.
“Apesar de termos de certa maneira evoluído em condições socioeconômicas e financeiras, as mulheres negras são o grupo mais pobre entre os pobres”, afirma Lúcia Xavier, assistente social, ativista e cofundadora da ONG Criola.
©Colagem digital por Raíssa Ribeiro. Imagens originais: Foto 1 | Lúcia Xavier (Pedro Nogueira/ONU Mulheres); Foto 2 | Manifestação do Movimento Negro Unificado no centro de São Paulo, 20.11.1979 (Ademir Barbosa/Folhapress); Foto 3 | Lúcia Xavier (Cristine Rochol/PMPA)
Um estudo do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) aponta que mulheres negras são as menos beneficiadas por avanços sociais, mesmo sendo o maior grupo populacional do país (28,5%).
Mesmo com avanços em políticas públicas, como cotas raciais nas universidades e política de saúde da população negra, a igualdade racial ainda é um horizonte distante. Por isso, há décadas, o movimento de mulheres negras vem pautando a necessidade de reparação. Elas marcham continuamente por um novo pacto civilizatório, por uma nova nação que as contemple e pela redistribuição de recursos e reconhecimento dos danos causados pela escravidão.
Nesta reportagem, vamos mergulhar na trajetória do movimento de mulheres negras em torno de políticas reparatórias e as várias facetas deste tema.
Um marco na luta do movimento negro por reparação é a III Conferência Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada em setembro de 2001, em Durban, na África do Sul. O evento, conhecido como Conferência de Durban, reuniu mais de 16 mil participantes de 173 países.
Segundo Luciana Brito, historiadora e professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), o encontro e os eventos de preparação para ele reuniram líderes de Estado, movimentos sociais, intelectuais e pesquisadores do campo das políticas públicas para discutir os impactos de quase 400 anos de escravidão e tráfico transatlântico sobre a população negra na diáspora.
“Ali, esses grupos de diversos países discutiram políticas e práticas compensatórias que deveriam ser implementadas pelas nações às populações negras, diante dos impactos ainda sentidos por esses anos de cativeiro e tráfico transatlântico. Esses impactos da escravidão produziram violências,desigualdade e noções hierarquizadas de direitos”, afirma Luciana.
©Colagem digital por Raíssa Ribeiro. Imagens originais: Foto 1 | Luciana Brito (Divulgação); Foto 2 | Conferência Durban (Evan Schneider); Foto 3 | Manifestante do MNU em ato no centro de São Paulo (Jesus Carlos); Foto 4 | “Vida Negra Importa” (Divulgação); Foto 5 | Mulheres Negras: Guerreira Brasileira, MNU – Bahia”, 1989 (Jonatas Conceição/Arquivo Fotográfico Zumvi),
A discussão foi pautada a partir de dois aspectos: a reparação financeira e a reparação por meio de políticas públicas. A conferência resultou na Declaração e Programa de Ação de Durban (DDPA), cujo um dos artigos estabelece “o desenvolvimento de programas e projetos específicos para as populações afrodescendentes que promovam o desenvolvimento integral nos próximos 30 anos, a partir do ano 2001, como forma de reparação das consequências do racismo, da discriminação e da desigualdade racial”.
“É importante dizer que, enquanto se discutia reparação em Durban, o Brasil teve um papel fundamental na liderança dos debates sobre raça e racismo, e isso se deve ao movimento negro brasileiro”, pontua a professora.
Para Lúcia Xavier, a reparação como estratégia de luta política foi desenhada a partir da Conferência de Durban. Durante o encontro, “o tema de crime de lesa humanidade para o para o tráfico transatlântico foi forte, e ficou bastante consistente a ideia de que era possível reparar esses crimes”.
Mas, segundo as entrevistadas, o movimento negro reinvidica a reparação desde a década de 1970. Luciana explica que, a partir desse período, mulheres negras ativistas estavam presentes tanto em movimentos de esquerda, a fim de destacar questão racial como ponto definidor das relações de classe, quando no movimento feminista, mostrando a questão racial no debate de gênero.
A partir disso, reivindicaram o acesso à creche, à saúde e à educação e aos direitos trabalhistas e reprodutivos. “É muito bonito ver como ali elas começam a elaborar algo completamente inovador no Brasil, que é construir uma leitura desses direitos, inventando também em políticas públicas. Porque não foi nenhum governo que produziu isso, foram mulheres negras que construíram essa demanda a partir da ótica da reparação”, afirma.
A reparação pautada pelo movimento de mulheres negras tem várias facetas. Passa pelo âmbito financeiro, simbólico, territorial e de reconhecimento dos impactos da escravidão.
Lúcia Xavier explica que é necessário reparar porque as políticas públicas já implementadas no país, apesar dos avanços, não possibilitaram a mobilidade socioeconômica da população negra de forma geral. Parte da solução, portanto, é distribuir a riqueza e redistribuir os recursos concentrados nas mãos de poucos.
“Reparar os danos não significa só pagar, significa reconhecer, tornar público que essa é uma ideologia que não pode mais ter continuidade na sociedade brasileira. Significa ter reconhecimento dos danos causados e, a partir daí, pensar em políticas e processos que possam impedir que esse dano prossiga”, pontua.
Ela acrescenta que o tema também envolve diagnosticar onde existe maior vulnerabilidade social e institucional e definir políticas que revertam isso. “Reparar significa dar condições para que esse grupo avance e saia dessa condição desigual”, resume.
Reparar significa dar condições para que esse grupo avance e saia dessa condição desigual
Lúcia Xavier
Na discussão financeira, a Marcha das Mulheres Negras lançou em outubro de 2025 um manifesto econômico que propõe medidas de reparação econômica e institucional. O documento traz propostas em sete eixos: reparação econômica e institucional; trabalho e renda; política macroeconômica e fiscal; dignidade; investimento público; investimento privado; e economia internacional.
O manifesto aponta que reparação passa por “enfrentar a pilhagem econômica que sustentou a escravidão e o racismo no Brasil” e que isso exige “medidas concretas contra a financeirização da vida e a construção de mecanismos estáveis que blindem nossas conquistas contra retrocessos”.
©Colagem digital por Raíssa Ribeiro. Imagens originais: Foto 1 | Cartilha Manifesto Econômico Marcha das Mulheres Negras (Mônica Almeida); Foto 2 | Mulheres (Mônica Almeida); Foto 3 | Marcha das Mulheres Negras 2015 (Marcello Casal Jr/Agência Brasil)
As reivindicações por reparação já trouxeram algumas reverberações na política institucional. Em novembro de 2024, o Estado brasileiro pediu publicamente desculpas à população negra pela escravização e seus efeitos.
“A União (…) reconhece que é necessário envidar esforços para combater a discriminação racial e promover a emancipação das pessoas negras brasileiras. Por fim, compromete-se a potencializar o foco de criação de políticas públicas com essa finalidade”, dizia o pedido de desculpas lido pelo advogado-geral da União, Jorge Messias.
Além disso, tramita no Congresso Nacional a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 27/2024 que cria um Fundo Nacional de Reparação Econômica e de Promoção da Igualdade Racial (FNREPIR). Em 16 de setembro, foi instalada uma comissão especial da Câmara dos Deputados para analisar a criação do fundo.
O texto prevê que o fundo deverá ser constituído por indenizações a serem cobradas das empresas que lucraram com a escravidão, doações internacionais, dotações orçamentárias da União e outras fontes previstas em Lei.
Mas, mesmo diante desses fatos, o país está disposto a uma reparação profunda como a proposta pelo movimento de mulheres negras?
Questionada sobre isso, Lúcia Xavier pontua que as resistências de políticos e da sociedade à implementação das políticas de cotas nas universidades já demonstram as dificuldades de avançar em políticas reparatórias.
“Há dificuldade de aceitar que somos parte constitutiva dos recursos do país, que alcançamos altos PIBs [Produto Interno Bruto] a partir do nosso trabalho. Mesmo assim, na hora da divisão dos recursos, somos compreendidos como quem só pode receber assistência”, afirma.
Ela exemplifica que no que, no campo da educação, a população negra avançou nas últimas décadas, mas isso “não significa que alcançamos patamares de estabilidade que permitam que tenhamos melhores condições e que garantam essas condições para a próxima geração”.
A ativista destaca ainda os baixos recursos orçamentários destinados a políticas que impactam a população negra. “A sociedade e o Estado brasileiro ainda têm muita dificuldade de admitir o racismo como parte dessa estrutura e abrir mão daquilo que o racismo produz de bens, serviços, riquezas para outro grupo na sociedade”, diz
A sociedade e o Estado brasileiro ainda têm muita dificuldade de admitir o racismo como parte dessa estrutura e abrir mão daquilo que o racismo produz de bens, serviços, riquezas para outro grupo na sociedade
Lúcia Xavier
Para a historiadora Luciana Brito, a discussão de reparação pode ser ameaçada por distrações criadas em relação a debates sobre quem é negro no Brasil, que, em sua avaliação, é uma pauta já superada pelo movimento negro nas décadas de 70 e 80, ao definir que pretos e pardos são negros. “É muito estranho que justamente hoje, que temos tantos avanços, se questione novamente, com grande investimento da extrema direita brasileira, o que é ser negro no Brasil”, fala.
Olhando para a década que separa a marcha de 2015 do ato que irá acontecer em novembro desse ano, Lúcia Xavier analisa que “essa década é marcada por muitos processos políticos que de certa forma criam um retrocesso contra os avanços dos movimentos negros, de mulheres negras e da própria esquerda brasileira”. Ela acrescenta que o movimento de mulheres tem lutado para ampliar e garantir direitos ao longo do tempo.
Considerando a falta de mudanças profundas para a população negra, sair às ruas em 2025 é também repetir o processo feito em 2015, “afirmando o nosso papel de sujeito político na sociedade. Queremos atuar em prol dos nossos direitos, e mais do que isso, queremos ser reconhecidas como cidadãs”.
©Colagem digital por Raíssa Ribeiro. Imagens originais: Foto 1 | Mulher com criança no colo na Marcha das Mulheres Negras, Brasília/2015 (Janine Moraes); Foto 2 | Marcha das Mulheres Negras, Brasília/2015 (Reprodução via Sinproeste); Foto 3 | Marcha das Mulheres Negras, Brasília/2015 (Reprodução via Sinproeste)
Neste ano, as ativistas constroem uma marcha por reparação e bem viver, conceitos que andam juntos, pois para alcançar o bem viver é preciso reparar os danos.
Na visão de Luciana Brito, com essa marcha o movimento de mulheres negras chega ao “ápice de um amadurecimento político, teórico, efetivo, trabalhando nas comunidades”. Ela relata que, quando se pergunta para mulheres de diferentes movimentos de militância negra, elas têm muito bem definidas as suas demandas de reparação.
Já Lúcia Xavier complementa que, neste ano, o feminismo negro ampliou a sua capacidade de mobilização e espera que a pauta da reparação vire prioridade também de outros movimentos sociais. Para a ativista, o aspecto mais interessante dessa marcha é sua proposição em ser uma mensagem à sociedade, sem predisposição a negociações na política institucional.
“O que a gente viu até agora foi um massacre, genocídio, tanto dos povos indígenas, quanto da população negra. Então, ele [o processo democrático] não pode mais ser consertado, precisa ser destruído para poder se constituir uma outra perspectiva de relação. Se vai ser democracia, vai ter que ser outra. E, se não for ela, tem que ser algo que possa garantir a existência desses grupos, sua participação e a redistribuição de recursos”.