Os sintomas do vício em jogos de azar se assemelham aos de dependência de substância; apostas também afetam a saúde mental
Reportagem: Beatriz de Oliveira
Edição: Karoline Miranda
Atualizado em 11|11|2024
No laudo psiquiátrico de Eva* estão presentes os diagnósticos de transtorno depressivo, déficit de atenção e hiperatividade. Há ainda mais um: transtorno do jogo. A mulher de 55 anos conta que os problemas se desenvolveram após seu contato com jogos de azar online. Além de perdas financeiras, a situação causou desestabilização emocional. “Minha saúde mental está bem abalada, sinto desânimo, tristeza e revolta pelo que me aconteceu”, diz.
Esta é a segunda reportagem da série “Entre bets e perdas: o cenário de jogos de apostas e azar no país”. Neste especial, o Nós, mulheres da periferia investiga a relação de mulheres periféricas com jogos de apostas e de azar online, contextualiza o atual cenário de usuários e gastos nessas plataformas, discute a regulamentação do setor, os impactos na saúde mental e o papel da publicidade nesse meio.
Leia a primeira reportagem da série aqui
Eva começou a jogar em 2023 e, em poucos meses, estava apostando valores cada vez mais altos. Para sustentar o vício, pediu dinheiro emprestado aos filhos, amigos e até agiotas. Durante um ano jogando, o prejuízo chegou a ao menos R$300 mil. Nesse período, tentou parar de jogar algumas vezes. Na última recaída, precisou sair do estado em que morava para morar com a irmã no Rio Grande do Norte, por causa de dívidas com agiotas. “Sai fugida”, diz.
Hoje, Eva faz tratamento com um médico psiquiatra e diz que não sente mais vontade de jogar, mas os traumas continuam. “Me sinto sem rumo, ainda não consegui um trabalho, vivo de favor. Tem dias que eu tô melhor, tem dias que o mundo desaba; eu me lembro do que perdi e do que poderia ter feito, penso em como poderia estar minha vida, as pessoas se afastaram de mim, perdi o meu sustento que era minha lojinha, eu fui derrotada por esses jogos”, desabafa e acrescenta que deseja o perdão dos filhos, que se afastaram dela devido aos problemas que causou com seu vício.
“Tem dias que eu tô melhor, tem dias que o mundo desaba; eu me lembro do que perdi e do que poderia ter feito, penso em como poderia estar minha vida”
Eva
Segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, o transtorno do jogo é classificado como uma dependência comportamental, em razão da semelhança com características das dependências de substâncias.
“Se trata de um comportamento que é recorrente e persistente em apostar, mesmo que isso apresente consequências negativas, como problemas financeiros, familiares e profissionais”, explica Bruna Mayara Lopes, psicóloga do Programa de Transtornos do Impulso (Pro-Amiti), do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, em São Paulo (SP)
Conforme aponta o site do Pro-Amiti, alguns comportamentos típicos do jogador compulsivo são:
Tem necessidade de jogar com quantidades cada vez maiores de dinheiro, a fim de obter a excitação desejada;
Fica agitada ou irritada quando tenta diminuir ou parar de jogar;
Depois de perder dinheiro no jogo, frequentemente volta a jogar para recuperar perdas;
Mente para esconder a extensão do envolvimento com jogos de azar;
Colocou em risco ou perdeu um relacionamento significativo, emprego ou oportunidade de educação ou carreira por causa do jogo.
Outro fator vivenciado por jogadores compulsivos é a abstinência. “Pessoas que têm uma interrupção abrupta do jogo podem apresentar alguns sintomas físicos, como ansiedade, irritabilidade e insônia, tudo por conta da privação do jogo da vida delas”, afirma Bruna.
Em suas tentativas de parar de jogar, Laura* vivenciou alguns sintomas de abstinência. Ela começou a fazer apostas esportivas online em 2019 e, ao longo do tempo, passou a participar também dos jogos de azar, por meio do cassino online. Em 2022, já percebendo os efeitos nocivos do vício, tentou parar de jogar. O momento, que já era difícil, teve um complicador a mais: era ano de Copa do Mundo. A cearense sentia tremedeira, coceira, suava muito e frequentemente sonhava que havia apostado, acordando sem saber se se tratava de um sonho ou não.
Quando começou a fazer apostas esportivas, Laura tratava como uma brincadeira, mas olhando para trás consegue ver que ali já havia começado um problema. Ela já não se contentava em apostar no resultado final de um jogo de futebol, apostando também em cartões vermelhos e amarelos, faltas e escanteios. Com o início da pandemia de Covid-19 e a suspensão das competições esportivas, ela conheceu o cassino online, e a partir daí a compulsão pelo jogo subiu para um novo estágio.
“Enquanto eu esperava de 15 a 45 minutos para o resultado de uma aposta esportiva, no cassino online eu tinha três rodadas em um minuto”
Laura
No auge da compulsão, qualquer situação era motivo para jogar: seja para aliviar uma crise de ansiedade ou para se acalmar após um dia estressante. A funcionária pública que vive em Fortaleza (CE) percebeu que as coisas haviam saído do controle quando precisou fazer empréstimos para pagar itens básicos, como alimentação.
Sobre a sensação que tinha enquanto jogava, ela descreve: “aqueles dados jogando, você esperando o resultado, aquela fração de segundo te dá um pico de adrenalina, o coração bate forte”.
Hoje, Laura toma medicação para ansiedade e participa de reuniões dos Jogadores Anônimos (JA), uma irmandade em que pessoas que desejam parar de jogar compartilham suas experiências e seguem um programa de recuperação composto por 12 passos. A cearense já está no último passo: ajudar outros jogadores compulsivos. Para isso, ela faz o acolhimento e encaminhamento de novos membros das reuniões.
Segundo Elizabeth Carneiro, psicóloga e diretora da Clínica Espaço Clif, o vício em jogos de azar pode desencadear outros transtornos mentais, ao passo que, quem já tem algum outro transtorno pode ser mais vulnerável a desenvolver o vício em jogos. “Uma pessoa que não tem quadro psiquiátrico nenhum, com o agravamento do jogo, certamente terá no mínimo um quadro de depressão ou ansiedade”, afirma.
Para além do transtorno mental em si, os jogos de azar e apostas esportivas online impactam na saúde mental de variadas formas. Segundo pesquisa do Instituto Locomotiva, 51% das pessoas que fazem apostas esportivas online sentem aumento da ansiedade, 27% têm mudanças repentinas de humor e 26% sentem aumento de estresse.
Elizabeth destaca também algumas especificidades das mulheres que desenvolvem transtorno do jogo. “Quando se fala em mulher jogadora, há o perfil de jogar para evitar sentimentos negativos. Logo, é uma pessoa que, em geral, prefere passar horas jogando de pouco em pouco para que o tempo de jogo dela se estenda”.
Já a psicóloga Bruna Mayara Lopes aponta que “geralmente a mulher demora para começar a jogar, mas quando começa, a progressão para a dependência é mais rápida do que a dos homens. Estudos mostram que mulheres podem apresentar alguns sintomas mais intensos do que homens, como por exemplo a fissura, que é a vontade de jogar”.
De acordo com Bruna, o ambulatório Pro-Amiti, que trata do transtorno do jogo, teve um aumento significativo de demanda a partir de 2019, ano seguinte ao da legalização das apostas esportivas online no país. Os pacientes, que eram em sua maioria homens de meia idade, passaram a ser pessoas mais jovens, o que preocupa os profissionais. “Jovens adultos têm nos procurado bastante, o que nos preocupa, por que quanto mais cedo a pessoa começa a jogar, mais difícil é para ela lidar com a dependência”, diz.
As apostas esportivas online começaram a ser regularizadas em 2023, durante o governo Lula. Entre as definições para coibir o vício e endividamento estão o monitoramento do comportamento dos jogadores para antecipar formas de prevenir danos relacionados ao jogo patológico e a proibição de crédito para apostar.
A Lei nº 14.790 estabelece ainda que 1% da tributação obtida com as bets será destinada para “o Ministério da Saúde, para medidas de prevenção, controle e mitigação de danos sociais advindos da prática de jogos, nas áreas da saúde”.
Caso você ou algum conhecido tenha problemas com jogos de azar e apostas online, procure ajuda gratuita em algum desses locais:
Centros de Atenção Psicossocial (CAPS): são lugares onde oferecem serviços de saúde abertos para a comunidade; procure a unidade mais próxima de sua moradia.
Jogadores Anônimos: irmandade que segue um programa de 12 passos para ludopatas, há reuniões online e presenciais em várias cidades; basta entrar em contato com os números disponíveis no site para ser atendido e direcionado para um grupo de reuniões.
Pro-Amiti: ambulatório do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo responsável por desenvolver estudos e tratamentos para quem apresenta transtornos do jogo; atende apenas em São Paulo (SP).
Centro de Valorização da Vida (CVV): oferece apoio emocional pelo telefone 188, chat e e-mail.
* Alteramos os nomes das entrevistadas para preservar suas identidades