Conversamos com organizações que atuam pelos direitos reprodutivos e sexuais femininos nesses países para entender mais sobre a efetivação do direito ao aborto
Texto: Amanda Stabile
Edição: Mayara Penina e Semayat Oliveira
Ilustração: Gabi Lucena
Atualizado em 02|10|2023
Na América Latina e no Caribe, o aborto é descriminalizado em cinco países: Argentina, Colômbia, Cuba, Guiana e Uruguai. Além disso, na Guiana Francesa, um território ultramarino da França, as legislações determinadas pela República Francesa permitem a interrupção voluntária da gravidez.
Além desses países, no México, em setembro de 2021, a Suprema Corte, ao julgar a criminalização do aborto no estado de Coahuila, declarou inconstitucional a determinção da pena de prisão no país em casos de interrupção da gravidez. Apesar disso, o procedimento é descriminalizado, até a 12ª semana, em apenas 4 dos 32 estados.
Quais são as semelhanças e diferenças na implementação do direito ao aborto nesses países? Quais oportunidades de aprendizados identificamos nas lutas de nossos vizinhos pela descriminalização? No mapa interativo abaixo, você consegue ter um panorama com algumas dessas respostas (clique nos ícones para mais informações):
O termo “objeção de consciência”, presente no mapa e ao longo do texto, diz respeito ao direito de recusar realizar determinada tarefa com base em suas crenças pessoais, morais e religiosas. Na presente reportagem, usamos o termo em relação ao serviço de aborto.
Para responder a essas perguntas de forma mais completa, conversamos com organizações que atuam pelos direitos reprodutivos e sexuais femininos nesses territórios. Também fornecemos informações detalhadas sobre as legislações e os protocolos para realização do aborto em cada um desses países. Confira:
Mulheres argentinas celebram a decisão do Senado de descriminalizar o aborto até a 14ª semana de gestação, em 30 de dezembro de 2020.
©Ronaldo Schemidt/AFP
Em dezembro de 2020, a Argentina sancionou a Lei nº 27.610, conhecida como Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez (IVE), que prevê o aborto seguro e gratuito no país até 14ª semana de gestação. Apesar de uma conquista recente, a luta pelo aborto no país existe pelo menos desde os anos 1980, após o fim da ditadura argentina (1976 e 1983).
“A recente descriminalização é fruto de um longo processo, que contou com a participação de organizações do campo da saúde sexual e reprodutiva, mas o movimento foi se ampliando e tornou-se um movimento intersetorial, composto por distintas classes, intergeracional e presente em territórios de todo o país”, explica Luna Borges, diretora associada da Fós Feminista, organização interseccional centrada na saúde sexual e reprodutiva e nos direitos de mulheres, meninas e pessoas de gênero diverso, com atuação em vários países.
A organização tem aliança com um ecossistema amplo de organizações nacionais e locais para fazer frente aos desafios de implementação da lei na Argentina e oferece alcance internacional e transnacional à discussão. “A descriminalização do aborto na Argentina é parte de uma tendência regional e internacional de liberalização das leis de aborto na América Latina que vem ocorrendo desde os anos 2000, impulsionada por organizações e movimentos feministas em cada país. É importante reconhecer, por exemplo, que organizações argentinas apoiam, inclusive, mulheres brasileiras a terem acesso a aborto seguro”, explica a especialista.
Todas as respostas de Luna contaram com contribuições de informações da Casa FUSA, da Argentina. A organização é referência no tema, inclusive para mulheres brasileiras que buscam aborto fora do Brasil.
Campanha Nacional pelo Aborto Legal, Seguro e Gratuito
Em 2005, as feministas argentinas lançaram a Campanha Nacional pelo Aborto Legal, Seguro e Gratuito, uma mobilização considerada a espinha dorsal do movimento e fundamental para alcançar a descriminalização social do aborto no país.
Luna explica que a Campanha contou com o envolvimento de mais de 300 organizações, incluindo grupos feministas, sindicatos, organizações de direitos humanos, grupos políticos e culturais de diferentes segmentos.
A história do movimento está conectada a um contexto de mudanças significativas na legislação nacional. Dentre elas estão as aprovações das leis sobre educação sexual integral, em 2006; sobre violência contra as mulheres, em 2009; sobre casamento igualitário, em 2010; e a lei que regula o tema de identidade de gênero de 2012.
“Para a inclusão em massa de mulheres nesse movimento e a mudança da opinião pública sobre aborto também foi muito importante a conexão com o movimento Nenhuma a Menos (Ni una menos, em espanhol), de 2015, que transformou radicalmente o debate pelos direitos das mulheres na Argentina, em oposição à violência de gênero”, aponta Luna.
O movimento Nenhuma a Menos nasceu para convocar a sociedade contra a violência de gênero e os feminicídios e para reivindicar políticas que garantam a proteção das vítimas. A marcha que deu início ao movimento aconteceu em 3 de junho de 2015 em cidades de diversos países, como Argentina, Chile e Uruguai.
A incidência política do movimento sempre foi, no entanto, orientada pela defesa de direitos amplos, não apenas direito ao aborto. O movimento defendeu, desde o início, questões integrais em saúde como contracepção, atenção ao parto, puerpério e educação integral em sexualidade.
Em relação à percepção da população acerca da descriminalização do aborto, a especialista aponta que, em 2018, pesquisas de opinião já mostravam um aumento no número de pessoas contrárias à criminalização de mulheres e ao aborto clandestino.
“Um elemento importante desse movimento de ampliação da defesa do direito ao aborto foi a incorporação dessa pauta nas reivindicações da comunidade LGBTIQ+, um dos principais movimentos sociais contemporâneos do país”,
explica.
A especialista aponta que outro argumento muito importante apresentado pelo movimento na Argentina é que o discurso do movimento não se baseia apenas em um direito individual à privacidade ou à autonomia reprodutiva, e sim como uma questão de saúde pública, enfatizando o impacto do aborto clandestino no número de mortes maternas e no número de hospitalizações devido a complicações de abortos inseguros.
“Nesse contexto, desenvolveram-se fortemente argumentos baseados em justiça social, que explicitam como a proibição do aborto tem um impacto particular na saúde e na vida das mulheres pobres, também sujeitas à criminalização. Assim como em outros países da América Latina, com processos políticos marcados por um padrão de ditaduras recentes e democratização, o movimento na Argentina também enquadrou a questão do aborto como uma questão de cidadania e uma ‘dívida da democracia’”, aponta Luna.
Como realizar um aborto legal e seguro no país?
A lei argentina que descriminalizou o aborto criou, também, obrigações para o sistema de saúde, que deve oferecer serviços de interrupção da gravidez com cobertura extensiva e gratuita. Os procedimentos recomendados são aborto medicamentoso, com misoprostol e mifepristona, além de AMIU (Aspiração Manual Intrauterina).
Em 28 de março de 2021, no Dia Internacional de Ação pela Saúde das Mulheres, o país também oficializou o Protocolo ILE (Protocolo para a Atenção Integral das Pessoas com Direito à Interrupção Legal da Gravidez) garantindo assistência pós-aborto, independentemente de ocorrer ou não nas situações previstas em lei, e ao acesso a métodos contraceptivos.
Após procurar um serviço de saúde para realizar o aborto, não é preciso explicitar os motivos que levaram a essa decisão. Os profissionais de saúde devem confirmar imediatamente a idade gestacional para garantir prontamente os direitos previstos na lei e o acesso ao procedimento solicitado.
Assim como qualquer procedimento de saúde, a interrupção da gravidez requer o consentimento informado da pessoa titular do direito. Nos casos de aborto voluntário, o consentimento deve ser expresso por escrito. Antes de solicitar a assinatura da pessoa grávida, a equipe de saúde ou o profissional envolvido deve fornecer as informações necessárias, em linguagem clara, imparcial e acessível.
“Um dos elementos mais importantes para fortalecimento do acesso ao aborto é a distribuição de misoprostol e, recentemente, mifepristona – combinação recomendada pela Organização Mundial da Saúde –, com o maior alcance possível no país. Organizações da sociedade civil também são fundamentais para implementar a lei e permitir acesso a métodos de anticoncepção”, aponta Luna.
“No entanto, há muitos desafios, como a ausência de informação e desconhecimento sobre o direito ao aborto. Ainda faltam campanhas de comunicação em massa que cheguem a todas as pessoas com capacidade de gestar”, conclui.
Mulheres colombianas celebram a decisão de alto tribunal da Colômbia de descriminalizar o aborto nas primeiras 24 semanas de gravidez.
©Raul Arboleda/AFP
“A decisão de interromper uma gravidez é uma das mais difíceis. As mulheres não fazem um aborto por capricho ou por diversão. Abortamos por necessidade: porque os contraceptivos falham, porque nem sempre estão disponíveis ou acessíveis, porque os homens não querem ou não usam preservativo e uma longa lista de etcéteras (…) O aborto é estigmatizado. Muitas pessoas o veem como um assassinato ou como algo negativo. Para mim, literalmente, salvou minha vida” (Sara [nome fictício]).
O relato acima foi publicado na coluna “Yo aborté”, da organização feminista Las Igualadas, no jornal colombiano El Espectador. Em 2020, a organização utilizou esse espaço para publicar relatos de mulheres que já haviam interrompido gestações na Colômbia, quando a prática ainda era criminalizada no país, para ilustrar suas experiências e motivações,contribuindo para o debate sobre a descriminalização.
“O movimento de mulheres na Colômbia trabalha pela despenalização do aborto há muitas décadas. Desde os anos 60 ou 70, o movimento já tinha slogans como ‘o corpo é meu’, ‘sobre meu corpo, eu decido’, que de certa forma advogavam pela descriminalização”, explica Laura Castro González, coordenadora da La Mesa por la vida y la saude de las mujeres, coletivo feminista ativista que luta especialmente pelo direito ao aborto.
“Nas primeiras décadas de trabalho, o foco estava no Congresso. No entanto, nos últimos 15 a 20 anos, o foco tem se direcionado à Corte Constitucional, por meio de projetos ou demandas de inconstitucionalidade que buscam eliminar o uso do poder punitivo do Estado nas práticas de interrupção voluntária da gravidez (IVE)”, acrescenta.
Em 2006, o país permitiu o aborto em três casos: estupro, malformação fetal que inviabilize a vida, ou risco de morte da mulher. “Porém, após mais de uma década dessa descriminalização parcial do aborto, estava claro que, embora houvesse progressos, grande parte da população se menteve sem acesso real ao serviço”, explica Maria Mercedes Vivas, diretora-executiva da Fundação Oriéntame.
A Oriéntame é uma organização sem fins lucrativos que, desde 1977, presta serviços médicos e orientação em saúde sexual e reprodutiva, com ênfase na prevenção e atenção integral ao aborto legal na Colômbia.
Diante desse cenário, em 2017, o coletivo La Mesa, do qual a Oriéntame também faz parte, convocou mais de 150 organizações e 90 ativistas de diferentes setores sociais para formar uma coalizão em nome da autonomia reprodutiva na Colômbia.
A coalizão, intitulada Causa Justa, nasceu para elevar o nível da conversa sobre a questão do aborto com base em argumentos técnicos e de pesquisa; criar uma forte presença digital e mudar a narrativa sobre a interrupção da gestação, antes centrada no estigma e na criminalidade, para um discurso da esperança focada nas possibilidades de um cenário de liberdade legal.
O grupo também convidou a população a tomar às ruas, com a força do movimento feminista, dos grupos de defesa dos direitos humanos e das organizações sociais, para reivindicar este direito. Em 2020, apresentou uma ação à Corte Constitucional da Colômbia questionando a constitucionalidade da criminalização do procedimento.
“Um dos principais esforços e exercícios do ‘Causa Justa’ foi não apenas apresentar a demanda de inconstitucionalidade, mas também provocar uma conversa pública sobre por que a criminalização do aborto era injusta, ineficaz e discriminatória, e, portanto, não deveria mais existir”, conta Laura.
Em fevereiro de 2022, após toda essa mobilização social, a Corte publicou uma Sentença descriminalizando a interrupção da gestação até a 24ª semana. Nos casos permitidos desde 2006, a limitação de prazo não se aplica.
“É importante esclarecer que a descriminalização do aborto na Colômbia vem ocorrendo por meio de sentenças emitidas pela Corte Constitucional. Atualmente não existe uma lei específica sobre o aborto no país”,
explica Maria Mercedes.
“Foi justamente a Corte que instou o Congresso da República a regulamentar o aborto na Colômbia, porém, o Poder Legislativo não o fez até hoje. A Corte continua preenchendo esta lacuna normativa mediante a emissão de Sentenças”.
A especialista aponta que o país não tem sido alheio à polarização quando se trata do aborto. Assim como no Brasil, grupos relacionados à política conservadora e religião também têm alimentado o debate em torno das liberdades sexuais e reprodutivas em busca de ganhos políticos.
Logo após a decisão, por exemplo, o então presidente, Iván Duque, se pronunciou pedindo a anulação da decisão da Corte e negando os direitos reprodutivos reconhecidos. As bancadas do Congresso também reagiram, formando um grupo a favor da vida que impulsionou a coleta de assinaturas para promover referendos contra a decisão da Corte Constitucional.
Em relação à opinião pública, houve posições majoritárias a favor do direito de decidir: sete em cada 10 entrevistados afirmaram aprovar uma lei relacionada à interrupção voluntária da gravidez.
Já a pesquisa mais recente da Polimétrica, de junho de 2023, mostrou que o avanço da descriminalização social já é evidente: 91% afirmam que a maternidade não deve ser imposta. Além disso, 92% das pessoas entrevistadas estão “totalmente de acordo” que as decisões que as mulheres e pessoas grávidas tomam sobre sua reprodução devem ser autônomas.
Como realizar um aborto legal e seguro no país?
Após a legalização do aborto até a 24ª semana, o Ministério da Saúde colombiano emitiu a Resolução 051 de janeiro de 2023, que regula a prestação de Serviços de Interrupção Voluntária da Gravidez. Este é um protocolo obrigatório para todas as instituições que fazem parte do sistema de saúde na Colômbia, que atualiza as diretrizes técnicas e operacionais.
O tratamento de interrupção da gravidez é um serviço de saúde essencial incluído no Plano de Benefícios de Saúde Colombiano. Por isso, os planos de saúde têm a obrigação de responder aos pedidos em até cinco dias ou encaminhar para outra organização que tenha a capacidade técnica e profissional para fornecer um serviço seguro, como a Oriéntame.
“Na Oriéntame, a primeira coisa que oferecemos é uma sessão de orientação e aconselhamento sobre as opções para uma gravidez indesejada, onde são esclarecidas as expectativas, explicadas as opções terapêuticas com a descrição do que vai acontecer antes, durante e depois do tratamento IVE”, explica Maria Mercedes.
“Nós informamos sobre o marco legal do aborto na Colômbia. Imediatamente depois, se o consultor achar que o IVE é a melhor opção e atende aos critérios de elegibilidade clínica, é fornecida uma avaliação completa de seu estado de saúde e histórico médico. No âmbito deste aconselhamento, o consultor pode definir se deve ou não iniciar o tratamento para a interrupção da gravidez”, complementa.
Desafios
A legalização de 2022 foi uma conquista que colocou a Colômbia na vanguarda regional em termos de direitos reprodutivos. Porém, a especialista aponta algumas barreiras para a implementação desse direito, como identificado no balanço da Secretaria de Saúde colombiana sobre o primeiro ano de implementação da norma.
Dentre os desafios, estão: a garantia ao acesso aos serviços de aborto com qualidade e segurança para toda população, sem restrições ou discriminação; a proteção e garantia estatal da decisão e suas implicações jurídicas; o avanço no reconhecimento social e respeito às pessoas com capacidade de gestar, na autonomia de suas próprias decisões, responsáveis e conscientes de si e de seu bem-estar.
“Um dos desafios descritos aponta para a necessidade de garantir condições para que todos os atores do sistema de saúde garantam a prestação de serviços. Isso envolve o pessoal de saúde e administrativo das equipes de saúde. Desde a resolução de necessidades de formação em universidades, à adoção de protocolos em instituições de saúde, passando por uma divulgação atempada, clara e suficiente dos direitos reprodutivos junto da população em geral”, explica Maria Mercedes.
Atualmente, os profissionais de saúde podem se negar a fazer o aborto (objeção de consciência). Mas é um dever das instituições garantir a presença de profissionais não-objetores, ou encaminhar a pessoa que deseja realizar o procedimento para uma instituição onde possa ser atendida.
“Os objetores em instituições de saúde têm a obrigação de prestar informações aos consultores e, se for o caso, prestar os cuidados médicos solicitados em um prazo que não pode exceder cinco dias corridos a partir da solicitação do procedimento”, conclui.
Foto tirada em 1960, mostra Fidel Castro com Vilma Espín e Gilberto Cervantes, durante a cerimônia de fundação da Federação das Mulheres Cubanas (FMC), organização essencial para a descriminalização do aborto no país
©Tirso Martínez / Sitio Fidel Soldado de las Ideas
A revolução cubana liderada por Fidel Castro em 1959 resultou em diversas mudanças sociais e políticas significativas, impactando áreas como a saúde e os direitos das mulheres. Porém, a pesquisadora cubana Arelys Esquenazi Borrego aponta que os primeiros passos para a descriminalização do aborto no país aconteceram décadas antes.
Já em 1936, o país permitiu a interrupção voluntária da gravidez em três situações: em caso de estupro, risco à vida da mãe ou risco de transmitir uma doença grave ao feto. “Esse importante avanço foi possível devido à existência de diversos movimentos de mulheres que, desde antes do triunfo da revolução cubana, vinham exigindo seus direitos”, apontou a especialista, que é doutora em Política Social (2021) pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
Entretanto, é importante destacar que, naquela época, a prática do aborto era realizada frequentemente de maneira insegura, em instalações desprovidas das condições médicas e sanitárias adequadas, o que resultava no aborto sendo uma das principais causas de óbitos maternos no país.
“Os abortos que eram realizados de forma clandestina e sem a garantia da segurança das mulher. Além dos agravantes causados por marcadores sociais como classe, raça, território, pensando que a maioria desses serviços eram pagos. Apenas pessoas de classes mais altas tinham acesso a serviços de melhor qualidade”, explica.
Após o triunfo da Revolução Cubana em 1960, foi estabelecida a Federación de Mujeres Cubanas (FMC). “A organização surgiu a partir da integração de diversos movimentos feministas e de mulheres. Ela foi fundamental para que o aborto saísse da clandestinidade e fosse institucionalizado dentro do Sistema Nacional de Saúde cubano”, aponta Arelys.
A partir da década de 1960, a interrupção voluntária da gestação passou a ser realizada nas principais maternidades do país e, depois, nas policlínicas, iniciando o processo de institucionalização da prática. A descriminalização jurídica aconteceu em 1987, quando Cuba aprovou um novo Código Penal.
Vigente até hoje, o Código tipificou quais condutas em relação ao aborto voluntário seriam consideradas ilícitas e proibidas por lei. A prática então foi permitida até a décima semana de gestação para todas as mulheres, sendo penalizado em três casos: quando realizado com pretensão de lucro, fora de instituições hospitalares ou sem o consentimento da mulher.
Assim, Cuba se tornou o primeiro país da América Latina a descriminalizar o aborto. “Em resumo, o aborto voluntário é uma prática legal (descriminalizada juridicamente), segura, gratuita e regulamentada, mas não legislada”, explica a pesquisadora. Isso significa que não há uma lei que disponha sobre isso e o procedimento só está amparado explicitamente por normas de baixa hierarquia legal (normas, regulações do Ministério de Saúde).
“É preciso avançar na garantia desse direito por meio de legislação de maior porte jurídico que seja concebida de forma mais integral, incorporando, a partir da perspectiva da justiça reprodutiva, o direito das mulheres e das pessoas que gestam de decidir livre e conscientemente sobre seus corpos, reprodução, sexualidade e maternidade/paternidade”, enfatiza Arelys.
Um desafio para o planejamento reprodutivo
Ao longo dos anos, Cuba também enfrentou alguns casos de escassez de preservativos. Em 2014, por exemplo, a população da província de Santiago de Cuba, no leste do país, sofreu com a falta dos itens. Isso traz preocupações em relação às gestações não planejadas, mas também à propagação de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs).
Em 2020, um caso semelhante foi noticiado pelo Diario de Cuba, que relatou a chegada de preservativos à cidade de Pinar del Río como um acontecimento extraordinário, considerando que o fornecimento de preservativos estava esgotado desde dezembro.
Em artigo no Volume 3 da revista Foro Cubano (2020), Alejandra Guerrero, pesquisadora e especialista em Política e Relações Internacionais, aponta que no país a realidade não corresponde às expectativas. “É evidente que, na ilha, o aborto se tornou apenas mais um método contraceptivo, que continua a violar os direitos das mulheres, que acabam por fazer um aborto atrás do outro, pois muitas vezes não conseguem encontrar outra alternativa de planejamento”.
Alejandra ressalta que é urgente a implementação de mudanças socioeconômicas e culturais para que as dificuldades econômicas, a violência de gênero ou a falta de apoio da família deixem de ser a principal força motriz que leva uma mulher a querer interromper uma gravidez.
“O foco deve ser mudado para compreender que as mulheres cubanas que abortam têm uma história anterior ao procedimento e uma vida que continua depois dele, e se o Estado está garantindo a interrupção voluntária da gravidez, deve também defender menos reincidência para os pacientes”.
Foto mostra Andaiye, ativista feminista guianense, segurando cartaz com os dizeres “isso é desobediência civil”. Ela foi uma grande defensora dos direitos sexuais e reprodutivos e apoiou a legalização do aborto na Guiana.
©Reprodução Facebook/Moray House Trust
A Guiana é o único país da América do Sul que foi colonizado pelos ingleses e, por isso, tem o inglês como sua língua oficial. Em 1966, finalmente a independência do país aconteceu, porém ele continua membro da Comunidade Britânica das Nações (Commonwealth, em inglês), um grupo composto por 56 países que fizeram parte do Império Britânico e prometeram sua lealdade à coroa britânica.
Devido a esses laços, os países são influenciados pelas discussões e legislações aprovadas no Reino Unido. Isso contribuiu para que a Guiana fosse a pioneira na América Latina a entrar no debate sobre aborto, após a assinatura do Abortion Act pelo Reino Unido em 1967, que permitiu a interrupção da gestação até a 24ª semana.
O debate sobre a descriminalização do aborto na Guiana em si envolveu debates políticos, influência religiosa e mudanças na legislação. Foi iniciado em 1971, com a formação de um comitê composto por advogados, médicos, membros da igreja e várias organizações de mulheres para examinar a questão. No entanto, devido à instabilidade política nas décadas de 1970 e 1980, houve atrasos significativos no progresso do tema.
Em 1985, o partido Peoples National Congress (PNC), à frente do governo, elaborou um Projeto de Lei (PL) baseado no aprovado em Barbados, de 1983. Porém, o PL foi arquivado devido à pressão de cristão fundamentalistas. Em 1993, o tema voltou à pauta, quando o Grupo Pró-Reforma (PRG) iniciou debates com instituições religiosas e grupos contrários à descriminalização do aborto.
A Igreja Católica exerceu uma influência significativa durante o debate sobre a descriminalização do aborto. A instituição era contra a mudança na legislação e pressionou o governo para impedir a aprovação de uma lei mais permissiva. No entanto, as vozes a favor da mudança argumentavam que a descriminalização era necessária para melhorar a saúde reprodutiva das mulheres e reduzir a mortalidade materna, bem como para garantir direitos reprodutivos mais amplos.
Em 1995, apesar das oposições, a Lei de Interrupção Médica da Gravidez foi aprovada e assinada em lei pelo então presidente, Dr. Cheddi Jagan. A legislação permitiu a interrupção voluntária da gravidez até a 8ª semana de gestação, após isso apenas em casos de risco à saúde materna ou fetal.
Para realizar um aborto no país, a lei estabelece, entre outras coisas, que o procedimento seja realizado por um profissional autorizado, que é necessário o consentimento da mulher, oral ou por escrito; que os profissionais têm direito à objeção de consciência, ou seja, podem se recusar a participar do procedimento.
Desafios para realizar um aborto legal e seguro no país
A implementação da lei enfrentou atrasos, sendo adiada duas vezes devido a falta de regulamentação. Desde o início, a história da interrupção legal da gravidez no país é marcada pelo despreparo dos serviços de saúde e ausência de protocolos para a realização dos procedimentos.
De acordo com pesquisas de Tivia Collins, do Institute for Gender and Development Studies, entre 1995 a 2016, os hospitais e instituições de saúde pública na Guiana não realizavam o procedimento permitido por lei, tornando-o praticamente inacessível às mulheres pobres e trabalhadoras.
Em 2006, o governo guianense teoricamente abriu caminho para que hospitais públicos “realizassem abortos”, mas, na prática , eles realizavam apenas procedimentos já parcialmente iniciados pelas próprias mulheres. Nesse cenário, um estudo de 2010 apontou que 99,7% dos abortos no país foram realizados em clínicas privadas, enquanto o tratamento de complicações foi realizado em 70% nos hospitais públicos.
“Pesquisas posteriores revelaram que o Estado e as organizações de direitos das mulheres estão envolvidos em um debate sobre a responsabilidade pela implementação da lei do aborto, com pouca menção ou reconhecimento de como a resistência à implementação afetou a vida das mulheres”, apontou Tivia.
Em manifestação na Guiana Francesa, em março de 2017, população pedia investimentos da França na infraestrutura e nos serviços básicos guianenses. No cartaz: “Alo, França? Aqui é a Guiana!”
©Jody Amiet/AFP
“L.B. me explicava com tranquilidade, até bom humor, o modo de proceder da sra. P.-R.: com a ajuda de um espéculo, ela introduzia uma sonda no colo do útero e aí era só esperar o aborto espontâneo. Uma mulher séria e limpa, que fervia os instrumentos. Nem todos os micróbios, porém, eram destruídos pela ebulição, e L.B. havia contraído uma septicemia [infecção generalizada]”
Essa é uma parte das lembranças da escritora francesa Anne Ernaux de quando realizou um aborto inseguro na França, em 1963. Na época, a interrupção da gestação era proibida no país, menos em casos de riscos para a vida da mulher. Inclusive, 20 anos antes do aborto realizado por Ernaux, uma mulher chamada Marie-Louise Giraud foi guilhotinada por realizar o mesmo procedimento.
Desde 1975, como uma vitória do movimento feminista, o governo francês aprovou a Lei Veil, autorizando a interrupção voluntária da gravidez (IVG) até a décima semana de gravidez. Mais de duas décadas depois, em 2001, a aprovação da Lei Aubry aumentou o prazo legal para 12 semanas e retirou a necessidade de autorização dos pais para pessoas com menos de 18 anos realizarem o procedimento. Por fim, em fevereiro de 2022, o direito foi estendido até a 14ª semana de gestação.
Mas qual a relevância de citar o contexto francês, se o foco da reportagem é a América Latina? A França, que colonizou diversos países, ainda possui territórios ultramarinos em todos os continentes, exceto na Ásia. Na América Latina, a Guiana Francesa não é considerada um país, mas um território que segue as legislações determinadas pela república francesa.
Territórios ultramarinos são aqueles que, apesar de geograficamente estarem em regiões separadas e até distantes do país a que pertencem, ainda são governados protegidos por eles.
Stéphanie Bernard, coordenadora de obstetrícia da Réseau Périnat Guyane [Rede Perinatal Guiana, em tradução livre], explica que, de forma geral, a população da Guiana Francesa vê com bons olhos a extensão do prazo legal para o aborto. “Para os opositores ao aborto, é o próprio princípio do aborto que é denunciado, mas o prazo legal em si pouco muda a perspectiva deles. Já para os defensores do direito ao aborto, esse é um avanço muito aguardado”.
A Réseau Périnat Guyane foi criada a partir da publicação da lei francesa de 4 de março de 2002, que dispõe sobre os direitos dos pacientes e a qualidade do sistema de saúde. A instituição, especificamente, tem o objetivo de melhorar a qualidade do atendimento e acompanhar gestantes e recém-nascidos, assim como crianças vulneráveis no território. Também está incluso no campo da perinatalidade a interrupção voluntária da gravidez.
A especialista aponta que a dificuldade surge principalmente na implementação dessa extensão do prazo. O monitoramento das pacientes deve ser reforçado, mas não houve recursos adicionais para implementar essa medida. Isso gera alguns problemas, especialmente porque, desde a pandemia de covid-19, os recursos humanos na área da saúde estão escassos.
Como é feito o aborto legal no território?
“Qualquer mulher pode solicitar um aborto legal, independentemente da sua idade, local de residência ou status de regularização. Se o profissional de saúde que ela consulta (médico ou parteira) não realiza abortos (por objeção de consciência), ele deve, obrigatoriamente, encaminhar a paciente para um profissional liberal ou uma instituição de saúde que possa cuidar dela”, conta Stéphanie.
A legislação determina que uma resposta para a solicitação do procedimento deve ser fornecida no prazo máximo de cinco dias. Cada solicitante também tem o direito de escolher o método e o local para realizar o aborto e não precisa justificar as suas decisões ou escolhas.
É realizada uma análise sanguínea obrigatória para determinar seu grupo sanguíneo. Também pode ser feita uma ultrassonografia para verificar a idade da gestação (não obrigatório). Outro serviço que sempre deve ser oferecido é a entrevista psicossocial com uma conselheira matrimonial ou assistente social, sendo obrigatória para mulheres com menos de 18 anos.
Após a entrevista, antes da realização do aborto, é exigido um período de reflexão de 48 horas. A paciente tem a opção de escolher entre o método medicamentoso ou por aspiração, de acordo com as modalidades disponíveis. No ambiente liberal, apenas o aborto medicamentoso é possível, e somente até nove semanas de gestação. Em uma instituição de saúde, ambos os métodos são possíveis.
Quando o aborto é realizado em um ambiente ambulatorial, o profissional de saúde deve ter firmado um acordo com uma instituição para onde a paciente será encaminhada em caso de complicações. O direito à confidencialidade pode ser solicitado pelas beneficiárias em todos os casos.
Desafios
Após quase 50 anos da legalização da interrupção da gestação, a Guiana Francesa é o departamento francês onde a taxa de aborto é a mais alta, cerca de trê vezes maior que a taxa nacional, principalmente entre pessoas com menos de 18 anos. Ao mesmo tempo, a taxa de fertilidade é muito alta e o uso de anticoncepcionais permanece inferior ao da França continental, mesmo com uma política de acesso à contracepção implementada a nível nacional.
“Ela estabeleceu a contracepção gratuita para mulheres com menos de 26 anos, contracepção de emergência gratuita para todas, e a disponibilização de duas marcas de preservativos”, explica Stéphanie. “Uma característica do nosso território é o recurso repetido ao aborto (quando é realizado mais de uma vez em menos de um ano). O tema da violência sexual também está intimamente ligado à interrupção da gestação, com um vínculo significativo encontrado em pacientes que recorreram repetidamente ao aborto”.
Outra questão é a falta de disposições específicas para a realidade da Guiana Francesa. “A nossa particularidade continua a ser a realização de abortos em aldeias remotas, por vezes temos de recorrer a entrevistas psicossociais por vídeo ou telefone, sobretudo em zonas muito remotas”, conclui.
Ativistas pela descriminalização do aborto no Uruguai durante manifestação na entrada do Congresso em setembro de 2012
©Miguel Rojo/AFP
Após o fim da ditadura civil militar no Uruguai (1973 a 1985), durante a redemocratização do país, em um processo comum à América Latina, os movimentos sociais uruguaios deram início às suas reivindicações por direitos. Nesse período, o país passava por uma profunda crise financeira e social e altas taxas de desemprego.
A situação começou a melhorar a partir de 2004, quando, pela primeira vez, a esquerda ascendeu ao poder e Tabaré Vázquez (Frente Ampla) foi eleito para presidente. A partir desse momento, o Estado investiu na ampliação das políticas públicas sociais, com foco na distribuição de renda, e os movimentos sociais ganharam mais autonomia.
Sob a presidência de José “Pepe” Mujica (Frente Ampla), em 2012, o Uruguai se tornou o segundo país da América do Sul a descriminalizar o aborto. A Lei 18.987/2012 foi aprovada por 17 votos a 14 no Senado uruguaio, permitindo a interrupção voluntária da gravidez até a 12ª semana.
Em casos de estupro, o prazo se estende até a 14ª semana e em caso de risco de morte para a gestante ou anomalias fetais a extensão de tempo também pode ser maior. Antes disso, desde 1938, o país permitia o aborto em três situações: risco de morte para a mulher, gravidez decorrente de estupro e dificuldades econômicas.
Cecília Stapff, diretora adjunta da associação Iniciativas Sanitárias, conta que a descriminalização do aborto foi bem recebida pela população. Logo após a aprovação da lei, houve um referendo para levá-la a plebiscito e só teve o apoio de 8% da população, o que significa que a grande maioria apoiou a lei.
Desafios para realizar um aborto legal e seguro no país
“A luta dos movimentos sociais pela aprovação da lei foi diversa. Embora o movimento feminista apoiasse a descriminalização, nem todos concordaram com a lei que foi aprovada, que era a possível negociar na época, com algumas ‘barreiras’ de acesso”, aponta Cecília.
O aborto no país só pode ser realizado dentro do Sistema Nacional Integrado de Saúde e, dentre os percalços, está um processo de longos e detalhados passos. Aquelas que pretendem abortar devem expressar essa vontade em uma consulta médica com uma equipe interdisciplinar (ginecologista, profissional de saúde mental e serviço social).
Após essa etapa, é demandado um período obrigatório de cinco dias de reflexão antes de uma uma nova consulta com o ginecologista. Caso a gestante prossiga com a decisão, deve informar sobre o procedimento, o médico passa a medicação que ela usará em casa.
O movimento feminista demanda uma reforma da lei desde sua implementação, mas o momento político atual não é favorável para um revisão. Isso porque, desde 2020, a direita voltou ao poder do país, com a eleição de Luis Alberto Lacalle Pou (Partido Nacional) para presidente.
“O governo não tem feito nenhuma campanha de divulgação dos serviços e da legislação vigente, bem como nenhuma atualização sobre o treinamento das equipes de saúde”, alerta Cecília.
Outra questão apontada pela especialista é que em algumas partes do país existem ginecologistas que são objetores de consciência e se recusam a atender casos de aborto. “Embora se tenha procurado uma solução alternativa, a transferência de outros profissionais continua a ser um obstáculo ao acesso em alguns locais específicos”, conclui.