Foto mostra gestando com a mão na barriga

Episiotomia e ‘Ponto do Marido’: mutilações genitais naturalizadas no Brasil

Intervenções desnecessárias realizadas durante o parto violam direitos e refletem uma cultura de controle sobre os corpos das mulheres

Por Amanda Stabile

17|02|2025

Alterado em 18|02|2025

Você provavelmente conhece alguém que já sofreu mutilação genital no Brasil. No imaginário popular, a Mutilação Genital Feminina (MGF) muitas vezes é associada a práticas que acontecem em países africanos ou asiáticos. Porém, no Brasil, intervenções naturalizadas, como a episiotomia e o chamado “ponto do marido”, também se enquadram como formas de mutilação genital, uma vez que são realizadas sem o consentimento da mulher e violam sua autonomia corporal.

A Organização Mundial da Saúde classifica a Mutilação Genital Feminina em quatro tipos principais. O Tipo IV diz respeito aos procedimentos realizados por razões não médicas que incluem perfuração, incisão, raspagem e cauterização da área genital feminina.

A episiotomia é um corte cirúrgico realizado no períneo, região entre a vagina e o ânus. A pesquisa “Nascer no Brasil” (2014) revelou que 53,5% dos partos vaginais no país envolvem a realização do procedimento, um número alarmante considerando que a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que essa taxa seja inferior a 10%. Em 2018, a OMS também reconheceu que não há qualquer evidência científica que apoie a realização de episiotomias.

Segundo a tese “‘Não tem jeito. vocês vão precisar ouvir’. Violência obstétrica no Brasil: construção do termo, seu enfrentamento e mudanças na assistência obstétrica (1970 – 2015)” de Larissa Velasquez De Souza, a episiotomia foi amplamente praticada no século 20 como um procedimento rotineiro durante o parto. Essa intervenção passou a ser justificada como uma forma de facilitar o nascimento e preservar a integridade genital da mulher.

No entanto, a partir da década de 1980, estudos começaram a apontar que a prática traz mais prejuízos do que benefícios. Entre os efeitos negativos observados estão dor prolongada, infecções e dificuldades na recuperação pós-parto, desafiando as justificativas iniciais para o procedimento e gerando críticas sobre sua prática indiscriminada.

Já o “ponto do marido” é uma sutura exagerada na região vaginal com o objetivo de deixá-la mais “apertada” e aumentar o prazer masculino. A tese também resgata que a denúncia da naturalização dessas intervenções já acontece desde 1970. Em um dos relatos publicados no livro The Women and Their Bodies (Boston Women’s Health Collective, 1970), por exemplo, um médico afirmou à paciente:

Eu fiz um bom trabalho costurando você. Você está apertada como uma virgem. Seu marido deveria me agradecer.

A fala representa como essas práticas refletem uma lógica patriarcal na assistência ao parto, marcada pela objetificação do corpo feminino e pela negligência de sua autonomia e bem-estar.

A cor da dor

O Nós, mulheres da periferia denuncia há anos casos de mulheres atendidas pelo sistema de saúde brasileiro e vítimas dessas práticas de mutilação genital. O racismo também se reflete nesse campo: Marli Soares, por exemplo, passou por episiotomia durante o nascimento de seu filho Luís Felipe. Além disso, sofreu a manobra de Kristeller, em que médicos pressionam o útero para forçar a saída do bebê, prática condenada pelo Ministério da Saúde por expor mãe e bebê a riscos.

Edite Neves, também mulher negra, teve seu bebê sem anestesia local durante a episiotomia e ainda foi silenciada por profissionais de saúde. Depois do parto, foi deixada sozinha em um espaço precário e obrigada a se deslocar sem auxílio antes de receber cuidados adequados.

De acordo com o artigo “A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil”, que analisou os dados da pesquisa Nascer no Brasil, apesar da episiotomia acontecer com menor frequência em mulheres pretas e pardas em relação às brancas, assim como Edite, as mulheres pretas recebem menos anestesia local antes do corte.

Os autores ainda apontam que a crença racista de que pessoas negras são mais resistentes à dor pode influenciar essa prática, o que reforça estereótipos raciais documentados em outras pesquisas. Essa desigualdade pode resultar em sofrimento desnecessário para elas durante o parto.

Controle dos corpos femininos

Segundo Mariana Lima, mestranda em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e coautora do artigo “Mutilação genital feminina no brasil: episiotomia e o episiorrafia como violadores de direitos fundamentais”, essas intervenções têm como pano de fundo uma cultura que historicamente busca controlar o corpo feminino.

“A episiotomia e o ponto do marido são expressões de uma sociedade patriarcal. Essas práticas são mantidas pela ciência, pela medicina e pela cultura, reforçando a submissão das mulheres. Portanto, cabe sim o uso do termo mutilação genital feminina para esses procedimentos”, defende.

A especialista aponta que o desconhecimento sobre os impactos desses procedimentos é um dos principais desafios para sua erradicação. “A sexualidade feminina ainda é um tabu, e tudo que é considerado tabu tende a ser silenciado. Muitas mulheres são submetidas à episiotomia ou ao ponto do marido sem saber do que se trata, lidando apenas com as consequências. Sem informação, fica difícil denunciar”.

Segundo ela, essa falta de conhecimento também impede uma discussão mais ampla e a coleta de dados mais concretos sobre essas práticas. Sem dados suficientes, é mais difícil mobilizar políticas públicas efetivas. Além disso, a episiotomia ainda é usada como ferramenta de aprendizado para médicos em formação, sem consideração pelas necessidades das mulheres.

A doula Maria (nome fictício), presenciou essa situação no hospital Amparo Maternal, em São Paulo (SP). Durante um dos trabalhos de parto a que dava assistência, um médico, acompanhado de um número excessivo de residentes, insistiu na realização de uma episiotomia contra a vontade da gestante. “Ele falou ‘mas é uma indicação médica, você sabe que o bebê pode morrer. Seu bebê vai nascer sem ar e vai ser responsabilidade sua’”, recorda.

As doulas dão assistência para os bebês virem ao mundo. Desde que os nascimentos viraram fenômenos hospitalizados, elas também atuam para nutrir gestantes de informação e para evitar que aquelas que gestam sejam submetidas a negligências ou a violências.

“Procedimentos como a episiotomia são ensinados e transmitidos de geração em geração na medicina, sem questionamento. Por isso, é necessário reformular a educação médica e implementar políticas públicas para garantir informação e orientação para gestantes”, ressalta Mariana.

A especialista também aponta que uma maior discussão sobre o tema fora do ambiente acadêmico é fundamental. Estudos e artigos sobre o assunto muitas vezes ficam restritos a círculos especializados. “Precisamos levar esse debate para outras esferas, para que as mulheres afetadas por essas violências tenham acesso à informação e possam exigir seus direitos”, conclui.