Foto mostra mulher com endometriose com a mão na barriga e na cabeça

“E se fosse eu?”: endometriose, adenomiose e o medo de buscar ajuda médica

A morte de Paloma Alves Moura, após horas sangrando à espera de atendimento, expôs o medo de mulheres que convivem com dor ginecológica crônica e aprenderam a desconfiar do cuidado que deveriam receber

Por Amanda Stabile

16|12|2025

Alterado em 16|12|2025

Karol Miranda estava em casa, rolando as notícias no celular, quando leu sobre a morte de Paloma Alves Moura, de 46 anos, em Olinda (PE). Paloma havia passado quase dez horas aguardando atendimento médico enquanto sangrava intensamente. Tinha adenomiose e miomas. Morreu no mesmo dia.

A notícia atravessou Karol de imediato. Não foi só tristeza. Foi medo. “Eu pensei: cara, e se fosse eu? Perfeitamente poderia ser eu naquele lugar”, conta. “E o meu pensamento imediatamente foi: se eu tiver outra cólica, pelo amor de Deus, não me leva para o hospital”.

Karol é mãe, jornalista, historiadora, autora do blog Uma Mãe Feminista — e assim como Paloma, uma mulher negra. Convive com a endometriose. Embora diferente da adenomiose, condição que Paloma tinha, ambas são doenças relacionadas, que afetam o útero e costumam ter seus sintomas subestimados nos serviços de saúde.

Endometriose (que afeta 8 milhões de mulheres no Brasil) acontece quando um tecido semelhante ao que reveste o útero cresce fora dele — podendo atingir intestino, bexiga e outros órgãos. O sintoma mais comum é dor forte, especialmente durante a menstruação, mas também pode haver dor contínua e dificuldade para engravidar;

Adenomiose (que afeta uma a cada 10 mulheres no país) ocorre quando esse tecido cresce dentro do músculo uterino, dificultando a contração e a contenção do sangue;

Já os miomas são tumores benignos que podem aumentar o volume do útero e intensificar o sangramento.

O que o caso de Paloma provocou em Karol foi a sensação de que, no momento de maior vulnerabilidade, buscar ajuda pode não ser seguro. “É como se eu não estivesse segura buscando tratamento, medicação, auxílio de um profissional de saúde. Então eu vou estar segura como? A única outra opção parece ser ficar em casa sentindo uma dor que parece que você vai se desmantelar”.

A dor, ela explica, é difícil de traduzir.

Parece que estão te retalhando por dentro. É uma dor muito grande. Para quem não tem endometriose, é quase impossível entender.

O que acontece no corpo quando o sangramento não para

Do ponto de vista clínico, a ginecologista Lígia Santos explica que o quadro vivido por Paloma não é raro em mulheres com doenças ginecológicas crônicas como miomas e adenomiose — e que pode, sim, se tornar uma emergência.

Ela explica que essas condições alteram o fluxo menstrual, tanto em volume quanto em duração. “Tem mulheres que menstruam poucos dias, mas em grande quantidade. Outras menstruam por muito tempo, às vezes 15 ou 20 dias no mês”, afirma. Em ambos os casos, o risco é o desenvolvimento de anemia.

Um sinal de alerta simples é quando um absorvente fica completamente cheio em menos de duas horas. Nesses casos, a recomendação é procurar atendimento imediato. Na emergência, ela explica que a avaliação inicial é direta: sinais vitais, palidez, frequência cardíaca, respiração. Exames básicos, como o hemograma, ajudam a identificar anemia.

Dependendo da gravidade, pode ser necessária transfusão de sangue e intervenções para conter o sangramento, associada a medidas para conter o sangramento. “Não adianta só repor o sangue que está sendo perdido se eu não fizer um tratamento para conter esse sangramento excessivo”, ressalta.

Ela também chama atenção para as limitações do modelo de atendimento atual. Segundo Lígia, consultas muito curtas, muitas vezes de apenas 15 minutos, e uma lógica de trabalho baseada em produtividade dificultam uma avaliação adequada. Como consequência, muitas mulheres passam anos — às vezes décadas — sentindo dor e enfrentando sangramentos sem um diagnóstico correto, o que compromete progressivamente sua qualidade de vida.

A ginecologista reconhece que, na prática, muitas mulheres não recebem esse cuidado no tempo adequado. Atendimentos rápidos, equipes sobrecarregadas e uma lógica de produtividade dificultam avaliações cuidadosas — especialmente em quadros ginecológicos complexos.

Para além do protocolo clínico, Lígia destaca que o problema é estrutural.

O Brasil é um país tradicionalmente patriarcal, machista, consequentemente misógino e racista. E a gente sabe que as mulheres que vivem na periferia, em geral, são mulheres negras. Então existe também um peso racial que precisa ser considerado.

Segundo a médica, os profissionais de saúde também fazem parte dessa mesma sociedade e reproduzem seus valores. Por isso, a mudança precisa ser ampla: passa pela forma como as mulheres são enxergadas e ouvidas, pela formação dos profissionais e pela organização do trabalho nas unidades de saúde, muitas vezes orientada por tempo e produtividade, e não por qualidade.

“Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que todos esses problemas existem, para então enfrentá-los um a um. Só assim será possível garantir que essas mulheres, especialmente as que vivem nas periferias e dependem do SUS, tenham não apenas acesso em quantidade — porque muitas vezes elas vão várias vezes ao posto de saúde e são avaliadas diversas vezes —, mas um serviço de qualidade”, defende.

Quando a dor vira ruído

Para a socióloga Lays Lopes Carvalho, pesquisadora da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), o caso de Paloma não é um desvio trágico dentro de um sistema que funciona. É a expressão de um padrão.

Em sua dissertação “Endometriose: um estudo sociológico sobre a negligência social e biomédica com sofrimento de mulheres”, ela utiliza o conceito de “sofrimento social corporificado” para explicar como dores físicas — como as provocadas pela endometriose — são moldadas e agravadas por estruturas sociais, culturais e institucionais, manifestando-se no corpo como expressão de desigualdades.

Segundo Lays, esse sofrimento vai além da definição biomédica da doença. “Para além de um tecido endometrial crescendo fora do útero, é o corpo feminino tornando-se o ‘lócus de opressão’ de uma dor invisibilizada”, afirma.

Ela explica que uma das facetas dessa opressão é a invisibilização do sofrimento que geralmente começa com a dor. “A dor é um alerta do corpo, precisa-se parar para entender o que está acontecendo”, diz. O problema se intensifica quando esse alerta é desacreditado e subestimado — algo que, segundo ela, não acontece apenas no pronto-socorro, mas também nas relações familiares, no trabalho e entre pessoas próximas.

Lays aponta que narrativas dominantes tentam vender a ideia de “normalidade” da dor e da doença, reforçando que “a mulher sente dor mesmo” e que está tudo bem seguir a vida com as atividades normais apesar do sofrimento. Nesse processo, afirma, o corpo acaba “absorvendo” esse sofrimento social.

“Nós, mulheres, em um mundo feito para homens e por homens que se priorizam, é como se – ou talvez seja isso mesmo – o tempo todo, estivéssemos tendo que fazer um esforço sobrenatural para sermos tratadas com dignidade, para ter nossas vidas respeitadas, não sermos mortas não só nas nossas próprias casas, mas que possamos ter direito a uma vida de qualidade com saúde”, alerta.

No caso de Paloma, essa lógica apareceu inclusive nos registros médicos. Mulher negra e de classe trabalhadora, ela teve um sangramento intenso descrito como “fluxo leve” no prontuário. Para Lays, esse registro não é neutro: “o corpo de Paloma ‘corporificou’ o sofrimento”, ecoando a banalização da dor feminina e a perpetuação de uma violência institucional de gênero.

Aprender a aguentar

Karol Miranda reconhece esse aprendizado. “O bloqueio de procurar atendimento já começava na minha cabeça”. Conta:

“Eu fui educada por uma mãe que acreditava que as dores sempre tinham que ser superadas, por mais fortes que estivessem.

Ela relata atendimentos em que sua dor foi relativizada. “Eu já vivi situações de saúde em que as pessoas disseram que, se eu aguentava uma endometriose, eu aguentava qualquer coisa”, relata.

Em uma gestação, ouviu de uma médica que, por ter endometriose, “aguentava mais dor”. A frase marcou. “Isso é desumano”. Mesmo após o diagnóstico, o descrédito continuou. Uma ginecologista descartou a endometriose por ela ter filhos e atribuiu as dores ao peso corporal. O tratamento foi interrompido. A dor voltou.

“Interfere na minha rotina porque eu não consigo pensar em outra coisa, sabe? Quando a dor é muito forte, você não consegue pensar em mais nada. Você só consegue pensar que quer que a dor pare”, explica.

Trabalho, raça e julgamento moral

Na pesquisa de Lays, a dor aparece sempre ligada à vida cotidiana: ao trabalho, à falta de tempo para parar, ao medo de perder renda e às responsabilidades que recaem sobre as mulheres. Diante de dores paralisantes, especialmente quando são responsáveis pelo sustento da casa, muitas mulheres acabam negligenciando os sinais do corpo, tomando analgésicos cada vez mais fortes para conseguir seguir trabalhando.

Mesmo em vínculos formais, relata, há dificuldades de permanecer no emprego: empregadores “não têm paciência para mulheres que sentem dor todo mês” e acabam demitindo, o que torna ainda mais difícil buscar e insistir por atendimento. Para Lays, “é preciso políticas públicas que amparem a situação de trabalho dessas mulheres”.

Essa dinâmica se aprofunda quando se cruzam raça e classe. Em sua pesquisa, Lays identifica que a endometriose se torna “uma aflição amplificada para mulheres pretas e pardas”, cujo sofrimento vai além da dor física e envolve “uma negligência institucionalizada”.

As dores dessas mulheres costumam ser ignoradas e o atendimento tende a ser desumanizado, sustentado pela ideia de que corpos negros seriam “mais fortes” ou “resistentes à dor”. No caso de Paloma, mulher negra, isso apareceu quando um sangramento intenso foi registrado como “fluxo leve” no prontuário. Para Lays, esse tipo de registro ecoa a banalização da dor feminina e ajuda a entender como “o corpo de Paloma ‘corporificou’ o sofrimento”.

Há ainda uma camada moral. Sangramento intenso vira suspeita.

O julgamento moral é uma camada cruel: mulheres pretas e pardas são frequentemente suspeitas de ‘tentativa de aborto’ ou ‘imoralidade sexual’, mesmo sem evidências, refletindo interseções de racismo e machismo.

No caso de Paloma, o hospital priorizou a investigação de uma possível gravidez, aguardando o resultado do exame Beta HCG, enquanto o sangramento persistia e o estado de saúde se agravava. Para Lays, isso não é uma falha individual, mas estrutural.

Quando o sistema falha, as mulheres se organizam

Na dissertação de Lays Lopes Carvalho, os grupos formados por mulheres com endometriose aparecem como uma resposta à falta de cuidado nos serviços de saúde. Quando a dor não é levada a sério no consultório, na emergência ou no trabalho, muitas mulheres passam a buscar apoio umas nas outras.

Nesses espaços — principalmente em grupos de redes sociais — elas contam como foram atendidas, trocam informações sobre exames e tratamentos, indicam profissionais e dividem formas de lidar com a dor no dia a dia. Também falam sobre sangramento intenso, efeitos dos remédios, cansaço extremo e as dificuldades para trabalhar ou cuidar da família.

“As falhas estruturais no sistema de saúde estão evidenciando que está mais que atrasado em preparar profissionais para lidar com seres humanos com dignidade e respeito”, aponta Lays. “A organização coletiva dessas mulheres então acontece justamente para conseguirmos sermos ouvidas, nem que seja por nós mesmas, acolhidas, compreendidas”, explica.

A pesquisa mostra que esses espaços ajudam as mulheres a entender o que está acontecendo com seus corpos e a se fortalecer para buscar atendimento — mesmo num sistema que muitas vezes as desacredita.

Karol Miranda reconhece essa força coletiva — e também o medo que permanece. Alerta:

Esse caso da Paloma mostrou isso de forma muito cruel. Ele escancarou que nós, mulheres, não estamos seguras nem quando estamos vulneráveis.