É dia contra a intolerância religiosa, mas eu não quero ser tolerada
Quando o assunto é fé, o nível de melanina modera o de intolerância
21|01|2025
- Alterado em 21|01|2025
Por Karoline Miranda
“Se você não conseguiu se dar bem na redação do Enem, parabéns (palmas). Sinal de que você é um jovem cristão, que está dentro dos seus princípios de seguir a Cristo”.
Essa fala abre um vídeo viralizado no Tik Tok de uma usuária chamada Sheila Borges. Com conteúdo voltado para o emagrecimento, sua vida como esposa e mulher cristã, Sheila disserta em seu vídeo sobre um suposto “aparelhamento” do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2024, que teve como tema de sua redação “Desafios para a valorização da herança africana no Brasil”. Segundo a influencer, a prova “induzia” os alunos a falarem sobre a religião do candomblé, o que era uma afronta aos valores dos alunos cristãos.
É inegável que a redação do Enem é um termômetro importante para entender os debates sociopolíticos relevantes no país. A discussão sobre África estar no maior vestibular do país – e, consequentemente, noticiários e redes sociais – deveria fomentar o interesse e a importância das heranças afro na nossa cultura e sociedade. Infelizmente, não foi o que vimos. A temática virou um bafafá desgovernado nas redes: houve até mesmo quem achasse que o tema deveria ser focado em empreendedorismo, marketing e afins (o que revela cada vez mais a urgência da nova educação bancária que Paulo Freire tanto pautou).
Mas por que será que o candomblé, a umbanda e outras religiões de matriz africana incomoda tanto?
Por que não vemos a mesma tratativa polêmica ao falarmos sobre o budismo, o judaísmo ou o próprio espiritismo?
A resposta, infelizmente, não mudou: a intolerância acompanha o nível de melanina da fé.
Sou mãe de santo de umbanda. Há cinco anos comando o Templo de Umbanda Universalista Luz de Lion, na zona norte do Rio de Janeiro. Apesar de conviver com naturalidade com a rotina de zeladora, ao escrever esse texto, não pude deixar de pensar que antes de 1945, eu seria considerada criminosa por louvar a minha fé. E o meu direito à exercê-la de fato só chegou em 1988, com a Constituição.
CRIME! Enquanto o cristianismo crescia no Brasil, nós brigávamos para que uma gira de caboclo não se transformasse em caso de polícia.
Isso me leva à reflexão de que nem quando eu gostaria de romantizar a minha fé, a minha relação com os orixás e entidades, isso me é permitido. Ser mãe se santo e umbandista nunca é só uma questão espiritual: ela precisa ser uma questão política, de luta por igualdade de direitos e um manifesto antirracista.
Eu e Sheila seguimos uma fé. Ela é evangélica, e eu umbandista. Mas não consigo deixar de pensar em como a vida espiritual dela é mais fácil. Sheila vai à igreja e, se ela fosse pastora, seu maior desafio seria preparar a preleção do dia. Em um dia de gira, meus desafios dobram.
Um contato que deveria ser unicamente entre eu e o meu sagrado é permeado por medo, luta, transtorno, resistência. Não basta que eu bote café pro meu preto velho no fim do dia, é necessário esconder as guias quando ando de Uber. É garantir que todos os filhos tenham chegado bem em casa, escondido suas tatuagens em alguns locais.
A fé é um direito fundamental, individual e inalienável no Brasil. Então por que ela precisa ser dolorida? Com luta, lágrimas, resistências? Às vezes eu não quero resistir, eu só quero arriar um padê (comida feita com farinha de mandioca, dendê, cachaça e mel servida em alguidares de barro, aqueles que as pessoas chutam nas encruzilhadas) cantar pra minha pombagira e dormir com pé sujo de terreiro e cheirinho de defumador!
É claro que a nossa vida não é só resistência. Umbanda também é riso, toque, aconchego, calor, amor, beleza, atabaque. É pureza e é energia. Mas, nesse 21 de janeiro, eu queria não ter que afirmar que em muitos casos, a intolerância religiosa é racismo. E não, não há nenhuma estrutura social que te marginalize por ser católico, protestante ou budista. É um problema racial mesmo.
É dia contra a intolerância religiosa, mas eu não quero ser tolerada. Quero o som do meu atabaque, um café no fim da gira, um “bença, mãe” e acabou.
Nunca houve tolerância pra gente.
Mas no meu espírito, exijo mais: deixem que a gente seja tão crente quanto vocês. Só que nos nossos.
Karoline Miranda Jornalista e historiadora, é mãe do Gael e da Pilar de Maria e autora responsável pelo Uma Mãe Feminista.
Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.
Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.
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