É coisa de travesti lutar pela emancipação da classe trabalhadora
A luta de Erika Hilton pelo fim da escala 6x1 também é uma pauta LGBTQIAPN+
19|11|2024
- Alterado em 19|11|2024
Por Victória Dandara
As discussões sobre escala 6×1 têm tomado as redes sociais nas últimas semanas. O Projeto de Emenda Constitucional (PEC) encabeçado pela deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP) propõe estabelecer a duração do trabalho de até oito horas diárias e 36 semanais, com jornada de quatro dias por semana e três de descanso (a chamada escala 4×3). No presente modelo, é permitido que o trabalhador tenha turnos de trabalho em que possuam apenas um dia de descanso semanal, trabalhando os outros seis. A Nexus – Pesquisa e Inteligência de Dados, analisou cerca de 30 mil publicações sobre o tema nas cinco principais redes: X, Facebook, Instagram, Linkedin e Tik Tok, concluindo que 67% de todas as postagens analisadas eram favoráveis à PEC, indicando como esta pauta tem ganho apoio popular.
Ter um debate tão forte levantado pela esquerda, principalmente após uma vitória da direita conservadora nas eleições para prefeitura nos principais municípios do país, nos dá um pouco de esperança e, sobretudo, faz repensar sobre uma nova esquerda que estamos construindo. Quero trazer para a conversa um ponto interessante que tenho visto nos comentários, “elogiando” como a Erika, uma travesti negra, vinda de quebrada e das pistas de prostituição, “não apenas fala de questões identitárias, mas também está trazendo questões dos trabalhadores”, desse jeito mesmo, como se houvesse uma oposição entre as duas coisas.
Na verdade, essa ideia é toda torta. Coisa de travesti e negra não é “identitarismo”, mas sim a construção de um novo projeto de mundo revolucionário, o que a esquerda cisgênera e branca não tem sido capaz de dar conta. Travestis, pessoas LGBTQIA+, negros e mulheres são a classe trabalhadora. Inclusive, estes grupos são os mais afetados pela opressão desumana da escala 6X1. Das poucas pessoas trans que acessam o mercado de trabalho formal, por exemplo, a maioria se encontra no telemarketing, onde esse modelo de exploração é o padrão. Levantamentos mostram que negros são a maior porcentagem dentro desta modalidade. Me incomoda muito essa narrativa, que congratula Erika por “estar legislando sobre todos os temas”, como se não fosse exatamente isso que os projetos políticos de travestis e mulheres negras têm discutido.
Quando eleita vereadora, em 2020, inclusive, em entrevista para o Roda Viva, a própria Erika já deu a letra, nos lembrando que tratar de questões LGBTQIA+ é falar de direito à cultura, à educação, à saúde, segurança pública e outros. Por isso, retorno ao fato (que pra mim não é coincidência nenhuma) de termos uma travesti negra como líder de um projeto que não só traz apoio popular à uma demanda de esquerda, mas também puxa a esquerda para a esquerda. Ao invés de deitar para pautas como empreendedorismo e tentar conciliar nosso discurso para ser mais palatável ao conservadorismo, Erika está atacando um tema central a qualquer movimento de emancipação dos trabalhadores: a redução da jornada de trabalho e uma vida digna para todes.
Como alguém que bebe das fontes do marxismo, fico esperançosa em momentos de crise, porque acredito que nos traz a oportunidade de repensar caminhos, estratégias e trajetórias. Vejo em toda a discussão sobre a jornada 6X1, sobre o movimento VAT (Vida Além do Trabalho) e até essa provocação que fica após toda perda eleitoral de “a esquerda precisa se repensar”, uma oportunidade de retomarmos a narrativa. Talvez não precisemos mais da benevolência de homens cisgêneros e brancos formados nas melhores universidades do país para nos dizer que caminhos tomar e “nos representar”. Talvez possamos estar diante de um projeto de democracia radical em que travestis, negros e todos aqueles achincalhados por este sistema possam ter um peso e protagonismo maior, concretizando o que Lélia Gonzales nos dizia: “O lixo vai falar, e numa boa”. E, à medida que falamos, vamos percebendo que nossas pautas são muito mais do que “identitárias”, mas sim de um projeto coletivo de libertação em primeira pessoa.
Victória Dandara Victória Dandara é travesti, cria da zona leste de São Paulo (SP), pesquisadora em direitos humanos, advogada transfeminista e filha de Oyá. Foi uma das primeiras travestis a se graduar em direito na USP e hoje luta não só pela inclusão da população trans e travesti, mas por uma emancipação coletiva a partir da periferia e da favela.
Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.
Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.
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