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Dos hospitais aos rituais de cuidado: os usos da placenta no Brasil

Ainda em 2025, o SUS deve incorporar o transplante de membrana amniótica para queimaduras; fora dos hospitais, a placenta aparece em práticas privadas restritas a quem pode pagar e em saberes tradicionais preservados por parteiras e comunidades

Por Amanda Stabile

30|09|2025

Alterado em 30|09|2025

Até o dia 15 de dezembro, o Sistema Único de Saúde (SUS) deve passar a oferecer um novo tratamento para pacientes com queimaduras: o transplante de membrana amniótica – uma camada fina da placenta que envolve o bebê e o líquido amniótico, normalmente descartada após o parto. Essa medida foi oficializada pelo Ministério da Saúde no dia 23 de junho, a partir da publicação da Portaria SECTICS/MS nº 46 no Diário Oficial da União.

Em maio, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) recomendou, por unanimidade, a incorporação do procedimento após avaliar evidências clínicas e econômicas. O relatório destacou que a membrana amniótica atua como um “curativo biológico”, favorecendo a cicatrização, reduzindo a dor e ajudando a prevenir infecções. Além disso, seu uso pode diminuir a demanda por enxertos de pele de bancos de tecidos, que são limitados no país.

Segundo os estudos avaliados pela Conitec, o transplante de membrana amniótica mostrou-se mais eficaz que curativos convencionais em acelerar a cicatrização de queimaduras de segundo e terceiro grau, além de trazer mais conforto ao paciente. Do ponto de vista econômico, a análise apontou custo próximo ao do transplante autólogo de pele – enxerto feito com a própria pele do paciente –, com a vantagem de ser menos invasivo e ampliar o acesso ao tratamento.

A expectativa é que, com a publicação da portaria, o transplante de membrana amniótica passe a ser oferecido de forma gradual nos hospitais de referência em queimaduras do SUS. Para isso, será preciso capacitar profissionais de saúde e reforçar os bancos de tecidos humanos, já que o material usado vem de placentas doadas em cesarianas — que seriam normalmente descartadas após o parto.

Tratamentos relacionados à placenta já disponíveis no SUS

O transplante de membrana amniótica não será o primeiro procedimento ligado ao uso da placenta disponível no SUS. O SIGTAP (Sistema de Gerenciamento da Tabela de Procedimentos, Medicamentos, Órteses, Próteses e Materiais Especiais do SUS), que lista todos os procedimentos e tratamentos que podem ser realizados e pagos pelo sistema público de saúde, já contempla outros dois:

05.01.03.011-5 – Coleta, identificação, testes de segurança, processamento, armazenamento e fornecimento de células do cordão umbilical e da placenta: esse procedimento cuida de todo o caminho das células do cordão e da placenta, desde a coleta até o armazenamento seguro para uso futuro em transplantes (total ambulatorial: R$ 3.411,18); e

05.01.03.012-3 – Transporte, dentro do Brasil, de unidades de células do cordão umbilical e da placenta: consiste no transporte de células-tronco retiradas do sangue do cordão umbilical e da placenta. Acontece quando se encontra um doador voluntário compatível, mesmo que não seja da família do paciente, pelo registro nacional de doadores de medula óssea (REDOME/INCA). Essas células são usadas em transplantes, que servem para substituir a medula óssea doente, ajudar a produzir sangue saudável e reconstruir o sistema de defesa do corpo (total hospitalar: R$ 71.602,25).

No caso do transplante de membrana amniótica para queimaduras, ainda não há valor oficial registrado no SIGTAP. No entanto, a análise econômica da Conitec mostrou que ele sai mais barato que o transplante autólogo de pele (feito com pele do próprio paciente), com economia de cerca de R$ 463,60. Porém, é mais caro que curativos convencionais, custando em torno de R$ 27.942,86 por paciente com cicatrização completa.

Além dos procedimentos já registrados nesse sistema, a placenta também aparece em outras práticas do sistema público de saúde. O capítulo “A placenta, a árvore da vida e os usos de si: uma abordagem ergológica em um centro obstétrico”, do livro ErgoLab 15 anos (2024), por exemplo, documenta a rotina de um centro obstétrico do SUS, onde a placenta é simbolicamente chamada de “árvore da vida”.

A pesquisa mostra como médicas, enfermeiras e técnicos constroem, no cotidiano, diferentes formas de lidar com o parto e com a placenta, combinando protocolos técnicos com valores, escolhas e significados culturais. Nesse espaço, a placenta não é apenas um material biológico para possíveis usos terapêuticos, mas parte de uma experiência coletiva de cuidado.

Apesar dessa iniciativa, tais práticas não são universais no sistema público de saúde. O SUS ainda não dispõe de um mapeamento nacional que identifique onde e como a placenta é utilizada — seja em procedimentos técnicos, em pesquisas clínicas ou em práticas assistenciais ligadas ao parto. Isso significa que, na prática, o acesso a terapias ou experiências que envolvem a placenta depende de contextos locais, da estrutura disponível em cada hospital e até da mobilização das equipes de saúde.

Outros usos da placenta: quem acessa?

A placenta é considerada preciosa tanto pela ciência quanto pela cultura. Do ponto de vista biológico, é um tecido rico em células-tronco, hormônios, colágeno e fatores de crescimento, propriedades que explicam seu uso em terapias de regeneração, como nos transplantes de membrana amniótica para queimaduras. E até em práticas que misturam cuidado, espiritualidade e autonomia.

No campo individual, a placenta também vem sendo utilizada de outras formas no Brasil. A dissertação “Placentofagia no Brasil: Motivações, benefícios e malefícios” (2024), por exemplo, investigou a prática da placentofagia — o consumo da própria placenta após o parto — a partir de um questionário aplicado a mais de 500 mulheres.

O estudo revelou que a prática se concentra em mulheres jovens (25 a 39 anos), brancas, com ensino superior e inseridas em camadas sociais de maior renda, que tiveram contato com a ideia em redes sociais, grupos ligados ao parto humanizado ou por meio de empresas privadas de encapsulamento.

As formas de consumo mais comuns foram a ingestão da placenta em cápsulas, crua ou em tintura alcoólica. As principais motivações apontadas foram aumentar a produção de leite, reduzir o cansaço e prevenir sintomas de depressão pós-parto, enquanto os efeitos mais relatados incluíram mais energia, melhora do humor e sensação de bem-estar. Apesar disso, o estudo registrou também alguns efeitos negativos — principalmente náuseas e enjoo, mais frequentes no consumo cru.

A pesquisa concluiu que, embora muitas mulheres relatem benefícios, faltam evidências científicas sólidas que comprovem esses resultados, e que a prática segue restrita a grupos específicos, fora do SUS e acessível sobretudo a quem pode pagar por serviços privados de encapsulamento.

Nesse mesmo universo urbano alternativo, a placenta também tem sido ressignificada de outras formas. A pesquisa etnográfica “Parir e sangrar em corpo soberano: os usos e sentidos da Ginecologia Natural no circuito das doulas” (2024) mostrou que, em oficinas e vivências de Ginecologia Natural no Rio Grande do Norte, a chamada “medicina placentária” inclui práticas como encapsulamento, enterro ritualizado, leitura simbólica e até a transformação da placenta em pó.

Segundo a autora, essas práticas são apresentadas como trocas de saberes que buscam democratizar o conhecimento e fortalecer a ideia de um “corpo soberano”. No entanto, a etnografia também mostra uma contradição: embora o discurso seja de acesso aberto, na prática quem mais participa são mulheres de camadas médias urbanas, com tempo e recursos para frequentar oficinas pagas ou vivências coletivas.

Usos ancestrais da placenta

Muito antes de entrar em protocolos clínicos ou em serviços pagos, a utilização da placenta já fazia parte de saberes tradicionais. Para alguns povos indígenas, por exemplo, ela não é considerada apenas um tecido biológico, mas parte de um sistema de cuidados transmitido por gerações.

O artigo “Resistências de uma parteira tradicional indígena frente à medicina contemporânea em sua aldeia: narrativa de vida” (2024) narra a trajetória de Yira sü Potiguara, parteira e liderança política, que utiliza a placenta e o cordão umbilical em chás e preparados caseiros para tratar hemorragias pós-parto.

Segundo a pesquisa, a preparação combina pedaços da placenta com ervas medicinais da região e é acompanhada por rezas, reforçando a dimensão espiritual do cuidado. O objetivo é estancar o sangramento, fortalecer a mãe e restaurar suas energias após o parto. Nessa tradição, a placenta funciona como um remédio natural de alto valor, não apenas pelo efeito físico atribuído, mas também pelo simbolismo de continuidade da vida.

Essa dimensão cultural também aparece em pesquisas recentes sobre os saberes de parteiras tradicionais no Brasil. Um levantamento publicado em 2020, que revisou teses e dissertações defendidas nas últimas décadas, mostrou que a placenta ocupa um papel central nos cuidados pós-parto conduzidos fora do ambiente hospitalar, em comunidades onde atuam parteiras.

Entre as práticas registradas estão o enterro da placenta como forma de proteção espiritual para a mãe e o bebê, rituais ligados à fertilidade e à continuidade da vida, além de cuidados especiais durante o resguardo, em que a placenta é associada ao fortalecimento físico e energético da mulher após o parto.

A placenta também ganha destaque em pesquisas que investigam saberes de matriz africana e indígena (chamados de afro-pindorâmicos). A tese “Andar no passado seguindo Kini Kia bakulu (a sombra dos ancestrais): a cura afro-pindorâmica de cuidados no parto” (2023), analisa práticas de parteiras, aprendizes e doulas em uma comunidade litorânea da Bahia.

No estudo, a placenta aparece como símbolo de continuidade da vida e de ligação espiritual entre mãe, bebê, território e ancestralidade, sendo central em rituais de cuidado durante o parto e o pós-parto. Mais do que um tecido biológico, a placenta ganha sentido como símbolo de resistência cultural, ajudando a manter vivas memórias e práticas afro-pindorâmicas que atravessam gerações, diferente da forma como a medicina tradicional e hospitalar costuma enxergá-la.