Diário de Isolamento: ativista Joice Aziza lança livro sobre pandemia
Na obra 'Diário de Isolamento' , a educadora Joice Aziza reúne relatos, poemas e crônicas que refletem a realidade de mulheres das periferias.
Por Jéssica Moreira
18|05|2022
Alterado em 18|05|2022
A escrita é uma forma de materializar sentimentos. Isso é o que diz a escritora, professora de História e ativista Joice Aziza, que lançou neste mês seu primeiro livro autoral: ‘Diário de Isolamento‘ ( Selo Dandaras, da Editora Feminas ) na Casa de Cultura Marielle Franco, em Franco da Rocha (SP).
“Escrever para mim significa a coragem de materializar. Algo que talvez eu não não fizesse antigamente. Para mim, escrever significa coragem”, diz a autora.
Em 72 páginas que misturam poemas, crônicas e relatos, Joice mostra como a pandemia da Covid-19 atravessou a vida, os sentimentos e a trajetória de mulheres periféricas como ela.
Nascida e crescida em Caieiras, município da Grande São Paulo, Joice sempre teve na escrita um refúgio. As primeiras leituras não foram nada óbvias para uma criança. Sua mãe costumava deixar livros no banheiro e foi ali que ela leu algumas de suas primeiras histórias: livros de Sidney Sheldon e Agatha Christie.
Ao vencer um concurso de Literatura no Ensino Fundamental, e receber uma medalha no Memorial da América Latina, Joice sentiu que a palavra também aumentava sua autoestima, fazendo-a se sentir mais potente, mesmo em meio aos desafios de ser uma menina negra na periferia.
“Eu ganhei uma medalha por uma redação. Essa medalha de honra ao mérito foi recebida no Memorial da América Latina foi bem significante, porque eu fui a única da escola aqui da Vila Rosina (bairro de Caieiras) que recebeu essa medalha”.
História e Poesia
Neste livro de estreia, a autora nos faz relembrar que é possível narrar um período histórico também por meio da poesia, como bem faz no primeiro dia de confinamento:
“Da janela contemplo o fim da tarde emoldurada numa obra de arte, pensativa e interrogativa: Como serão as próximas tardes? Terão cores? Ou apenas cinzas? Desejos de uma pandemia rápida e de poucos estragos.”
Mesmo tratando de um relato estritamente pessoal, Joice dialoga com diversas mulheres negras e periféricas em suas linhas. Professora de História, seus escritos trazem traços de quem utiliza a literatura também para ampliar o conhecimento e registrar fatos que ocorrem no cotidiano como parte da História oficial.
“Caieiras, 21 de abril de 2020 #FICAEMCASA 8h – Ficar em casa agora é privilégio. Muitos brasileiros não estão conseguindo se manter por muito tempo em seus lares. É arriscado sair. Mas ficar em casa para a periferia é uma questão dúbia. Ou morre-se de covid ou de fome”.
A escrita de Joice Aziza é um punho fechado em uma mão e uma flor na outra. Seus relatos vão desde um amor que se findou em meio à crise sanitária à saudade de dançar em uma roda de jongo.
São crônicas que poderiam ser notas jornalísticas, todas olhadas pela fresta de uma janela periférica, mas são também versos profundos em poemas curtos, a depender do dia e dos sentimentos que a atravessaram na escrita do livro, como é possível conferir no trecho abaixo:
“No ano em que a “Terra Parou,” a violência contra a mulher não teve pausa no Brasil. O índice de feminicídio aumentou no Acre 30% no primeiro bimestre da pandemia e 41% em São Paulo, dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, realizado em junho deste ano, e nessa estatística está Carla Cristina de Souza. Uma mulher negra, caieirense de 32 anos. Mais uma de nós que se vai pela existência do machismo. O medo de ser mulher está longe de se findar”.
Testemunho de uma professora
Joice lançou seu livro ‘Diário de Isolamento’ na Casa de Cultura Marielle Franco, em Franco da Rocha.
“O diário fala de educação. Não tem jeito. Ele passa por situações dos alunos ou questionamentos de dentro da sala de aula”, conta Joice, que faz questão de salientar que o livro traz suas várias vertentes enquanto educadora, ativista e escritora.
Em alguns dos textos, a escola pública e os debates em torno dela durante a crise sanitária também aparecem com força e contexto, relembrando capítulos marcantes de discussão sobre a volta às aulas:
“É muito cansativo trabalhar em casa. Se dividir com o trabalho formal, afazeres domésticos, alimentação, autocuidado, brincar com a sobrinha, vem sendo tudo muito desgastante. Nenhuma tarefa fica 100%. As aulas presenciais vêm sendo adiadas a cada nova fase do Plano São Paulo de Saúde”.
Além disso, Joice narra como foi de fato voltar para dentro das salas de aula em modelos híbridos e no chamado “novo normal”, que exigiu extensos protocolos de segurança e adaptação, tanto por parte dos estudantes, quanto dos profissionais de educação.
“Bate o sinal, álcool em gel na mesa, na cadeira, nas mãos. Ajeita a máscara: “Bom dia, bonitos e bonitas, como estão? Ohh, bonitão, ajeita essa máscara. Gabriel, de novo sem máscara? A habilidade de hoje será…”. Quarenta e cinco minutos depois e já é preciso trocar a máscara. Troca de aula. Álcool em gel na mesa, na cadeira, nas mãos. Ajeita a máscara: “Bom dia, bonitos e bonitas, como estão? Ohh, bonitona, ajeita essa máscara. Não pode abraçar, não, gatão”. Doze alunos na sala de aula, o sonho de qualquer professor que leciona na rede pública. Devia ser o alívio, mas com o uso de máscaras e alunos divididos em escalas, o esforço é em dobro”.
Poder da literatura
Para a escritora, essa obra é também sinônimo de resistência, já que a partir delapercebeu que pode reunir seus conhecimentos e suas várias versões em um livro.
“A literatura tem a possibilidade de descobrir as várias vertentes de Joice. É algo que me faz reviver e rever a minha existência. Foi por meio dela que eu descobri que tipo de mãe eu sou”, conta.
Quando Joice iniciou os escritos, na terceira semana de 2020, não imaginava que eles resultariam em um livro. Foi em uma transmissão online que uma amiga deu essa dica, o que rapidamente fez sentido à autora.
Uma das inspirações foi a escritora de ‘Quarto de Despejo: diário de uma favelada’, Carolina Maria de Jesus. Mas ela confessa: “Eu, de fato, não consegui ler o Quarto de Despejo de Carolina, porque ele é muito pesado e me lembra histórias que a minha família contava. Eu já tentei fazer essa leitura duas vezes”.
Mesmo com essa dificuldade em vista, Joice entendia a importância que teve Carolina com um diário e quão potente poderia ser reunir suas ideias e pensamentos em um formato semelhante. Em casa, as únicas vozes que ouvia eram as que estavam ao redor: sua família e também o coletivo de poesia que integra, o Flores de Baobá.
“Eu tenho ciência que é necessário escrever um diário, porque geralmente homens fazem diário e são e são validados. As mulheres quando escrevem diário parece que vão escrever sobre romantismo. Não teria nenhum problema se fosse romântico. Ele é romântico também, mas eu não tive essa intenção de torná-la romântico e fui um pouco mais dura”.
Mesmo os textos que falam sobre amor, são altamente políticos, com contextos que demonstram o cenário periférico e seus desafios, como o fim de um relacionamento
amoroso por conta do isolamento social:
“Quanto a mim, tenho saudades das quintas-feiras em que saía da escola e passava as noites com Carlos, num desses quartos alugados. Sem sombras de dúvidas, meu melhor amor. Mas isso é assunto para depois”.