As Carolinas do caminho: pílulas cotidianas de feminismo na periferia
Ônibus lotado. Em pé, duas moças se equilibram e dividem o mesmo apoio. Atrás, um homem carrega nas costas uma mochila que esmaga uma delas. Percebendo o desconforto, ambas se ajudam e tentam se desvencilhar do infortúnio. Uma piscada de olhos aqui, outro empurrão acolá e nada de o sujeito se tocar e carregar a […]
Por Bianca Pedrina
08|05|2017
Alterado em 08|05|2017
Ônibus lotado. Em pé, duas moças se equilibram e dividem o mesmo apoio. Atrás, um homem carrega nas costas uma mochila que esmaga uma delas. Percebendo o desconforto, ambas se ajudam e tentam se desvencilhar do infortúnio. Uma piscada de olhos aqui, outro empurrão acolá e nada de o sujeito se tocar e carregar a mochila nas mãos.
crédito: Claus Tom Christensen / Flickr
“Agora ele está do seu lado”, diz em tom de confidência a que tem a sorte de ter sido poupada. A que sofre espremida decide acabar com o incômodo:
– Moço, pode por gentileza afastar sua mochila?
Ele, sem expressão, atende ao pedido.
Logo, dois bancos esvaziam e as moças que antes dividiam o mesmo apoio agora são parceiras de assento.
– Como era folgado!
Aponta em tom de reprovação uma delas.
A outra concorda e já engata a pergunta preocupada com o percurso.
– Você me avisa quando chegarmos ao Centro Cultural Cidade Tiradentes?
– Sim, claro, estamos perto.
– O que vai fazer lá?
– Exibir um documentário.
A moça, que não conhecia o caminho, convida a que mora há mais de 20 anos no bairro para assistir ao filme sobre histórias de moradoras da periferia.
– Desculpe, tenho que lavar roupa, por isso não vou. Se passar novamente, eu assisto.
Logo, o assunto rumou para outros cantos e começam a conversar sobre a vida. Uma contou para a outra que tem dois filhos e se separou do marido há algum tempo. Confessou que sentia falta.
A outra rebateu:
– Mas sente falta do que?
Esse tom de pergunta estava condicionado a “se liberte, homem para que?”
A resposta veio envolta a um riso desavergonhado:
– Daquilo… (risos). Mas cueca é descartável não quero para além disso.
A surpresa com a resposta, toda cheia de malemolência, que esperava ser mais conservadora, foi quebrada com uma gargalhada compartilhada, com o mesmo tom de confidência que as fez ficar próximas. Aquela mulher era mais “sacudida” do que muita “desconstruída” por aí. Inclusive, a própria ouvinte da história teve que engolir o “discurso empoderado” que estava engatado na ponta da língua e em troca recebeu mais uma história de uma mulher dona de si.
Esse breve diálogo fez a moça que estava de passagem acreditar cada vez mais que sim, a periferia é feminista. Só ouvirmos e prestarmos atenção nas histórias cheias de entrelinhas que atravessam nossos caminhos.
Bianca Pedrina é jornalista, moradora de Carapicuíba, região metropolitana de São Paulo, e co-fundadora do Nós, Mulheres da Periferia.