fita vermelha

Dezembro vermelho: ‘HIV também tem a ver com racismo’

Micaela Cyrino comenta sobre importância do Dezembro Vermelho, mês da luta contra HIV, aids e outras ISTs

Por Beatriz de Oliveira

19|12|2024

Alterado em 19|12|2024

Micaela Cyrino é soropositiva desde que nasceu. Mesmo sem entender ao certo o que isso significava quando criança, ela já convivia com os estigmas em torno do vírus. Neste Dezembro Vermelho, mês da luta contra HIV, aids e outras infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), a artista visual e arte-educadora comenta sobre a importância de pautar o tema para avançar no acesso à políticas públicas, sua experiência pessoal sobre o assunto e sua visão acerca da relação entre HIV e racismo.

De acordo com definição do Ministério da Saúde, a aids é uma doença causada pela infecção do Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV, na sigla em inglês). Esse vírus ataca o sistema imunológico, que é o responsável por defender o organismo de doenças

Instituído em 2017, o Dezembro Vermelho reúne ações que incentivam a prevenção, assistência e proteção dos direitos das pessoas soropositivas. “Mesmo a passos lentos, a gente vai alcançando algum lugar de importância, de troca e de construção coletiva em resposta ao HIV/Aids no Brasil”, pontua Micaela.

Segundo o Ministério da Saúde, a taxa de mortalidade por aids em 2023 foi a menor em 10 anos. Quanto ao perfil das pessoas notificadas com infecção pelo HIV em 2023, 63,2% eram pretas e pardas. As pessoas negras são também as que mais morrem em decorrência da aids, representando 63% dos óbitos.

“A mortalidade do HIV desde o início da epidemia até hoje tem uma classificação de raça, classe e gênero”, afirma a artista visual e pesquisadora do tema. A epidemia de aids no Brasil teve início da década de 1980, quando os casos da doença subiram exponencialmente. Entre 1980 e 1990, conforme o Ministério da Saúde, foram notificados 25.513 casos de aids no país. O assunto era carregado de preconceitos, sendo chamado pelos jornais de “câncer gay”

Confira a entrevista completa.

mulher negra com tranças

©arquivo pessoal

Nós: Como recebeu o seu diagnóstico da infecção pelo HIV?

Micaela Cyrino: Eu sou soropositiva por transmissão vertical (passagem do vírus da mãe para o feto durante a gestação, parto ou amamentação). Eu nasci com HIV no início da epidemia de aids, em 1988. Quando eu tinha seis anos de idade, eu comecei o meu tratamento, então eu tive consciência de que era uma pessoa soropositiva lá pelo menos sete anos de idade. Eu tinha uma rotina de consultas que eram mensais, em que eu ficava o dia inteiro no hospital tomando medicamento na veia. Era um assunto que estava ali do meu lado mesmo sem ninguém falar.

Eu morei num abrigo para crianças soropositivas e perguntei a uma enfermeira [o que eu tinha]. Ela tentou me explicar de uma maneira lúdica, que eu precisava tomar um remédio para tecer as defesas do meu corpo, que eu carregava o vírus no meu corpo, que se eu não cuidasse ele tiraria toda a minha saúde. Foi a primeira vez que eu entendi a positividade.

Nós: Estamos no Dezembro Vermelho, uma mobilização nacional na luta contra o vírus HIV. Como você vê a relevância dessa mobilização?

Micaela Cyrino: O Dezembro Vermelho tem sido uma movimentação para concretizar políticas públicas de um assunto relevante para a saúde. O HIV ainda é um tema muito isolado, então seria muito importante falar disso o ano inteiro. Ainda assim, o Dezembro Vermelho contribui; mesmo a passos lentos a gente vai alcançando algum lugar de importância, de troca e construção coletiva em resposta ao HIV/Aids no Brasil.

Nós: Percebe estigmas em torno desse tema hoje?

Micaela Cyrino: O estigma diante do HIV carrega outras questões sociais: a culpa, o medo, o desejo. Sempre que falamos de HIV, correlacionamos à algum ato e julgamos isso. Vivemos em uma sociedade que não sabe falar de sexo como prazer. Então, quando a gente fala de HIV, a gente faz esse caminho que entra em muitas questões socioculturais e questões religiosas.

Vivemos numa sociedade que acha que o HIV é um problema do outro, e não uma questão a ser resolvida em conjunto. O estigma é uma questão que impede que a gente socialmente acompanhe os avanços clínicos em torno do tema.

Nós: Há queda de óbitos por AIDS no país, mas a doença ainda mata mais pessoas negras do que brancas. Além disso, 67,7% das gestantes diagnosticadas com HIV são negras. Como se sente diante desses dados?

Micaela Cyrino: Essa pergunta é muito forte, e é meu tema de pesquisa: a mortalidade das pessoas negras e como o HIV é um dos vieses do genocídio da população negra. O HIV também tem a ver com racismo.

É tema doloroso, passa por entender que a violência obstétrica está presente no corpo negro e se for um corpo negro soropositivo a violência. A gente caminha para esses lugares de negação da nossa humanidade.

A mortalidade do HIV desde o início da epidemia até hoje tem uma classificação de raça, classe e gênero. É um demarcador muito profundo que mostra que a epidemia de aids aliada ao racismo agrega muito mais violência e muito mais dificuldade ao acesso do teste e do tratamento.