Depois de mais de 16 mil crianças palestinas mortas, silenciar não é uma opção digna para nós
As mortes em Gaza, desde outubro de 2023, superam o número de 50 mil pessoas e mais de 35% das vítimas fatais são crianças. As que sobrevivem estão condenadas a fome extrema e a falta de serviços básicos
29|05|2025
- Alterado em 29|05|2025
Por Sâmia Teixeira
Quando iniciava a escrita dessa coluna, abri minha rede social para buscar publicações que havia salvo para mais tarde consultar e utilizar como dados que trouxessem mais humanidade para o texto.
O primeiro post que surgiu foi do jornalista Motaz Azaiza, de Gaza, que, com o genocídio, ficou internacionalmente conhecido. A publicação em questão era um vídeo de Ward Jalal Al-Sheikh Khalil, uma criança de 7 anos, tentando escapar das chamas que tomaram a escola Fahmi al Jarjawi, em Daraj, Cidade de Gaza, após um ataque aéreo israelense realizado na madrugada de 25 de maio. Ali, imagino, buscava encontrar alguma segurança com seus familiares.
Agências de ajuda humanitária afirmam que as forças israelenses destruíram totalmente ou danificaram 95% das escolas de todo o território de Gaza desde outubro de 2023. Mas, desde então, as estatísticas deixaram de ser números e se tornaram epitáfios de uma infância que o mundo assiste ser interrompida, dia após dia. Um cenário que não pertence apenas à estreita Faixa de Gaza, mas a outros territórios ocupados, como a Cisjordânia e Jerusalém Oriental. Nesses locais – em que não há a presença do Hamas, vale lembrar – uma criança palestina foi assassinada a cada dois dias desde outubro de 2023. E em 43% dos casos, as forças israelenses impediram deliberadamente que recebessem cuidados médicos, detendo e disparando munição real contra ambulâncias, paramédicos e civis que tentavam prestar socorro.
Nesses territórios, foram centenas de vítimas cujos nomes não apareceram nas manchetes internacionais. São pequenas vidas interrompidas por balas que atravessam não só corpos, mas qualquer possibilidade de futuro. Um projeto colonialista antigo de limpeza étnica.

Palestinos transportam feridos para o Hospital Indonésio em Jabalia, ao norte da Faixa de Gaza, em 9 de outubro de 2023 .
©Wikimedia Commons
Khaled Quzmar, diretor da Defense for Children International – Palestine, destaca que tais ataques “não são ações deliberadas do exército, mas uma política elaborada em alto nível político. Desde o início, o primeiro-ministro israelense e o ministro da Defesa disseram que não haveria combustível, água, comida, remédios. Isso significa que esse é o plano, e o exército apenas implementa. E claramente disseram: ‘estamos lutando contra animais’. Estão desumanizando as pessoas, os civis, e os consideram como alvos legais”.
Esse sistema faz com que destinos sejam roubados por não somente bombas ou balas, mas pelo cerco. Pela fome transformada em arma. Pela destruição dos abrigos, das escolas, das casas e dos hospitais. Pelo confisco dos corpos e a recusa até mesmo do luto, do direito de enterrar quem se ama.
Quando um abrigo vira alvo
Ward, a menina que atravessou o fogo na escola Fahmi al Jarjawi, sobreviveu, mas saiu sem nenhum membro de sua família com ela. As cenas de jornalistas que registravam o ataque revelaram corpos inteiros e restos mortais carbonizados de mais de 30 palestinos, 18 deles crianças e 6 mulheres, segundo o jornal Middle East Eye.
Outras histórias têm sido compartilhadas como forma de denúncia, graças ao trabalho de organizações sérias e engajadas na defesa dos direitos das crianças palestinas, como a Defense for Children, que reúne dados e relatos de crianças e familiares vítimas do genocídio israelense na Palestina.
Mohammad Abu Al-Atta, por exemplo, é uma criança que tinha seis anos e também encontrou refúgio em uma escola. Foi morto com um tiro na cabeça, disparado por um drone, enquanto brincava no pátio. Mesaad Al-Ghouleh, de 17 anos, morreu tentando buscar comida. Foi atingido por tiros disparados de um helicóptero de guerra de origem norte-americana. Naser Aldeen Selmi, de 14 anos, também foi morto enquanto buscava alimento. Fehmi Akilah, de 17, foi alvejado nas costas enquanto tentava pegar água potável. Ele permaneceu deitado no chão por uma hora, pois as ambulâncias não conseguiram chegar ao local devido à intensidade dos disparos. Yasmine Al-Fayoumi, de dez anos, também estava em um abrigo declarado zona segura. Sobreviveu, mas carrega no corpo as marcas dos disparos que perfuraram seu pé e sua mão. Sarah, de sete anos, brincava no pátio de uma escola quando foi atingida por vários tiros, também disparados de um drone. Sobreviveu, mas teve graves ferimentos nas pernas.
Talvez nenhuma cena traduza com tanta brutalidade este genocídio contra a infância como a história da família Hassouna.
Na manhã de 23 de março de 2024, Amer e Nida foram assassinados na frente dos seus quatro filhos: Lina, 14 anos, Yousef, 13, Yasmine, 10, e Alaa, 6.
Trinta e dois tiros acertaram Amer. Três, em Nida.
As crianças ficaram dois dias presas ao lado dos corpos dos pais. Sem água. Sem comida. Sem saber se também seriam as próximas. Testemunharam um drone invadir a casa e disparar tiros contra os corpos já sem vida. Viram cães famintos devorarem pedaços de seus pais. Experimentaram o que nenhuma criança deveria sequer imaginar.
Yasmine, aprendeu a chorar em silêncio. Alaa, o mais novo, desenvolveu incontinência urinária depois do trauma. E Lina, que agora tenta cuidar das irmãs, confessa que não dorme. Prefere ficar acordada. Porque o sono, naquele lugar, não oferece descanso.
Lina foi baleada no peito. Vive, mas seu pulmão atrofiou. Carrega uma cicatriz que não é só física. “Sinto falta da escola. Antes da guerra, eu era a melhor da minha turma”, ela diz. “Sinto muita falta dos meus pais. Fico acordada a noite toda, pensando neles.”
Com base nos relatos, fica evidente que o genocídio tem deixado cicatrizes que não se veem: distúrbios de sono, ansiedade, depressão, transtornos de estresse pós-traumático e regressões comportamentais.
Outro caso recente que ganhou destaque foi o da médica pediatra Alaa al-Najjar, que perdeu 9 de seus 10 filhos. Seu companheiro, o também médico Hamdi al-Najjar, está em estado crítico.
Trabalhadores que atuam para minimizar as consequências dos ataques militares têm sido alvos constantes. Pelo menos 1.400 profissionais do setor de saúde e 280 trabalhadores humanitários da ONU – o maior número de mortes de funcionários na história da ONU – foram mortos pelas forças israelenses.
Quem registra e divulga as imagens para o mundo também está na mira da ocupação israelense. Pelo menos 180 jornalistas foram assassinados, o maior número de profissionais de comunicação mortos em conflitos desde que o Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ) começou a registrar dados em 1992.
A cumplicidade do silêncio internacional
“Tudo isso aconteceu enquanto a comunidade internacional estava em silêncio. Há algumas ações de organizações da sociedade civil, manifestações em todo o mundo. Mas, infelizmente, com todos os protestos e apelos das figuras da ONU, Israel continuou com seus crimes.
Vemos claramente que aqueles que estão apoiando Israel, fornecendo armas, são os mesmos que apoiam a Ucrânia contra a Rússia. Então, por que aplicam a lei internacional na guerra da Ucrânia, mas não na Palestina? Esse é o duplo padrão. E essa é a hipocrisia.
De acordo com a Convenção contra o Genocídio, isso é uma cumplicidade, uma parceria no crime de genocídio em Gaza.”
Khaled Quzmar, diretor da Defense for Children International – Palestine
Privação de água e comida como arma de guerra
93% da população de Gaza enfrenta insegurança alimentar severa – aproximadamente 1,95 milhão de pessoas – de acordo com o último relatório da Integrated Food Security Phase Classification, Classificação Integrada de Segurança Alimentar (IPC), parâmetro utilizado pela ONU para mensurar os riscos de fome.
“Estão negando toda a ajuda humanitária como forma de punição, como arma de guerra. É por isso que estamos falando de genocídio em seu significado mais profundo e completo.”, aponta Quzmar.
Mais de 65 mil crianças correm risco de morte por desnutrição. Não há pão. Não há água. Não há remédios. O que há é a fome, planejada, orquestrada, transformada em instrumento de extermínio.
A IPC ainda aponta que de 11 de maio até o final de setembro de 2025, todo o território será classificado em “Emergência” (Fase 4 do IPC), com a previsão de que toda a população enfrente “crise ou insegurança alimentar aguda grave” (Fase 3 ou superior do IPC). Isso inclui 470.000 pessoas (22% da população) em “catástrofe” (Fase 5 do IPC), mais de um milhão de pessoas (54%) em “emergência” (Fase 4 do IPC) e o restante meio milhão (24%) em “crise” (Fase 3 do IPC).
A Defense for Children salienta em seus relatórios que “a fome é considerada um crime contra a humanidade e um crime de guerra, de acordo com as Convenções de Genebra e o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, e é proibida sua utilização como método de guerra ou como ato deliberado contra uma população”. Além disso, o direito penal internacional deixa claro que o uso intencional da fome de civis como método de guerra constitui “um ato subjacente de genocídio e equivale a um crime de guerra”.

Segundo a Comunicação do Governo de Gaza, 57 palestinos em Gaza, incluindo pelo menos 50 crianças, morreram de desnutrição e desidratação desde 7 de outubro de 2023. Mas organizações humanitárias afirmam que o número real de mortos por inanição é provavelmente muito maior, já que muitos palestinos, principalmente no norte de Gaza, enfrentam a fome e estão totalmente isolados da limitada ajuda humanitária que entra em Gaza pela passagem destruída de Rafah, ao sul.
A história que o mundo escolheu não ver
É impossível ler esses relatos e não se perguntar: quantas infâncias precisam ser destruídas até que a humanidade, ou o que sobrou dela, se mostre presente?
O papel do Sul Global na luta contra o genocídio
“Acho que agora é o momento de apoiar essas iniciativas e também de expandi-las para o Sul Global. Este é o momento de o Sul Global trabalhar em conjunto contra a colonização, contra a cumplicidade, contra o capitalismo, a fim de pôr fim à injustiça e ao genocídio na Palestina e aos crimes na África.
Porque todas essas guerras são apoiadas de forma direta e indireta pelos Estados ocidentais e pela colonização, que ainda é adorada pelos Estados ocidentais. Este é o momento de o Sul Global levantar a voz em alto e bom som: ‘chega de colonização, cessem os crimes, cessem as guerras, cessem o genocídio em Gaza e em todos os lugares’.”
Khaled Quzmar, diretor da Defense for Children International – Palestine
Quantas mortes são necessárias para que a fome imposta, os corpos de crianças amarrados a oliveiras, os bombardeios contra pátios de escolas e hospitais, deixem de ser tratados como efeito colateral?
Quando um tanque atira contra um menino de dois anos, como aconteceu com Hani Azzam, na Cidade de Gaza, depois que sua família foi enganada por uma falsa promessa de que aquela rota seria segura, isso não é erro. Isso é escolha. Isso é método.
Quando Maryam, de dez anos, e seu irmão Ahmad, de três, são sequestrados por colonos e amarrados a uma árvore, isso não é descontrole. É política sustentada por impunidade, por cumplicidade internacional, por um mundo que assiste e não move uma vírgula.
“Acredito que quando Israel não puder oferecer imunidade total, tenho certeza de que muitos no exército israelense deixarão de fazer parte do genocídio. Porque se tiverem certeza de que serão responsabilizados, deixarão de cometer crimes contra a humanidade, crimes de guerra. Se houver punição, tenho certeza de que os crimes cessarão”, indica Quzmar.
O que podemos fazer?
Não nego que a alma chega a ficar anestesiada. Que crianças queimadas, desmembradas, órfãs, de corpos trêmulos tomados pelo terror, tenham virado parte da minha rotina. Muitas pessoas devem estar vivendo de tal maneira. Elas sorriem, mas estão tristes. Elas trabalham, mas estão tristes. Elas confraternizam, celebram a vida, podem até enxergar alguma beleza no mundo, mas estão tristes.
Existe um lugar adoecido dentro de cada um que se importe com a vida do povo palestino. Se não houver, digo, sem qualquer receio, que para esta pessoa não cabe qualquer traço de humanidade.
Desde 7 de outubro de 2023, foram assassinados violentamente cerca de 54.000 palestinos, segundo o Ministério de Saúde de Gaza. Desse número, em torno de 28.000 eram mulheres e meninas.
Segundo um estudo publicado no site científico The Lancet estima-se que o Ministério da Saúde de Gaza subestimou as mortes em 41%, o que elevaria o número de mortos para cerca de 76000 pessoas, e, provavelmente, para 39.480 mil mulheres e meninas vítimas fatais.

Danos após um ataque aéreo israelense na área de El-Remal, na Cidade de Gaza, em 9 de outubro de 2023
©Wikimedia Commons
A Unicef mesmo alertou que boa parte dos mortos – mais de 30% – é formada por crianças. E isso não é um resultado de um suposto efeito colateral. É estratégia, é objetivo e é bem visto por uma fatia importante da sociedade israelense – 53% se opõe à entrada de ajuda humanitária em Gaza.
O rabino Eliyahu Mali, chefe de uma escola religiosa localizada na cidade ocupada de Jaffa, disse em vídeo que “terroristas de hoje são as crianças de ontem que mantivemos vivas, e na realidade são as mulheres que criam os terroristas”, complementando dizendo que deve-se matar “a próxima geração e também quem dá a luz à nova geração. Porque na realidade não há diferença”.
Há cerca de 15 anos tomei conhecimento de que era comum que israelenses usassem camisetas com frases como “1 tiro, 2 mortes”, com a imagem de uma mulher palestina grávida centralizada em um alvo, ou “quanto menores, mais difícil”, com a imagem de uma criança na mira de um rifle. Uma matéria do jornal israelense Haaretz revelou que soldados usaram essas camisetas para marcar o fim de um treinamento militar.
Ou seja, o ódio contra palestinos vem sendo demonstrado ao longo de um conhecido processo de limpeza étnica que normaliza a violência contra a população nativa da região.
O que Israel faz contra uma criança palestina é um espelho cruel do que o mundo permite que se faça contra qualquer povo. Aqui, lá, em qualquer território onde corpos racializados, colonizados e marginalizados são alvo.
E enquanto crianças morrem soterradas, baleadas, sufocadas pela fome, o silêncio global não é neutro. É parte da engrenagem. É arma tão letal quanto o drone, o tanque, a bala.
Por isso, é urgente romper com o silêncio. É urgente dizer que nós, mulheres, do sul global, das margens, negras, periféricas, não seremos cúmplices. Porque a dor que atravessa o corpo de uma mãe palestina é, também, a dor de toda mãe que já teve seu filho arrancado pelo Estado, pela violência, pela fome ou pela negligência. Porque Israel está envolvido diretamente com qualquer processos sistemático de genocídio dos povos mais vulnerabilizados em diversas partes do mundo, incluindo o Brasil.
Nos níveis práticos e políticos, é necessário que o Brasil rompa as relações com Israel e que os países tomem medidas e sanções necessárias de modo a isolar e enfraquecer Israel, ainda que haja apoio militar e financeiro por parte dos Estados Unidos e de outras nações.
Tomar como exemplo o movimento global contra o aparhteid na África do Sul é parte desse processo de pressão e conscientização popular.
Que, dessa maneira, honremos a nossa história e nossa humanidade. Que sejamos testemunhas e não permitamos que a memória dessas crianças se perca no esquecimento confortável dos que se fazem de cegos. Não há futuro possível enquanto a infância palestina for interrompida criminosamente. A causa palestina é nossa e as consequências de nosso silêncio também serão.
Sâmia Teixeira é mãe de gêmeas e jornalista. Foi assessora da União Nacional Islâmica, onde criou o jornal Iqra. Atualmente integra a comunicação da Rede Sindical Internacional de Solidariedade e Lutas, escreve sobre movimentos sociais e mundo sindical internacional.
Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.
Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.
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