De trabalhadora doméstica a artista plástica: conheça Maria Auxiliadora

Vida e obra da artista plástica negra e periférica é tema de espetáculo da Cia dOs Inventivos em cartaz no Sesc Casa Verde

Por Redação

12|04|2024

Alterado em 12|04|2024

Reconhecida como território negro e berço do samba paulistano, a Casa Verde, na zona norte de São Paulo, também se transformou em cenário para as artes no final da década de 30. Na época, o bairro era chamado de Morro da Casa Verde e reunia famílias como a Silva, que migrou de Minas Gerais para São Paulo em busca de melhores condições de vida e ajudou a construir a metrópole.

Maria Auxiliadora, João, Vicente, Conceição e demais irmãs e irmãos formaram uma grande família de artistas negros, como escritores, músicos e pintores, que desafiaram as dificuldades enfrentadas pela população moradora da região periférica da capital, para imprimir um protagonismo negro nas artes.

A vida no Morro da Casa Verde e a trajetória de Maria Auxiliadora, de seus irmãos e de outras famílias da região se entrelaçam em “Maria Auxiliadora”, da Cia dOs Inventivos, em cartaz até o dia 14 de abril no Sesc Casa Verde. A companhia, que celebra 20 anos em 2024, realiza uma homenagem robusta à vida e obra da artista plástica Maria Auxiliadora da Silva (1935 – 1974).

As relações construídas entre a comunidade permeiam o espetáculo, mostrando a força da rede de apoio que ali se forma por familiaridade ou pelo compartilhamento de valores sociais, espirituais e culturais. Os bate-papos regados à samba no bar, o desfile da escola de samba da região, as manifestações religiosas, além das dificuldades enfrentadas pelos moradores, como os alagamentos, são retratados ao longo de duas horas de apresentação. O espetáculo também mostra como o prestígio de Maria Auxiliadora foi crescendo e suas obras passaram a ser disputadas por colecionadores estrangeiros e a figurar em exposições no Brasil e no exterior.

Com muita música e diálogos contundentes, “Maria Auxiliadora” leva o público a uma viagem pela São Paulo dos anos 30 até os dias atuais, reforçando a importância da luta por uma sociedade mais justa e inclusiva.

Trajetória inspiradora

A história de Maria Auxiliadora é inspiradora: uma mulher negra, descendente de escravizados e de origem pobre, que, em meio a muitos desafios, ascende como artista visual em uma área elitista.

Imersa desde muito cedo num ambiente criativo estimulado por sua mãe, a relação de Maria Auxiliadora com as artes tem início bem cedo. Autodidata, aos 14 anos, ela começa a desenhar com carvão, passa para o lápis de cor aos 16, depois para o guache e, aos 26 anos, experimenta a tinta a óleo.

Por ter precisado ser trabalhadora doméstica e bordadeira para auxiliar a família, Maria Auxiliadora só conseguiu se dedicar totalmente à pintura aos 32 anos. Suas obras, vibrantes, coloridas e cheias de detalhes, trazem cenas de romance, paquera, flerte, falam de encontros, retratam bailes ou casamento.

Com a participação no grupo de artistas negros da cidade de Embu das Artes (SP), ao lado do poeta, ator e pintor Solano Trindade (1908-1974), começa a dedicar-se a temas ligados à cultura negra e de resistência política, às diversas figuras de orixás, na representação de cerimônias de terreiro e do protagonismo de pessoas negras.

No final da década de 60, após muita insistência da mãe e de seu irmão Vicente, Maria Auxiliadora passa a apresentar seus trabalhos na Praça da República, em São Paulo, local de encontro de artistas não inseridos no circuito. Nesse momento, conhece o crítico de arte e físico Mário Schenberg (1914-1990), que adquire diversas de suas obras e a apresenta ao cônsul dos Estados Unidos, responsável por organizar sua primeira exposição individual, em 1970, na Mini-Galeria USIS, no Consulado Americano em São Paulo. Com a mostra, a artista passa a ter reconhecimento nacional e internacional. Expõe ainda na 10ª Bienal de São Paulo (1969); na Galeria Zimmer, em Dusseldorf, Alemanha (1972); e na Art Fair, em Basileia, na Suíça (1973).

Ao todo, sua obra esteve em 44 exposições. A última mostra individual foi realizada em 2018 no MASP (Museu de Artes de São Paulo), intitulada “Maria Auxiliadora: vida cotidiana, pintura e resistência”.

Apesar da carreira precoce – Maria Auxiliadora pintou apenas sete anos, entre 1967 e 1974 -, ela deixou sua marca na arte brasileira. Seus quadros enfocam o carnaval, procissões, danças e festas populares, além de cenas da vida doméstica e rural, e do cotidiano de sua família e amigos da Casa Verde. Autorretratos também integram o universo imagético de Maria Auxiliadora. Em “Autorretratos”, ela se coloca nos papeis de artista, em plena atividade, mas também de noiva ou de enferma (aos 39 anos, faleceu em decorrência de um câncer).

Sem nunca ter frequentado uma escola formal, Maria Auxiliadora rompeu padrões e inovou ao propor uma técnica singular, que se tornou sua assinatura: uma mistura de tinta a óleo, massa plástica e mechas do seu cabelo, para construir relevos na tela.

“Meus primeiros óleos, em 1968, eram chapados, sem relevo. Mas no fim desse ano eu comecei a fazer relevo com cabelo. Primeiro usando o próprio óleo para fixar, porque nessa época eu não conhecia ainda a massa da Wanda. Pegava a tinta bem grossa e imprimia o cabelo no meio da tinta. Eu pegava cabelo natural, muitas vezes o meu mesmo, pois muitas vezes eu pinto crioulos. Tive essa ideia quando estava pintando um quadro grande de candomblé, em 1968”, contou a artista.

Sobre o espetáculo

Por meio da história de vida da artista e das relações entre os moradores da comunidade, a Cia dOs Inventivos convida o público a pensar sobre ética comunitária, famílias alargadas e práticas ancestrais herdadas e reatualizadas na cidade, destacando a participação dos negros na construção da metrópole paulistana.

Com direção geral de Flávio Rodrigues e dramaturgia assinada por Dione Carlos, o espetáculo conta com artistas-criadores: Adilson Fernandes, Aysha Nascimento, Carol Nascimento, Danilo de Carvalho, Dirce Thomaz, Flávio Rodrigues, Marcos di Ferreira, Natali Santos (stand-in), Taynã Azevedo e Val Ribeiro.

Maria Auxiliadora, com Cia. dOs Inventivos
Até 14/4. Sábado e domingo, 16h.
11/4. Quinta, 14h30.
12/4. Sexta, 19h30.
Duração: 120 minutos
Classificação etária: 14 anos
Local: Arena
Grátis. Retirada de ingresso 1h antes do espetáculo
Sesc Casa Verde
Endereço para pedestre: Av. Casa Verde, 327
Estacionamento pago: Rua Soror Angélica, 751

Com informações do MASP e da Enciclopédia Itaú Cultural.


Texto por: Lilian Ambar

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© Zé Barreta

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