De aluna à diretora de redação: a potente trajetória da jornalista Sanara Santos

Em entrevista ao Nós, mulheres da periferia, a jornalista afirma que a presença de pessoas LGBTQIA+ é mais latente na mídia independente do que na tradicional

Por Beatriz de Oliveira

27|06|2025

Alterado em 27|06|2025

Já parou para pensar em quão diverso é o jornalismo que você consome? Pautas que consideram diferentes gêneros e sexualidades são comuns em seu cotidiano? Neste 28 de junho, Dia do Orgulho LGBTQIA+, conversamos sobre diversidade sexual e de gênero na comunicação com a jornalista Sanara Santos.

Sanara se entendeu enquanto comunicadora através da arte, e encontrou no jornalismo independente um meio de criar espaços potentes. Em 2024, tornou-se a primeira diretora trans de uma organização de jornalismo no Brasil, a Énois. É também cofundadora da Transmídia, primeiro veículo do país a cobrir as pautas da população trans.

A comunicadora contou sobre sua trajetória na comunicação, suas percepções sobre diversidade na mídia tradicional e independente, e enfatizou que um jornalismo que não considera questões de gênero e sexualidade “não está olhando para a complexidade das existências no mundo”.

Sanara Santos falando ao microfone

Sanara Santos é a primeira diretora trans de uma organização de jornalismo no Brasil

©Vic Santos

Confira a entrevista completa!

Nós, mulheres da periferia: Como você iniciou sua trajetória no jornalismo? Quais foram as suas primeiras percepções acerca da diversidade nessa área?

Sanara Santos: Minha trajetória no jornalismo começou a partir da arte. Sempre fui uma jovem muito ligada à arte e aos movimentos e organizações das periferias que ofereciam arte para outros jovens como eu. Como artista e poeta, fui percebendo que minha comunicação ia além das palavras: meu corpo comunicava, minha presença comunicava.

Com o tempo, fui me entendendo como uma comunicadora. Foi nesse processo que conheci a Énois – a escola de jornalismo – e resolvi me inscrever. Fez todo o sentido. Me apaixonei pela comunicação, pelas ferramentas do jornalismo, pelo poder de transformação que elas carregam. Entender essas ferramentas me deu a possibilidade de criar novos espaços de potência.

Minha percepção sobre diversidade no jornalismo, porém, não veio de um lugar confortável. Dentro da Énois, a diversidade era uma pauta presente: meus colegas eram diversos, eu era um corpo diverso. Mas, quando íamos para as grandes redações, as clássicas, essa diversidade desaparecia. Eu mesma enfrentei um problema em um processo seletivo por causa do meu nome de registro – meu nome morto – o que evidenciou como esses espaços ainda não estão preparados para discutir e acolher identidades diversas. Isso foi em 2018, não faz tanto tempo assim.

A diversidade sempre foi essencial, mas não estava – e muitas vezes ainda não está – presente no coração das grandes redações. Não havia um olhar cuidadoso para jovens de periferia como comunicadores legítimos. Minha primeira percepção foi que a diversidade era uma preocupação viva nos projetos independentes, nas bordas, nas periferias – mas ainda distante das prioridades do jornalismo tradicional.

Minha primeira percepção foi que a diversidade era uma preocupação viva nos projetos independentes, nas bordas, nas periferias – mas ainda distante das prioridades do jornalismo tradicional

Sanara Santos

Nós: Em 2024, você se tornou a primeira diretora trans de uma organização de jornalismo no Brasil, a Énois. Como você descreve esse marco?

Sanara Santos: Para mim, é uma grande vitória estar hoje como diretora da Énois, especialmente porque foi a Énois que me ajudou a me formar enquanto comunicadora. Existe algo muito bonito nisso: uma escola de jornalismo criada para que jovens das periferias se tornem comunicadores e jornalistas de suas quebradas, agora tendo uma ex-aluna como diretora. Poder conduzir essa organização que me formou, pensar estrategicamente o seu futuro, é um marco — para mim e para a própria Énois.

Este ano, a Énois completa 16 anos. E poder ajudar a pautar o presente e o futuro da organização, a partir do que mudou e do que segue pulsando nas periferias, é simbólico. É um ciclo que se renova: de aluna para diretora, agora contribuindo de outro lugar, com visão institucional, estratégica, mas sempre com os pés na quebrada, na escuta dos territórios.

Isso também representa um ganho para o jornalismo e para a comunicação local. É uma afirmação de que é possível existir, compartilhar, acolher e transformar. Mostra que podemos ser referências, podemos formar e também projetar novas lideranças.

Além disso, é um marco ser a primeira mulher trans a ocupar um cargo de direção em uma organização de jornalismo no Brasil. Isso é importante, claro. Mas, mais importante ainda é que esse seja só o começo. Que venham muitas outras lideranças jovens, muitas outras mulheres trans em cargos de gestão, muitas outras organizações criadas e conduzidas por corpos dissidentes.

Nós: Você também é cofundadora da Transmídia, a primeira organização de jornalismo do Brasil a cobrir as pautas da população trans. Como tem se dado condução desse projeto e por que é relevante a existência de veículo cobrindo essas pautas?

Sanara Santos: A Transmídia nasceu de uma coletividade de comunicadores, jornalistas, designers — todas pessoas trans — que já estavam atuando na comunicação, mas sentiam uma grande insatisfação. Faltava representatividade. Pior: o que existia muitas vezes era violência sobre os nossos corpos. Em uma sociedade que ainda é binária, é muito difícil compreender, aceitar e respeitar a existência de pessoas trans. E isso se reflete diretamente no mercado de trabalho e nas culturas institucionais.

A Transmídia nasceu dessas dores: de jornalistas que não tinham o crachá com o nome retificado, de políticas internas que foram alteradas para apagar ou dificultar a existência de pessoas trans. Primeiro, ela foi um espaço de acalanto — onde a gente podia se queixar, se acolher, se abraçar, e principalmente, afirmar: a gente existe.

Depois de uns quatro anos nesse movimento coletivo, nasceu de fato a ideia da Transmídia como uma organização. Hoje, somos quatro pessoas tocando a iniciativa. É desafiador, como é para qualquer organização independente e periférica. Mas a gente sabe que é possível. Sabemos porque outras já vieram antes e nos inspiram: Nós, Mulheres da Periferia, Gênero e Número, As Minas, Portal Geledés, Alma Preta. Essas organizações mostram que dá pra fazer. Que dá para existir, crescer e causar impacto.

A importância da Transmídia está em lembrar constantemente que o jornalismo é múltiplo. Um jornalismo que usa uma única régua para medir tudo, que olha só para um tipo de realidade, não está enxergando a sociedade como ela realmente é — com toda a sua complexidade e diversidade. A gente consegue fazer diferente porque nossos corpos são interseccionais: mulheres, pessoas trans, pessoas negras — a gente está em todos os lugares. E, por isso, conseguimos narrar o mundo de forma mais completa.

Nós: Por que a diversidade sexual e de gênero é necessária para um jornalismo mais qualificado?

Sanara Santos: Um jornalismo que não olha para gênero e sexualidade não está olhando para a complexidade das existências no mundo. Ele acaba contando só uma parte da história — e, muitas vezes, a parte mais confortável para a maioria.

Um jornalismo que não olha para gênero e sexualidade não está olhando para a complexidade das existências no mundo.

Sanara Santos

Na Transmídia, a gente está sempre se perguntando: falta alguma camada aqui? Por exemplo, outro dia lemos uma matéria sobre endometriose. Falava da Anitta, explicava a doença, os sintomas, como buscar ajuda. Mas a pergunta que ficou foi: e os homens trans? E as pessoas não binárias que têm útero? Como essa mesma matéria poderia usar uma linguagem mais inclusiva, que também os incentivasse a procurar apoio e se informar?

Isso acontece o tempo todo. Estávamos produzindo uma matéria sobre saúde bucal e descobrimos que o uso “incorreto” de hormônios pode impactar a saúde bucal de pessoas trans. Mas quase nenhuma matéria sobre esse tema menciona pessoas trans — a não ser aquelas que colocam “população trans” no título. É como se só existíssemos em caixinhas específicas, e nunca fôssemos parte do todo.

Mas pessoas trans vivem todas as experiências humanas — adoecem, amam, trabalham, sentem dor de dente. O jornalismo precisa ser capaz de incluir essas experiências sem tratá-las como exceção.

Se o jornalismo não considera gênero e sexualidade em suas pautas, ele está sempre usando uma régua limitada. Ele perde a chance de mergulhar nas camadas mais profundas da sociedade. E jornalismo é isso: é mergulho, é profundidade. É contar histórias com responsabilidade, com contexto, com pluralidade.

Nós: Olhando mais especificamente para o jornalismo periférico, como vê a importância da abordagem de pautas relacionadas à diversidade sexual e de gênero?

Sanara Santos: Falando de jornalismo periférico, gênero e sexualidade, eu vejo um trabalho muito bonito sendo feito. As organizações periféricas têm a preocupação de tratar dessas pautas com responsabilidade. E mais do que isso: elas contratam pessoas trans. É nesses espaços — veículos independentes, periféricos, hiperlocais — que eu mais vejo jornalistas trans atuando.

Ainda assim, é preciso reconhecer que vivemos em uma sociedade conservadora. E as periferias, muitas vezes, também são conservadoras. Isso cria uma barreira muito grande para os corpos trans. Existe uma demonização histórica em torno da nossa existência, e isso atravessa tudo: a forma como somos vistos, recebidos e até contratados.

Ser uma pessoa trans na periferia é desafiador. Nenhuma vivência na quebrada é igual, mas há algo específico na experiência trans periférica que é muito violento. A gente vive em “não lugares”. Na periferia, às vezes, não somos vistos como parte daquele território. Fora dela, somos apenas “da periferia”, ou apenas “trans”. Nunca completos. Nunca inteiros. E isso nos desloca o tempo inteiro.

Na periferia, às vezes, não somos vistos como parte daquele território. Fora dela, somos apenas “da periferia”, ou apenas “trans”. Nunca completos. Nunca inteiros. E isso nos desloca o tempo inteiro.

Sanara Santos

A periferia, embora seja o nosso chão, também pode ser um espaço de insegurança. Muitas pessoas trans sofrem com isso e adoecem. Por isso, a produção de conteúdo, para mim, é também uma forma de cuidado. Eu acredito que a troca de ideias tem o poder de diluir preconceitos.

A comunicação é uma ferramenta poderosa para isso. O jornalismo pode ser uma forma segura de convivência, de aproximação, de reumanização. Os veículos periféricos têm um reconhecimento real dentro das suas comunidades. E isso ajuda muito, porque o corpo trans ainda sofre com a incredibilidade — com a negação do seu direito de ser e existir.

Por isso, o que a gente publica também constrói imaginário. A maneira como contamos histórias, as imagens que colocamos em circulação, as palavras que escolhemos — tudo isso alimenta uma nova literatura sobre pessoas trans. Isso pode transformar a forma como os leitores enxergam essas existências.

É claro que pode haver resistência. E eu me pergunto o tempo todo: como trazer essas questões de um jeito que aproxime, sem suavizar demais o que precisa ser dito? É um desafio. Um dilema que também mora em mim. Mas sigo acreditando que é possível.