Criança não é mãe: Câmara dificulta acesso ao aborto legal de vítimas de estupro
Medida é adotada em um contexto em que mais de 34 mil meninas com menos de 14 anos vivem em uniões conjugais e que 232 mil deram à luz nos últimos dez anos
Por Amanda Stabile
12|11|2025
Alterado em 12|11|2025
Crianças e adolescentes vítimas de violência sexual podem voltar a enfrentar barreiras para acessar o aborto legal no Brasil. Na última quarta-feira (5), a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 03/2025, que suspende a Resolução nº 258/2024 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). O PDL agora segue para análise no Senado Federal. Se aprovado, a suspensão torna-se definitiva.
A resolução do Conanda estabelecia procedimentos obrigatórios para o atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Ela definia como os serviços de saúde, assistência social e proteção deveriam atuar para proteger a criança, evitar sua revitimização e garantir o acesso ao aborto legal, direito previsto no Brasil desde 1940 nos casos de estupro, risco de vida da gestante ou anencefalia.
O Conanda é um órgão responsável por estabelecer diretrizes nacionais obrigatórias para políticas de proteção à infância e adolescência, conforme determina o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Por isso, suas resoluções têm caráter normativo e devem ser seguidas obrigatoriamente por serviços de saúde, assistência social e conselhos tutelares em todo o país.
Com a suspensão, essas orientações deixam de ter efeito nacional. A lei que permite o aborto legal não muda, mas o acesso pode se tornar mais difícil e desigual.
A Resolução nº 258/2024 estabelecia que o aborto legal para crianças e adolescentes vítimas de violência sexual deveria ocorrer sem exigência de:
Boletim de ocorrência;
Autorização judicial;
Autorização dos responsáveis quando isso colocasse a vítima em risco;
Comprovação adicional da violência, além do relato.
Também garantia que:
A palavra da vítima fosse suficiente para acessar o serviço;
O atendimento fosse imediato e humanizado, evitando atrasos que inviabilizam o procedimento;
A criança ou adolescente pudesse ser acompanhada durante todo o processo, se desejasse;
A objeção de consciência não fosse usada para negar atendimento: se um profissional recusasse, o serviço deveria garantir outro.
Essas medidas eram pensadas para evitar a revitimização, situação na qual a criança, já violentada, é exposta novamente à dor ao precisar se justificar ou provar o abuso para diferentes profissionais e instituições.
Por que isso importa
No Brasil, o artigo 2017-A do Código Penal estabelece que qualquer ato sexual com crianças de até 13 anos é estupro de vulnerável, já que elas não têm capacidade legal para consentir. Isso significa que toda gestação nessa faixa etária também é reconhecida pela própria lei como resultado de violência sexual — e, portanto, a criança tem direito ao aborto legal.
Os dados revelam, porém, que essa violência é frequentemente tratada como algo naturalizado. Segundo o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que mais de 34 mil meninas com menos de 14 anos vivem em uniões conjugais no país. Entre 2013 e 2023, mais de 232 mil meninas nessa faixa etária deram à luz.